Antonella Yllana é peregrina, escritora e tradutora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Com um filho pequeno, tudo que acontece é permeado pela presença da criança. O que faço e o que deixo de fazer. Tem sido assim desde que ele nasceu, quase quatro anos atrás. No meu caso, a minha vida pessoal sempre norteou meus escritos. Não consigo separar a escrita e a pessoa que sou, as emoções que experimento, os pensamentos que me acompanham, daquilo que acontece quando me sento diante da tela em branco. A maior dificuldade, creio eu, foi aceitar que a escrita faz parte de mim, como qualquer outra necessidade vital, e dar a ela o espaço e a importância que dou, por exemplo, à alimentação, à saúde, às relações, a outros trabalhos que trazem aporte financeiro imediato, e assim por diante.
Atualmente, não consigo, como em outras épocas de minha vida, escrever por muitas horas seguidas. Tenho muitas tarefas a cumprir, diferentes trabalhos e projetos. Tentei resumir todos eles, para dar uma ideia do que me acompanha ou está impregnado no processo da escrita.
1) procuro contribuir ao longo do dia para que minha pequena família, meu filho, meu marido e minha mãe, e minha grande família, meus parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos, vivam bem e felizes; 2) faço parte de uma comunidade de aprendizagem, um grupo de famílias incomuns que se juntou e está estudando e trabalhando para proporcionar uma educação inovadora para nossos filhos e outros que se juntem a nós; 3) participo de um coletivo de loucos super legais que tem como meta plantar um milhão de árvores onde vivo e tentar ajudar a reverter o desmatamento crônico que assola a região e o país; 4) sou tradutora de terapeutas e desenvolvi um atendimento terapêutico com cartas de tarô para ajudar outros desajustados como eu; 5) trabalho para um site, criado por um professor do budismo tibetano, um mestre americano chamado Alexander Berzin, tradutor do Dalai Lama, e traduzo ensinamentos dele, do Dalai Lama e outros mestres; 6) sou anfitriã de uma hospedaria familiar; 7) sempre estou lendo um livro, não importa quanto tempo levo para terminar; 8) rego as plantas do jardim, tomo banhos de mar, e pratico a arte da capoeira sempre que possível, ainda que seja uma eterna iniciante (em todas as artes, aliás); 9) dou uma atenção especial às refeições, que sempre faço em família; 10) insiro pequenas pausas nos afazeres, nas quais bebo, sozinha ou acompanhada, café, chá mate ou outros chás; 11) faço aprendizados de paciência, improvisação, e êxtase, com meu filho, trocas de ideias práticas, políticas ou novelescas com minha mãe, encontros artísticos, sensuais ou filosóficos, com meu marido, conversas reveladoras, instigantes ou edificantes com algum/a amigo/a; 12) ritualizo a vida, com simplicidade, sento em círculos de bruxos e bruxas do bem; espanto as sombras com sálvia branca ou palo santo, faço oferendas desnudas para a lua ou danças saltitantes para o sol; 13) escuto música, mais frequentemente música clássica, jazz ou flamenco; 14) cuido da saúde com sessões semanais de medicina preventiva chinesa; 15) uma vez por mês, faço unhas, cabelo e depilação; 16) e à noite, quando possível, cai bem uma cerveja preta com castanhas de caju, ou então queijos com vinho.
Portanto, com a escrita, tento ser realista e modesta em minhas metas. Se eu conseguir escrever alguns parágrafos por dia, ou pelo menos trabalhar um pouco no livro que estou escrevendo no momento, fico conectada com a energia do livro e não perco o fio criativo. Nos últimos anos, sempre estou escrevendo algum livro, até mesmo quando não estou escrevendo.
