Anna Martino é escritora e editora de ficção especulativa.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu costumo acordar cedo — em geral. às sete da manhã, já estou diante do computador. Adianto tudo o que posso do trabalho (e-mails, newsletter, textos para as redes sociais, contas para pagar etc) antes do meu marido e filho acordarem, assim tenho mais tempo para escrever durante o dia. Só depois de tudo isso feito é que vou tomar café e me preparo para o “turno ficcional”, que em geral me toma toda a tarde. Meu marido e eu nos revezamos no preparo das refeições e no cuidado com o nosso filho e com a casa, então não fica tão pesado do meu lado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sou uma pessoa vespertina por costume. Quando trabalhava em redação, me condicionei a escrever na hora do almoço (o único momento de folga que eu tinha) e isso acabou seguindo comigo mesmo depois de abandonar o Jornalismo. Atualmente, começo o turno ficcional quando meu filho vai para a aula — ou seja, tenho das 13h às 17h30 para cuidar dos meus textos e dos textos dos outros (na condição de editora da Dame Blanche e da revista Pretérita). Das 18h até umas 22h, volto para a rotina de casa. Se sobra um tempo entre as 22h e meia-noite, aproveito para garatujar mais alguma coisa, sem compromisso.
Meus rituais de escrita são simples: acionar a lista de músicas do período (cada texto tem a sua, com canções que me ajudam a entrar no clima da história) e travar o acesso às redes sociais — do contrário, perco o dia todo navegando no Pinterest ou no Twitter. Eu me distraio muito fácil, infelizmente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, mesmo fora do período prescrito para isso. Na verdade, sempre que aparece uma folga entre as obrigações, estou anotando alguma coisa. Carrego sempre um caderno e canetas comigo, assim não perco nada. Vendo as palavras no papel, eu me sinto mais livre para inventar, exagerar e brincar à vontade. Começar direto no computador me tolhe um pouco os movimentos — parece que as palavras na tela do processador de texto se tornam mais sérias, mais definitivas (de novo, restos da minha vida no Jornalismo, em que não havia tempo para matutar sobre o texto: tudo era digitado às pressas e editado na hora).
Só mantenho uma meta de escrita diária durante o NaNoWriMo (evento anual em que os participantes se comprometem a escrever 50 mil palavras em um mês), e só porque a contagem faz parte do processo. Nos outros meses do ano, escrevo o quanto é possível no dia. Às vezes, são dez mil palavras, às vezes são cem. O importante é ter escrito alguma coisa para o dia não passar em branco.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu faço uma pesquisa básica antes de começar, para ter uma ideia do território a ser explorado. Se vou falar de um assunto que não domino ou sobre o qual minha experiência não ajuda, entrevisto fontes antes de começar para não iniciar o trabalho de maneira torta. Isso pode tomar bastante tempo, mas vale a pena, porque assim vou me inteirando do mundo que vou habitar nas próximas semanas com o devido respeito.
As pesquisas subsequentes vão acontecendo à medida em que vou escrevendo. Não faço mais fichas de personagens, porque descobri que gosto mais de ir desvendando a identidade das pessoas na história à medida em que vou criando o universo. Às vezes, você começa com uma ideia, e acaba com outra — e isso me diverte de tal jeito que não quero abrir mão dessa pequena anarquia. Escrever não é lição de casa e não é punição: se eu não me divirto, o leitor percebe quando for ler.
Passar da pesquisa para a escrita é a parte mais difícil, porque você quer ter certeza de que tudo está certo. Quando escrevo Ficção Histórica, digo que sou escrava da enciclopédia: se disseram que choveu no dia da batalha, eu quero colocar a informação em algum lugar. Diz meu marido que é preciso, em dado momento, aplicar a lógica dos aparelhos ortodônticos aos textos: uma hora não vai ter mais o que desentortar, então você tem que decretar o fim do tratamento. Uma hora, você precisa admitir que não está fazendo um documentário, e deixar a ficção tomar conta da sua narrativa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procrastinação, para mim, é a manifestação do medo de errar, e é por isso que começo com os cadernos. No papel, eu posso ser qualquer coisa, ninguém vai ler. Tenho permissão para errar, arrancar as páginas, mudar de ideia. Se percebo que estou enrolando, então isso significa que a história ainda não está pronta para ser contada —então, deixo tudo arquivado para um outro momento (por isso, recomendo a todos que anotem suas ideias, por mais estapafúrdias que elas soem. Nunca se sabe quando você vai precisar delas!)
Não tenho ansiedade com projetos longos, justamente porque gosto de habitar o universo inventado (é por isso que vou pesquisando aos poucos — sempre tenho coisas a descobrir, e isso mantém o interesse vivo). O projeto dura o tempo que precisa durar. Tenho histórias que estou burilando há uma década, e textos que escrevi em um dia que foram publicados com sucesso. Cada caso é um caso. Você se adapta à situação.
