Anne Venditti é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não escrevo todos os dias em períodos que não há um projeto em andamento. Escrever me exaure, mas de uma forma extremamente prazerosa. Entro tanto na história, vivo tanto o que estou escrevendo, que este hiperfoco acaba por me alienar de tudo o que acontece na realidade. Eu fico quieta, evitando contato com as pessoas porque, mesmo não estando em frente a um computador, penso na escrita e nos personagens 24h por dia. Negligencio relações, sono, alimentação… Entro em privação de sono se durmo, sonho com capítulos inteiros; perco peso; fumo um maço em duas horas…Portanto, preciso de períodos de inatividade como escritora, períodos estes que são auto-impostos. Preciso de descanso. Mas o descanso só vem ao término do livro. Quando estou na ativa, durmo 2 horas por dia, escrevo andando, comendo, e ,mesmo que não tiver formas de passar ao computador ou ao papel, escrevo mentalmente, e funciono melhor depois das 21:00.Gosto da madrugada, mesmo escrevendo durante o dia. Prefiro estar só para escrever: falo sozinha, enceno fala das personagens, ando pela casa fazendo gestos que os personagens estão fazendo no livro, ouço a mesma música até finalizar um capítulo, choro, rio…Em suma, sou um ser humano de difícil convívio enquanto escrevo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como já disse, funciono melhor de madrugada, quando todos estão em silêncio. Irrito-me profundamente ao ser interrompida. É fisicamente doloroso parar o fluxo da escrita para responder às pessoas, atender celular, etc. E quanto ao ritual para escrever, não dá tempo de pensar nisso. Corro para escrever como se fosse uma viciada em abstinência. Sou assim também para o desenho e a pintura.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Acho que acabei por responder a esta pergunta nas anteriores. Não escrevo ao poucos, porque só faço isso quando escrevo, e, como eu disse, até mentalmente na impossibilidade de passar para o computador. Acabo permanecendo assim durante todo o livro e revisão de pontas soltas, o que me dá um ano e meio, mais ou menos, de atividade mental intensa e ininterrupta.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Às vezes, a ideia para o tema central ou para capítulos simplesmente chovem em mim, não é um processo racional. Não me sento e fico aguardando algo me atingir. Então, não, não é difícil começar. Difícil é parar, fazer pausas. Na realidade, é impossível. As pesquisas são realizadas concomitantemente com a escrita. É um caos. Às vezes, acho que, se qualquer pessoa passasse um dia na minha cabeça, teria uma síncope.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A Anne escritora não trava, não procrastina e não tem medos. A Anne que acorda xingando as manhãs, vai ao trabalho, faz comida, paga contas é um mar de incertezas. Escrevendo, viro uma mistura frenética de segurança, criatividade e produtividade, apesar de ser uma procrastinadora profissional para tudo o que não me estimule mentalmente. Sou TDAH, a procrastinação é como se fosse um membro impossível de se amputar, membro localizado do lado oposto ao foco patológico que ponho em tudo o que me estimule e desafie intelectualmente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Chego a me debruçar, esmiuçar e reescrever um livro por quase um ano, e não tenho o hábito de mostrar enquanto não estiver pronto. Quando mostro, é porque não há mais espaço para alterações. Não modifico enredo para agradar ninguém, não corto cenas, não adiciono trechos nem mudo nada, porque cada um terá uma opinião diferente sobre a mesma obra. Imagine quão difícil e quantas mudanças um escritor teria de fazer para adaptar sua narrativa ao gosto particular de cada leitor. Não me traio, porque não escrevo para os outros, escrevo para mim. E sou bastante exigente. Fico exultante ao ler ou ouvir que alguém gostou, mas não trabalho para agradar a todos. Já tive críticas excelentes, como também já tive críticas ruins por conta de “capítulos longos”, linguagem “difícil” e por atitudes de personagens. Como lidar com críticos que se incomodam em usar um dicionário, vêem atos de um ser fictício e capítulos exigentes como algo digno de baixar nota de um livro? Não, obrigada.