Quando possível, começo e acabo o dia com uma pequena prática de meditação de silêncio, que inicia com uma oração de refúgio e termina com a dedicação da prática. É uma das práticas budistas que permeiam meu cotidiano e interpreto como um treinamento para a vida. A motivação que me leva a praticar é lembrar que estou vivendo com um propósito amoroso, que vai além de minha vida pessoal, que toca todos os seres, próximos e distantes, com os quais estou conectada, e que nutro o desejo profundo de dedicar à humanidade, à posteridade, ou simplesmente ao que vai além de mim, tudo o que faço.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
No momento, consegui organizar meu tempo de forma a trabalhar nos escritos e nas traduções de manhã e de noite. É uma estrutura frágil, que muitas vezes tem que ser flexibilizada de acordo com as necessidades da família e do entorno. Quando possível, eis a minha rotina: abro os olhos por volta das 6:30, geralmente um pouquinho antes do despertador tocar, medito e acordo meu filho. Nós nos vestimos, tomamos café da manhã e eu o acompanho no transporte escolar até seu jardim de infância. Ultimamente, por questão de praticidade, tenho ido escrever em um café. Peço um café coado grande, um pão de queijo, uma água com gás com gelo e limão, e começa a aventura.
Já fiz rituais que precediam a escrita. Quando escrevi um romance sobre o xamanismo, fazia alguns minutos de práticas simbólicas antes de escrever. Atualmente, faço apenas as minhas práticas budistas. Há três práticas bem simples que uso diariamente e me ajudam a navegar a realidade. Elas servem para aquietar a mente, caso eu esteja nervosa ou me falte a lucidez, ou se algo específico estiver me perturbando. Ao longo do dia, elas me ajudam constantemente a voltar aonde é preciso estar para conseguir progredir no que quer que seja que estejamos fazendo. Elas me trazem de volta ao momento presente.
Escrever de manhã e de noite são experiências distintas, mas igualmente interessantes. De manhã, há o frescor do dia que começa, uma clareza maior em relação aos elementos. À noite, além do cansaço acumulado do dia, há o mistério das sombras que antecedem o sono, muito conducentes à conexão com a dimensão dos sonhos. Há momentos nos quais gosto de escrever na sobriedade inquestionável de um céu despido de nuvens, outras vezes aprecio justamente o oposto, a cegueira involuntária do negrume noturno, a ligeira embriaguez do sono, de um vinho ou um beijo. Certas vezes, preciso de música, noutras, o silêncio é imprescindível. Os detalhes internos e externos contam, na composição final são eles que nos transportam rumo ao desconhecido. Pego o fio do balão, o vento começa a soprar, as associações surgem, e levanto voo.
Há a menina que adora um balão azul e o leva a todas as partes até que um grande vento o carrega rumo ao céu sem fim. Ou pode ser também um menino que tem um balão vermelho. Para onde voa o balão? O que faz a criança que perde seu brinquedo favorito? Para onde levam as cores e os ventos? Meu filho adora as histórias do balão. Contar histórias para crianças é um belo exercício para quem gosta de escrever. Pegamos um trem que tem um destino qualquer e nos deixamos surpreender pelas paisagens que encontramos ao longo do caminho. E assim chegamos aonde toda escrita que respira invariavelmente acaba por nos levar. Na descoberta do poeta, de que só se faz caminho ao andar. De repente, percebemos que estamos viajando, neste e em outros universos, sem precisar sair do lugar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Estou sempre escrevendo, mesmo quando não estou. Tudo é poesia esperando nascer. Há o olhar que transforma, o abraço que cura, a esperança que respira, em cada momento, nas palavras que trocamos, nos passos que arriscamos vida afora. Há o amor que mata, o desejo que dilacera, e a vida morrendo, a cada instante. Há o sorriso que transporta, o encontro que floresce, o carinho que engrandece, e a morte renascendo eternamente.
Quando possível, mantenho a disciplina diária de escrever no mínimo algumas linhas. No meu cotidiano não posso me permitir metas que me frustrem além das frustrações inevitáveis, inerentes ao caminho. Os pensamentos que desembocam em palavras digitadas, a escrita que se realiza é sempre uma conquista do malabarismo diário. São trilhas secretas que se abrem em meio à loucura, aos chamados do filho, marido, mãe, cachorros, gatos, micos, hóspedes, amigos, compromissos diversos, afazeres domésticos. Onde estou hoje, escrever é o luxo sem o qual não sei viver. É fuga e é reencontro, com o vazio que canta, com a escuridão que dança, com a própria humanidade.
