Angélica Amâncio é professora de português e literatura na École Normale Supérieure, de Lyon, autora de Adagio ma non troppo e outras canções sem palavras (2015).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Quando não tenho compromissos profissionais, gosto de começar o dia com uma caminhada pelo parque. É um momento intimista, em que posso escutar minhas canções preferidas, um programa de rádio ou meus próprios pensamentos. Também gosto de observar as pessoas que correm, passeiam com seus cachorros, brincam com seus filhos, leem um livro… Gosto, sobretudo, dos cachorros e das crianças, do barulho que fazem, da energia pura de seus movimentos.
É comum chegar em casa com alguma ideia para um texto, depois dessa caminhada contemplativa.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho preferência por horários, porque minha escrita nasce, principalmente, daquilo que vivo. E a beleza nos atinge quando quer, assim como a ideia ou a inspiração. Depois preciso de silêncio, para reler em voz alta o que escrevo. Às vezes, porém, dependendo do assunto ou gênero textual, deixo alguma música de fundo (Mozart, Bach, Piazzolla…) para marcar o compasso do texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Para a minha produção literária, gostaria muito de ter uma meta diária ou semanal, mas até hoje não consegui me organizar a esse ponto. Como geralmente escrevo textos curtos (crônicas, poemas, artigos), posso me dar esse luxo. Se um dia resolver escrever um romance, acredito que terei que rever meus hábitos criativos – como revi durante a redação da tese, por exemplo.
Em relação à escrita acadêmica, aliás, imponho-me certas regras: como existe o imperativo da data limite, estabeleço uma quantidade de páginas diárias.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Academicamente, a meu ver, é preciso ler e, simultaneamente, anotar. A leitura é uma atividade deliciosamente passiva. Se não houver pragmatismo, acabamos nos perdendo no pensamento alheio e terminamos desanimados, ruminando “se fulano já escreveu isso, como eu vou querer escrever aquilo?” Depois de compilar uma quantidade razoável de notas, passo para a escrita. Há, às vezes, certa preguiça inicial, que acaba indo embora alguns parágrafos depois. Também considero importante fazer pausas: para tomar um café, conversar com uma pessoa querida, assistir a um vídeo curto. Essas pausas só precisam ser cronometradas, é claro.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação é realmente um grande perigo. Netflix, Youtube, Facebook são alguns dos vilões que encontramos para chamar de nossos, na atualidade, mas acredito que o ser humano é um procrastinador nato. Comigo, o que costuma funcionar é fazer listas. O prazer que sinto ao riscar itens dessas enumerações, o sentimento de “dever cumprido”, muitas vezes, é o que me motiva a escrever. Porém, isso nem sempre funciona com a produção literária, à qual confiro maior liberdade. Quanto às expectativas, a gente sempre deixará de corresponder a elas, em diferentes medidas – mas isso não é motivo para não escrever.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Deixo o texto “respirar”. Quando acabo de escrever, tenho sempre a impressão de que é o melhor texto da minha vida. No dia seguinte, releio e me pergunto: “onde você estava com a cabeça quando escreveu uma coisa dessas?” Alguns dias de distância (ou mais) fazem com que sejamos mais racionais na revisão. E é sempre bom contar com outra leitura, claro. Como tenho a sorte de ter um irmão escritor, além de vários amigos, fica mais fácil encontrar um revisor de confiança.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Adoro a página branca do Word. Adoro escolher a fonte, o layout etc. O direito de apagar, reescrever, recomeçar, quantas vezes for necessário, é uma dívida eterna que teremos com o computador. Porém, é também um prazer, às vezes, escrever à mão, num caderno de notas, esperando um ônibus/trem/avião ou um amigo que chega atrasado para um encontro marcado. As palavras fluem com outra sinceridade.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm, geralmente, da observação e das experiências que vivo. Gosto de olhar para as pessoas e tentar me projetar para o interior delas, inventar-lhes sentimentos, sensações. Sempre gostei de olhar pela janela dos prédios, as luzes acesas, e imaginar as pessoas que vivem ali. Ao mesmo tempo, a leitura, o cinema, as artes em geral, são formas de encontrar não apenas ideais, histórias, mas também estilos diferentes de contá-las.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Estudar literatura é um prazer e um calvário. Sinto falta do tempo em que escrevia sem medos, sem teorias, sem mestres. Eu era tão verborrágica! Hoje reflito sobre a pontuação, a originalidade, as regras gramaticais. Outro fator determinante para mim foi ter-me enveredado pela tradução, que é uma atividade belíssima, que nos faz repensar o sentido de palavras que considerávamos entender tão bem. Então, se eu pudesse dizer algo à versão mais jovem de mim, diria: “Aproveite! Escreva, publique, se jogue! – porque depois você vai pensar demais e escrever menos do que gostaria”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou planejando, há algum tempo, traduzir um romance de um autor francês contemporâneo de que gosto muito. Já dei os primeiros passos, mas, devido a outros trabalhos e motivos, acabei não dando continuidade a esse projeto. Diria, então, que o livro que gostaria de ler e que não existe é minha tradução dessa obra.