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Na cabeça, começo a escrever mentalmente. Depois, registro no que estiver mais perto: recibo de supermercado, bloco de papel, computador, não importa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Infelizmente, não sei responder a essa pergunta com precisão. Acho que de tudo que ouço, vivencio, leio…Não sei. E quanto à criatividade, eu preciso me controlar para não viver no Fantástico Mundo de Anne e ser um pouco mais pé no chão, mais realista. Às vezes, o excesso de criatividade, o pensar fora da caixinha é que me dão um pouco de receio ao meu expor. Tem gente que não acompanha as ideias, não enxergas as conexões que enxerguei entre as coisas, e acabo pisando em ovos, fora da escrita, para não parecer estranha.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O processo foi tão linear e intenso que tenho dificuldade de perceber como evoluiu. Mas sei o que eu gostaria de dizer a mim mesma se pudesse voltar ao meus primeiros esboços: “O medo não constrói degraus, escreva!”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Os meus projetos criativos nascem como um susto, não os podo; portanto, tudo que o que quis fazer, eu fiz. O que eu diria que pode complementar essa resposta é não me barrar no momento de correr atrás do chato, leia-se buscar editoras, negociar, burocratizar a criação. Tenho sonhos para publicações, contratos com editoras, mas esbarro aí na letargia pela antecipação do chá de cansaço que terei de tomar. Editoras mais tradicionais não são solo fértil para gente que quer começar.
Quanto ao livro que eu gostaria de ler e não existe, nunca pensei no assunto, então não vou ficar discorrendo sobre algo que nunca me inquietou.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
O enredo me vem em lampejos,vai tomando forma sem que eu precise sistematizar, organizar, racionalizar o processo de criação. A inspiração ,as ideias vêm como um soco, tomam forma num processo que parece não respeitar minhas vontades, e tudo acontece de forma espontânea. Quanto ao que é mais difícil, a primeira ou última frase, não há dificuldade. Não escrevo linearmente. Não sigo esquemas, não consigo criar esquematizando, sequenciando etapas,o que me toma mais tempo para fechar tudo e não deixar pontas soltas, mas o “tomar mais tempo” é um prazer. Tudo no final se encaixa com uma orquestra. O primeiro livro,”Um Milênio para Amanhecer”, por exemplo, a frase do desfecho foi o que me veio primeiro, seguida pelo nome do livro, que encaixei na narrativa. No segundo livro, “Anjos no Sótão”, escrevi o segundo e o antepenúltimo capítulo, e o resto foi consequência.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não tenho uma rotina de escrita, também porque quando me vem algo, eu escrevo compulsivamente até finalizar. Depois,passo por fases de inatividade completa. Não sou regrada, odeio rotina. Sou do extremo: ou esqueço todo o resto à minha volta e escrevo compulsivamente,ou não escrevo nada.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Não consigo pensar em nada que me tenha motivado. A arte e a imaginação sempre foram muito naturais para mim. Acho que fantasio muito, preciso estar criando e usando a imaginação o tempo todo. Sou assim desde criança, uma inquietação mental que não dá trégua. Aos nove anos, eu escrevia peças de teatro, às quais eu sonhava poder assistir um dia sendo encenadas. Ficaram na gaveta. Muitos livros que escrevi se perderam. Fantasiar e criar e sempre tomaram a maior parte do meu tempo, como se o que acontece dentro da minha cabeça tivesse mais peso do que a realidade. Levo a imaginação muito a sério.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Acho que também ocorreu naturalmente. Tenho um estilo um tanto dramático e visual. Minha escrita é ritmada,sinto-a como se fosse música. Sinto o ritmo, a melodia. A escrita precisa soar como música quando estou estruturando as frases, as pausas. Não digo que o leitor terá a mesma sensação, mas sempre que eu leio algo que escrevi, eu sinto a organização das palavras, pausas, pontos finais como instrumentos, que dão vida à essa escrita que sinto como se tivesse sido musicada.