A escrita me deu muito mais do que eu imaginava. Não da forma que eu esperava, não de maneira previsível e quantificável, em números e estabilidade. As bênçãos são incontáveis. Todos os caminhos se abrem ao olhar que escreve. A grande aventura pede tudo a quem tudo lhe dá: cada movimento, cada instante, cada pensamento. Viver e escrever são uma coisa só.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que ninguém poderia definir a escrita tão bem quanto Clarice Lispector: “Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue.”
Cada texto, cada livro, é sempre de novo um mergulho no vazio. Não há um texto como outro, nem duas frases iguais. As palavras podem até ser as mesmas, mas dependendo do contexto universos inteiros as separam. É impossível escrever o que já foi escrito, da mesma forma que não se pode mergulhar no mesmo rio duas vezes. O rio é sempre diferente, e a escrita é um rio caudaloso e turbulento, que nos leva sempre além de nós mesmos. A quietude não é separada da turbulência, é quando nos aprofundamos nela.
Quando estou escrevendo, sempre estou pesquisando. As ideias vão surgindo e eu vou observando, lendo, me informando, seguindo o fio misterioso que me chama e abre novas portas para novas ideias. Cada livro tem sua demanda e é preciso saber escutar o que ele nos pede, como um bebê que chora. Temos que descobrir o que ele está querendo nos dizer.
Antes de escrever o romance “O Filho do Sol”, fiz uma peregrinação, na qual os sinais me mostraram que eu devia realmente escrever o livro. Andei 800 quilômetros em cinquenta dias. As paisagens misturavam-se com as cenas do livro. Ao voltar para casa, sentei com meu mestre de capoeira, com sua esposa, sua mãe, seus amigos e alunos. Conversei por horas. Gravei as conversas, transcrevi, convivi com o mundo mágico da capoeira em minha mente por meses a fio. Meu corpo absorvia as informações, as digeria e traduzia em sentimentos. De repente, tudo ficou claro. Senti a poesia brotando como uma fonte de água cristalina. Comecei a escrever, ri e chorei muitas vezes, transportada por aquilo que o vazio me revelava.
Já o romance “A Raiz dos Sonhos” brotou a partir de minhas experiências nos rituais de Ayahuasca guiados pelos meus mestres da floresta. Senti que a planta sagrada me pedia um livro. Como na capoeira, encontrei nesse universo um dos caminhos que ajudam a não morrer e a reflorestar o coração. Fui para a Chapada Diamantina, bebi o chá perto de cachoeiras, falei com meus mestres, gravei e absorvi as conversas. Assim nascia, pouco a pouco, mais um mundo. Quando terminei o livro, recebi uma carta, e percebi que faltava algo de central na história. O personagem principal apenas se revelou a mim no fim do livro. Tive que recomeçar o texto desde o início. Eu me sentava diante do altar, acendia uma vela, ficava ali por pouco ou muito tempo, e quando vinha o impulso, eu me levantava e me sentava diante da tela em branco. Já não era mais eu, mas o vazio que escrevia.
Começar um livro não é difícil. É impossível, porque não é só um processo racional. É muito mais complexo e profundo do que isso. É claro que precisamos abrir o espaço físico e mental para a escrita. Reservar um tempo por dia e dedica-lo ao projeto. Mas a escrita em si, ela acontece. Quando nos abrimos a ela. Ela surge, como um diamante na rocha, como a escultura na pedra, ou a pintura na tela. Ela irrompe de nós, como um ser humano, que nasce puro potencial, mas precisa ser regado, podado, nutrido, observado, estudado, compreendido, amado, para poder crescer e florescer. Escrever é amor borbotando, virando caminhos e levando ao mar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tive duas grandes fases nas quais não consegui escrever. A primeira foi aos vinte e poucos anos, quando sofria de depressão. Passei praticamente um ano sem escrever nem uma única frase. Na época, questionava tudo, como os jovens costumam fazer, mas ao invés de me darem asas, meus questionamentos me paralisavam na lama da tristeza. Eu me sentia incapaz de fazer algo que valesse a pena. Foi uma condição penosa da qual me libertei, pouco a pouco, ao me abrir para a busca espiritual.