Quanto à não corresponder às expectativas… Já sofri muito imaginando como as pessoas iriam receber meus textos, mas atualmente tento me preocupar com outras coisas — do contrário, meus níveis de ansiedade vão parar no teto. Algumas pessoas vão adorar, outras vão detestar, e a grande maioria vai ler sem fazer comentários — a vida é feita disso. Tento me concentrar nas coisas que posso controlar, o resto é por conta do acaso. E o acaso gosta de me surpreender!
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quando passo os manuscritos para o processador de texto, já faço a primeira edição do material, cortando ou adicionando material quando necessário. Depois disso, o texto fica “de castigo” por um tempo — às vezes um mês, às vezes mais (depende da situação). Só com a devida distância é que dá para fazer uma segunda versão mais afiada. O olhar refrescado, digamos, consegue ver mais excessos a serem cortados e polidos.
Nunca mostro meus textos para outras pessoas até que eu esteja satisfeita com eles. Sou do time que não consegue contar a história antes, senão a graça se perde. Quando acho que está bom, pela ordem de proximidade, passo para meu marido (meu leitor ideal), meus agentes e para colegas em cuja opinião confio. Com a ajuda deles, consigo montar uma versão final.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho ótima relação com a tecnologia, e é por isso que mantenho distância do teclado do computador até a hora de editar — para que meu relacionamento continue funcionando! Alio o trabalho manuscrito com pastas de pesquisa no Pinterest, porque trabalho melhor com referências visuais, e faço listas de músicas pelo Spotify, mas só venho para o processador de texto depois de ter algo pronto para transcrever.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias aparecem dos locais mais diversos: um verso de uma música, uma pergunta do meu filho, vontade de inverter um clichê, dúvida sobre um assunto. O que aconteceria se… é a questão que mais me faço. Tem um meme que fala sobre uma pessoa que decide ir dormir cedo, e acorda às três da manhã para pesquisar se helicóptero tem buzina, ou quanto seria o IPVA do Optimus Prime… Eu sou mais ou menos desse jeito. Qual a história do clipes de papel? O que aconteceria se corridas de dragão fossem televisionadas? Como seria uma concessionária de tapetes voadores? Quanto mais absurda a pergunta, melhor!
Também cometo o que chamo de “surfe de Wikipédia” — vou pesquisar sobre um assunto e, hora e meia depois, me encontro lendo sobre algo completamente inusitado (exemplo real: fui descobrir porque a cor Azul da Prússia tem esse nome e, de texto em texto, fui parar em um artigo sobre a parada de sucessos da Bélgica nos anos 1980!). Isso sempre me rende alguma coisa — se não é uma ideia para uma história, é repertório para criar algum personagem. Como diz meu pai, não existe informação inútil — se não servir para nada, pode ajudar a preencher palavras cruzadas um dia.
Uma vez li que a inspiração precisa te encontrar trabalhando — isto é, não adianta sentar e esperar a iluminação divina, você precisa estimular o pensamento. Faço isso procurando ativamente ler e ouvir coisas fora do meu escopo. Ultimamente tenho lido biografias de líderes mundiais, um assunto que nunca me interessou antes (apesar da minha formação em Relações Internacionais), porque estou com um personagem complexo em um projeto de romance. Você não aprende se não se arrisca a ir atrás da informação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tenho dado mais tempo ao tempo. Antes, havia uma pressa imensa para terminar tudo, para publicar, para ser vista, para tudo. Eu demorei para me sentir confortável com meu ritmo de produção e com o fato de que, mais do que talento, o que conta no fim de tudo é a dedicação ao trabalho.
Precisei ter um filho para relembrar de como me divertir — e a invenção de mundos sempre foi minha diversão. Essa foi a principal alteração nos últimos anos: aprender a me expressar melhor e não temer o julgamento quanto ao que invento. Existe, e tem direito de existir, e ninguém pode me impedir de me divertir no processo.
E, bem, talvez eu dissesse para a Anna do começo do século XXI que seria esperto aprender regras de pontuação de diálogo com mais afinco, antes de tomar bronca de três revisores diferentes em um mesmo ano… Mas isso é outra história.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho um universo geracional, uma série de histórias que se passam no Mediterrâneo. Comecei a escrever, mas ainda não está na forma que quero. Isso vai demorar um pouco. E quanto ao livro que sempre quis ler e ainda não achei… Eu faço essa piada há algum tempo na minha newsletter: quero ler uma aventura romântica na época das invasões holandesas no Recife. Não tenho cacife para escrever isso, então alguém, por favor, escreva para mim!