Angélica Glória é escritora, autora de “Fisgadas” e “Espetáculo Lésbico”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia sempre alimentando a mim e minha cachorra salsicha. Sem comida não sou ninguém. Exceto quando estou obcecada com algum projeto específico e esqueço até das minhas funções biológicas hehe Mas sempre tenho minha namorada pra me trazer de volta pra realidade nesses momentos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrever, pra mim, tem de ser pela manhã. Escrevo durante outros horários do dia, também. Nem sempre consigo dar conta de tudo o mais cedo possível, mas meu rendimento e minha criatividade são irradiados nas primeiras horas do dia. Minha preparação para a escrita geralmente envolve café, mesa de escritório devidamente arrumada e uma playlist que inclua Bjork/Radiohead.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, sim, mas intercalo projetos diferentes durante a semana. Como escrevo também não-ficção e, além de três projetos de ficção que nutro para esse ano, também rascunharei um livro de não-ficção voltado para a Psicologia, preciso organizar minhas feituras diárias. Meta de escrita diária em valores numéricos não funciona para mim, então penso nos meus futuros livros como desejos a serem alcançados. Escrevo um pouco a cada dia, focando em um ou dois projetos específicos no mesmo mês, a quantidade que meu coração mandar. Tem funcionado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Na verdade, é fácil demais começar a escrever. Meu problema, de fato, é parar de escrever rs. Frequentemente vou no meu próprio fluxo de pensamento e escrevo além do que havia proposto inicialmente, então preciso voltas às minhas notas e relembrar a ideia inicial da história, refletir se ela ainda me cabe ou se precisa ser radicalmente mudada e seguir em frente. Acho que ando lendo Clarice demais, rs. É gostoso conseguir ultrapassar a pesquisa e se ver livre na escrita, mas, ao mesmo tempo, essa minha fluidez me demanda muita atenção. Já precisei apagar (remanejar para futuros projetos) escritas que foram muito gostosas de parir, simplesmente porque não cabiam na história que eu gostaria de contar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Dificilmente tenho travas na escrita. Primeiro porque escrevo nos gêneros que gosto de ler, o que me mantém sempre inspirada. Segundo, porque quando me animo para começar um projeto, começam a surgir ideias na minha cabeça e vou alimentando um bloco de notas sobre ele. Fico meio obcecada com a ideia e começo a ver meus futuros personagens, suas relações, seu passado, os locais por onde habitaram, em tudo o que consumo. Se ouço uma música, sou teletransportada para o inconsciente de minha personagem coadjuvante e entendo seus motivos para fazer o que fez. Recentemente, Objetos Cortantes, Pequenos Incêndios por Toda Parte, Boyhood e Moonrise Kingdom têm feito sentir-me no universo da história que estou planejando (spoilers). A procrastinação eu consigo deixar de lado determinando um horário fixo para escrever todos os dias. Geralmente escrevo por uma ou duas horas, dependendo do projeto. Quanto ao medo de não corresponder expectativas alheias, isso não me assusta muito. Escrevo o que gosto de ler e crio personagens que sinto falta na literatura: mulheres lésbicas em diferentes contextos e mulheres que, de alguma forma, conseguem ultrapassar a barreira da feminilidade sufocante. Assim como eu, tenho certeza que outras mulheres interessam-se por histórias desse tipo. Então tento fazer o meu melhor todos os dias e agradar minhas leitoras. Como estou começando agora a minha carreira de autora, claro, ainda estou aprendendo muito sobre a escrita, então não agradar totalmente, faz parte. Toda crítica que recebo me faz olhar para quais pontos posso melhorar. Escrever é um aprendizado infinito. Sou muito humana comigo mesma e sei que levarei tempo até ser a autora que gostaria de ser. Até lá, leio bastante e tenho estudado os gêneros literários que me interessam. Tenho minhas autoras favoritas que leio atentamente tentando sugar o máximo possível de sua coragem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes. Muitas. Mesmo, rs. E, claro, sempre tenho leitores-beta antes de publicar minhas histórias. Eles fazem toda diferença.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo à mão as ideias, notas, desenvolvimento psicológico de personagens, passagem temporal, twists, cenas desejadas, etc. Os rascunhos completos são feitos no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm das minhas experiências de vida, das pessoas que cruzam meu caminho, de observações na janela, de como eu acharia que animais seriam se fossem pessoas, de vidas que eu gostaria de viver, de álbuns que escuto e me deixam perturbada, de devaneios em dias de calor, de inspirações de livros e filmes…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou muita coisa, mas há um quê de mim que permanece o mesmo. No início eu escrevia mais crônicas e micro-contos, não me sentia ainda capaz de escrever livros inteiros e desenvolver uma narrativa de uma mesma personagem do início ao fim. Hoje isso é mais fácil. Antes toda minha escrita era, de alguma forma, autobiográfica, também. Hoje consigo me afastar e criar personagens que tem pouco a ver comigo. Se eu encontrasse a mim mesma, ao escrever meus primeiros textos, diria: resista à tentação de desistir.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sinto falta de ler bons romances de formação lésbicos que abordem a questão da heterossexualidade compulsória de forma responsável. É algo que gostaria de ler e de escrever também.