A segunda trava foi após o nascimento de meu filho. As mudanças físicas, emocionais, psicológicas haviam sido tão intensas e abrangentes que eu não conseguia pensar de forma linear. Quando parava para refletir, havia um silêncio tão grande e abrasador que cheguei a duvidar que um dia a escrita voltaria a se manifestar através de mim. Nada podia se equiparar à absoluta metamorfose que eu estava vivenciando, ela me absorvia por completo. Tive que respeitar aquela ausência de mim, aceitar que uma parte minha estava morrendo e outra, ainda desconhecida, nascia lenta e misteriosamente. Só voltei a escrever após os dois anos de puerpério.
Meu trabalho é solitário. Os maiores temores surgem no momento no qual o livro está terminado e decido enfim vertê-lo no mundo. Quem o lerá e por quê? Qual será o impacto daquelas páginas que absorveram dias e meses e anos de minha força vital? Servirão para algo? Será que pelo menos algumas das bilhões de pessoas lá fora serão tocadas pelas seiva que derramou, pela alma que sangrou, entenderão elas a dor e o amor que ali jorrou? É impossível saber. O livro é o filho que nasce, cresce e sai de casa, exposto a todo tipo de luzes e sombras. Será sempre um filho, mas não mais me pertence. Dói e é bom vê-lo partir. Desejo-lhe sorte, rezo para que não morra, e se possível, que floresça e saiba contribuir. O trabalho foi feito, é hora de soltar a garrafa em alto mar.
É difícil saber quanto tempo durará um projeto. Cada livro é a aventura absoluta. Houve livro que escrevi em três meses, há outro que estou escrevendo há anos. A ansiedade de trabalhar em projetos longos têm menos a ver com os projetos do que com a qualidade do tempo em si, os altos e baixos do cotidiano, que precisam ser administrados sem que o foco seja perdido. Manter o direcionamento quando o mundo está desmoronando, quando a família nos engole em seus dramas, quando nos perdemos em nossos desejos e ilusões, não é exatamente ansiedade. É a loucura que aceito, incorporo e traduzo na tela em branco. O cotidiano é a inspiração, ele ilustra a saga humana. É onde continuamos. Perseveramos. Realizamos a coreografia diária, da imersão ou da expansão. Um passo depois do outro, rumo ao pulo, ao voo e ao espanto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meu único compromisso é com a escrita e com aqueles que me leem. Portanto, não tenho que seguir muitas regras e posso respeitar o que o momento me pede. Sempre revisei meus livros algumas vezes, enquanto os escrevia, capítulo por capítulo, e depois de terminados. Quando está pronto, costumo enviar o texto para no mínimo duas pessoas, para que o leiam e revisem. Ainda assim, passado um tempo mais ou menos longo, é comum achar erros, ou trechos que eu escreveria de outra forma quando abro ao acaso algum trabalho publicado. Isso não me perturba muito, pois sei que estou aprendendo constantemente e não tenho grandes pretensões em relação a meus conhecimentos.
Sinto-me aprendiz e peregrina em tudo que faço. Aos 26 anos, quando aprofundei minha busca espiritual, fiz minha primeira peregrinação e caminhei sozinha por 800km. Descobri que o movimento peregrino me definia melhor do que quaisquer títulos jamais o poderão fazer. Viajei bastante, falo alguns idiomas e trabalho também com traduções. Longe de ser perfeita em minhas habilidades, mantenho sempre minha curiosidade e abertura como meus maiores alicerces. Uma constante rebeldia, questionamentos incessantes e uma incredulidade visceral em relação ao sistema, unidos à falta de estabilidade psicológica e emocional, fizeram com que eu não completasse nenhum estudo formal. Como minha memória não é das mais afiadas, tenho que aceitar que cometo erros até por esquecimento, além dos outros erros, comuns e frequentes, que são simplesmente frutos da ignorância. Até hoje, não canso de me surpreender com os idiomas, e estou plenamente consciente de que o que não sei supera infinitamente o que sei. Gosto de críticas construtivas, sinto-me profundamente honrada quando encontro pessoas que demonstram carinho pelo meu trabalho, que se dispõem a ajudar, comentar e divulgar o que faço, e se abrem à troca de conhecimentos. Amo aprender fazendo.
Acho que um dos grandes medos a ser superados por quem escreve é o pavor de desnudar a própria fragilidade e as nossas inúmeras fraquezas. Se não formos gênios, e a maioria não é, mais cedo ou mais tarde, seremos ridículos. Derraparemos no absurdo, quer queiramos ou não. Alguns nos amarão, outros nos desprezarão, e muitas vezes esses outros serão muito próximos, supostos amigos ou parentes. E eles não precisarão dizer nada, o silêncio muitas vezes fala mais do que milhões de palavras. É preciso aceitar essas feridas que não fecham nem cicatrizam, são trilhas de sangue que demarcarão o caminho que trilhamos e nos ajudarão a lembrar dos desafios que superamos. Ninguém pode avaliar a dor do outro, e a dor de quem escolhe a escrita, ou é escolhido por ela, é real e intensa. Mas não só a dor. A peregrinação ensina isso, que o caminho é muito maior do que a dor, mas que ela é inevitável e, às vezes, pode ser necessária.
Além das viagens, a arte da capoeira também me ajudou muito ao longo do tempo. Por várias razões, durante toda a minha vida, tive sérios problemas de coordenação motora. Não os superei completamente, mas a capoeira me ajudou a me movimentar melhor no mundo, inclusive no universo das ideias. Minha primeira aula foi rodeada de crianças, na Espanha. Antes daquela aula, nunca ousei nem mesmo tentar fazer capoeira, pois considerava que era completamente impossível para mim. Foi quando conheci meu primeiro mestre, que reconheceu meu grande medo e me convidou a fazer aula junto com as crianças. Quando vi os pequenos que se lançavam nos movimentos sem temer a queda e, acima de tudo, sem o medo do ridículo, algo se abriu em mim. Naquele momento, ficou claro que para conseguir viver sem morrer em vida era imprescindível ser um pouco criança ou pelo menos despertar a criança que nunca pudemos ser. Foi o meu primeiro grande aprendizado na capoeira. Hoje, muitos anos depois, sigo aprendendo, com imensa lentidão, e com amor infinito, essas artes que nos curam e nos matam, ao mesmo tempo, libertando-nos de nós mesmos. Sendo a maior delas, obviamente, a arte de viver.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Para quem gosta de palavras, é sempre interessante conhecer a origem delas. Tecnologia, por exemplo, vem do grego “tékhne”, que significa “arte”, e “logos”, que significa “razão”. Se formos um pouco além no estudo da palavra, descobriremos que na arte está implícita a técnica, a capacidade de realizar algo, e na razão há a lógica e a habilidade de comunicar o que está sendo realizado. Assim sendo, o próprio ato de escrever já é uma espécie de tecnologia, e o uso de instrumentos para poder fazê-lo é consequência natural da ação em si. Não vejo o ser humano separado da tecnologia, como não o considero separado da natureza. Há uma interação constante entre todos os elementos da realidade. Não existimos fora da relação com o mundo que nos rodeia.
Isso dito, é claro que cada instrumento que usamos traz diferentes sensações e resultados. Escrever à mão tem algo de rústico, nos deixa mais expostos a nossas falhas e confusões, é a ferida em carne viva, sem nenhuma intervenção. É parir sem anestesia, e o bebê sangrento chorando no peito que transborda. Hoje em dia, em tempos de correria, é também um luxo e um refinamento, quando todos andam com o celular como magos brandindo suas varinhas mágicas, tomando notas virtuais e virtualizando até mesmo os encontros presenciais. É tão raro que é retrô, pede uma qualidade de tempo que o relógio desconhece. É nadar contra a corrente, como quando sentamos para meditar. Chega a ser tão poético que quase não é mais lógico. Afinal, se a escrita quer ser lida, em épocas de fortes correntezas, ela não pode esperar. Pelo menos, não muito.
Quando comecei, escrevia muito à mão. O tempo todo, em qualquer lugar. Montanhas de cadernos amassados, rasurados, desenhados, cheios de pensamentos e poemas. A relação com a escrita era muito física e sensual, eu levava os escritos para a cama, dormia com eles debaixo do travesseiro. Certo dia, em uma viagem pela Itália, fui a uma loja de departamentos. Quando dei por mim, estava parada diante de uma máquina de escrever eletrônica e portátil, com corretivo. Era pequena e negra, leve e discreta, quase tão misteriosa quanto um objeto voador não identificado. Eu era jovem e sonhadora, vivia mais em minhas ideias do que no mundo das coisas. Por isso, aquele encantamento súbito por um objeto me surpreendeu e paralisou. Não sabia o que fazer. Meu companheiro na época logo percebeu que uma paixão florescia e me ofereceu meu primeiro brinquedo de escritora. A partir dali outros vieram, sempre em momentos cruciais, quando a vida precisava mudar, e a escrita pedia por novos caminhos.
Atualmente, minha ferramenta de trabalho é um computador portátil. Do lado puramente prático, descubro aqui possibilidades de me movimentar em minha própria mente com uma destreza que nenhum outro instrumento me ofereceu até agora. Gosto de ter todas as janelas abertas, ainda que isso também seja muito perigoso e eu me perca várias vezes em contemplações desnecessárias para o trabalho em questão. Vou e volto em mim mesma, reexamino meus passos, diferencio lacunas e espaços vazios. Desfruto do cursor que pisca para mim, chamando pela próxima palavra que desemboca nos rios e mares do pensamento. Transporto e sou transportada. Não vejo o computador como um instrumento morto, uma máquina sem alma. A vida também está nele, se manifesta, me desafia. Pequenos sinais surgem, aqui e acolá. Uma mosca pousa na tela, uma notificação chama o olhar, funções aleatórias se manifestam, e eu tenho que decidir a cada instante, para onde e como navegar. Às vezes a mosca passa despercebida, outras vezes ela entra no texto e pede a palavra, como agora. Ela me explica que as moscas têm uma visão de 360 graus, que quando pousa na tela, ela lê o que escrevo ao mesmo tempo que me lê, e sugere que minha mente deveria ser como os olhos das moscas. Aberta ao mundo em volta e dentro de mim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Era um dia como qualquer outro num subúrbio qualquer de Chicago. Estava passando uns meses naquela cidade e ia correr quase todos os dias. Quem conhece os subúrbios americanos, sabe que neles as casas são todas muito parecidas entre si, tudo é muito pacato, limpo e organizado. O único medo que eu tinha ao correr era de me perder em uma dimensão paralela, voltando para outra casa que não fosse aquela na qual eu estava vivendo, já que para mim elas eram praticamente iguais. Durante uma daquelas corridas, transportada pelo silêncio e pela aparente imobilidade da vida, comecei a observar as nuvens. Como em todos os outros lugares, ali também as nuvens dançavam com os ventos, criando formações singulares e fascinantes. Elas falavam de muitas coisas, dos povos que haviam vivido naquelas terras antes delas terem sido cobertas de cimento, dos dias de sol e das tempestades que aconteciam dentro de cada uma daquelas casas, das nuvens internas que pediam para dançar para mim e o mundo. O movimento das nuvens nunca para. Exatamente como a marcha dos pensamentos. Foi quando me veio a ideia de compartilhar reflexões semanais. Dei a essa cidade das ideias o nome de “Quando as Nuvens Dançam”.
Assim surgem as ideias, mais como uma convergência de elementos externos e internos do que como uma decisão racional de pensar sobre um determinado assunto. Há, por exemplo, os chamados externos. Quando as pessoas fazem perguntas, pedidos ou sugerem temas. Não é possível atender a todos, mas às vezes um assunto leva exatamente à música que as nuvens querem dançar. É claro que há também hábitos que, com o tempo, se tornam grandes aliados para aqueles que se dispõem a semear sonhos. No meu caso, atividades como ler, meditar, conversar, fazer amor, caminhar, plantar, brincar com meu filho, correr, jogar capoeira, ouvir música, seguir páginas interessantes em redes sociais, participar de rituais e comungar com a natureza, e simplesmente deitar numa rede e sonhar, ajudam muito a abrir as portas da percepção. Vida só pode brotar da vida. Para que os sonhos germinem e tomem forma, o universo tem que fervilhar dentro de nós.
Talvez o elemento mais importante quando temos o chamado e precisamos de ideias seja abrir-se ao mágico. É um processo bem delicado, difícil de ser descrito, mas que está por detrás de cada ideia fértil. Há todo um caminho que temos que percorrer para nos tornarmos dignos, para conquistarmos a força, a coragem e a humildade necessárias para verbalizar um sonho. Qualquer faísca criativa, qualquer história, sempre será muito maior do que aquilo que somos capazes de entender. É preciso ter, ao mesmo tempo, a postura solícita de um serviçal e a garra de um guerreiro que luta por seu ideal. É uma inocência consciente. Somos crianças brincando de sonhar, e anciãos sonhando de brincar. Quem se aventura na magia logo percebe que quem sonha está também sendo sonhado. Primeiro, aos trancos e barrancos, aprendemos a verdade incontornável: viver é sonhar. Depois, nos familiarizamos com a escuridão e o abismo. Por fim, elas começam a chegar. As ideias. São pés bem firmados na terra fecunda e vasta, que sustentam grandes caminhadas e passos incertos. São asas que nos amparam no desconhecido, nos ajudam a sermos quem de fato somos e nos transportam na grande odisseia que é voar na imensidão.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Aos oito anos de idade, escrevi meu primeiro livro, sobre uma leoa que atravessava a parede de meu quarto e conversava comigo. Foi um projeto da escola. Fiz a capa do livro, ilustrei as páginas e gostei do resultado. Os outros, professores, colegas e parentes, também gostaram. Mais ou menos naquela época, meus pais me apresentaram pela primeira vez ao poema de Drummond “No Meio do Caminho”. Lembro-me de ter ficado muito intrigada com a tal pedra que havia no meio do caminho do poeta e da qual ele falava repetidamente. Algo em mim “sentiu” a pedra. Entendi que no meu caminho também havia pedras. Ainda assim, ao longo dos anos, preferi ignorá-las e tropecei muito antes de começar a respeitá-las e olhar para elas.
Foi quando adotei o hábito de ler e ousei escrever meus primeiros poemas. Junto com a resistência em aceitar a realidade ao meu redor, manifestou-se uma forte miopia. Meu olhar voltou-se para dentro. Quando tinha problemas, em casa ou com colegas, deitava na cama e mergulhava no teto, ou ia para algum lugar quieto, como a capela da escola, onde pouco a pouco aprendia a arte da contemplação. Ou a relembrava, pois parecia já ser parte de minha pessoa. Eu não era uma menina popular com a qual todo mundo queria brincar. Eu era a garota estranha, desajeitada, que tinha a arrogância de tirar notas boas sem estudar muito, o que me distanciava das outras crianças. Detestava a escola, a sentia como uma prisão, sofria bullying e passava muitos recreios na biblioteca, lendo ou conversando com a simpática bibliotecária que tinha o mesmo nome que minha avó. Geralmente, ficava sozinha e, às vezes, um ou outro colega vinha falar comigo. Se pudesse voltar àquele tempo, talvez eu tentasse despertar a consciência da magia mais cedo e, dessa forma, mostrar a mim mesma que não estava sozinha.
Na adolescência e na juventude, nas ondas recorrentes da depressão, minha escrita foi movida principalmente pela minha tristeza. Ela permeava tudo o que eu fazia e pensava. Citando Bukowski, era a prática de “escrever para não enlouquecer”. Enquanto a leitura descortinava outros mundos, mais próximos e mais distantes do meu, a escrita me salvava, ajudava meus pensamentos a desembocarem em linhas que fluíam ao invés de se emparedarem entre pontos finais. Eram enxurradas de questionamentos enchendo diários e cadernos que se amontoavam em meu quarto. Por sua vez, as perguntas me transportavam a novas leituras e experiências.
De certa maneira, dar voz à tristeza profunda que me acompanhava me mostrou como ir além dela, rumo a outros espaços internos e externos. As pedras deixaram de ser obstáculos e começaram a ser sinais que me mostram o caminho. Elas me contaram sobre muitos outros caminhos, com pedras de todos os tamanhos, que cobrem a superfície do planeta e transportam histórias para o coração do mundo, exatamente como as veias transportam a vida no corpo. Deixei de pensar que escrevia só para mim e me descobri parte de algo muito mais vasto. Ainda que a tristeza continuasse a colorir o processo, outros infinitos matizes da condição humana juntaram-se a ela. Escrever deixou de ser uma busca desesperada por salvação, e tornou-se um exercício de expansão. Embaixo de uma árvore frondosa, no templo das coisas vivas, solto as pedras do passado e respiro sonhos, inspirando mundos e expirando universos. Depois levanto e vou em busca de novas trilhas sagradas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou trabalhando exatamente no projeto que quero realizar. Comecei a escrever um livro há alguns anos e parei várias vezes, sem saber se continuaria. Sentia-me pequena diante da grandiosidade do projeto. Embora ouvisse o chamado, tinha sempre, além dos questionamentos inevitáveis sobre o tema em si, as dúvidas recorrentes se deveria continuar escrevendo.
Vivenciei um problema parecido com o meu projeto anterior, um romance chamado “A Raiz dos Sonhos”, que envolvia xamanismo e o uso do chá medicinal Ayahuasca. Numa das minhas vivências com o chá, percebi que havia ali uma possibilidade tão benéfica de cura para tanta gente que era preciso escrever sobre isso. Mas escrever o que e como? Como fazer justiça a algo cujo potencial pode ser tão transformador? Como transmitir a experiência do sublime a um mundo tão doente e imerso na superficialidade? Viajei e fui visitar um casal de amigos, xamãs e curandeiros, no meio da mata. Passei uma semana com eles, entrevistei os dois e participei de seus rituais. Ao voltar para casa, comecei a escrever o livro que demorou um ano e meio para ser concluído.
Creio que o que me permitiu e ainda permite avançar hoje é buscar em mim mesma a humildade da qual fala Clarice Lispector em um de seus textos sobre-humanos: “Refiro-me à humildade que vem da plena consciência de ser realmente incapaz. Humildade como técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente. Descobri este tipo de humildade, que não deixa de ser uma forma engraçada de orgulho.” Foi uma descrição exímia do processo da escrita.
Quando temos expectativas muito elevadas em relação a nós e aos outros, ficamos paralisados e acabamos não fazendo nada. Por outro lado, quando somos conscientes de que, diante do grandioso, seremos sempre limitados, algo em nós relaxa e nos permite fazer o que conseguimos fazer no momento, como crianças trôpegas que não se importam em cair, mas que não desistem de caminhar. No processo de soltar constantemente nossa própria ideia do que deveríamos ser e aceitar o que estamos sendo, conseguimos ser mais do que somos e nos abrimos gradualmente até chegarmos, talvez, a amar a humanidade que respira em cada um de nós. Algumas pessoas entenderão e serão tocadas profundamente pelo que estamos fazendo, outras não perceberão o longo caminho que tivemos que percorrer para chegarmos até aqui, até esse ponto que é e será sempre menos e mais do que poderia ser.
Dentro dessa busca de me aventurar, vivenciar e comunicar novas percepções e visões do mundo percebi que o realismo mágico me permite abrir portais no cotidiano. Nos momentos mais simples moram as verdades mais profundas. No que se refere ao projeto atual, estou escrevendo um romance sobre um relacionamento fictício que, de certa maneira, fala de muitos relacionamentos. Daqueles que eu vivi, dos outros, dos quais me contaram e que vi acontecer ao longo de minha vida, da importância e do significado essencial e místico das relações amorosas. É um projeto que pede tudo de mim, mas também me surpreende e enriquece meus dias com a suavidade contundente que só o amor tem.
Assim sendo, o livro que estou sempre aberta e faminta por ler é o momento presente, que não existe como algo que pode ser conhecido, mas que, ao mesmo tempo, é o movimento constante de conhecer o desconhecido, já que nada mais existe além dele.