Ângela Vilma é poeta e professora adjunta de Teoria da Literatura no curso de Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu começo o meu dia habitualmente péssima. É muito difícil acordar e dar de cara com o mundo, com a realidade. É doloroso. Eu acordo e fico na cama sofrendo, pensando, até ter a coragem de me levantar. Quase sempre acordo tarde, pois tenho insônia e durmo às 2, 3 horas da madrugada. Só acordo cedo quando preciso participar de alguma reunião, ou viajar, ou quando vou trabalhar à tarde, uma vez na semana. Nos outros dias acordo às onze horas, meio-dia, com uma tristeza danada. Encarar a densidade da realidade não é fácil, nunca foi fácil para mim.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho nenhum ritual de preparação para a escrita. Mas como sempre fui insone, a melhor hora para escrever é na madrugada. Sempre escrevi na madrugada. Mas muitas vezes a escrita me chama em qualquer hora, em momentos dos mais inusitados, seja no banheiro ou numa fila de banco; o jeito é sempre andar com papel e caneta para anotar as ideias, palavras soltas que surgem. Em minha casa, em todos os cômodos têm papel e caneta – apesar das canetas sempre incrivelmente desaparecerem. Não tenho ritual algum, sou uma pessoa desorganizada, e, como disse, a escrita é que me chama na grande maioria das vezes. Ela me chama pela urgência de minhas dores, de minhas perplexidades. Tem dias que estas dores não chamam, e eu fico quietinha no meu canto, dormindo ou assistindo a filmes, ou pensando.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu tenho períodos de escrita que são verdadeiros jorros; e outros períodos de grande seca. Estou no segundo caso. É quando a vida se impõe de maneira pragmática, me levando para longe da imaginação; nestes momentos eu só leio. Nunca tive meta para nada, apenas tive meta com relação à profissão. Não sou metódica; como disse, sou desorganizada. Mas o que nunca deixo de fazer, diariamente, é ler.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Só compilo notas para escrever quando a escrita é acadêmica. Mas escrever crônicas, poemas não exige notas, pesquisas. Eu me movo de mim para a escrita com algo que me tocou a alma. Aí a Palavra vai me levando, aparentemente sem rumo, mas com uma clarividência misteriosa. Neste momento todos os sofrimentos e dores são apaziguados até chegar à segunda parte da escrita, que é a limpeza; neste momento as dores de reescrever, limpar, surgem.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sofro muito porque sou a procrastinação em pessoa. Vivo ansiosa o tempo todo porque só deixo para fazer as coisas no último segundo do segundo tempo. Nunca consegui tranquilidade para viver; viver é um susto, uma preguiça, uma vontade de desaparecimento. Tudo o que é cobrado pela vida me deixa em estado parasitário. Encaro no último segundo, fazendo o que precisa ser feito, paradoxalmente, com muito perfeccionismo, com uma auto-exigência cruel.
O bom é que, mesmo em meio a todos estes problemas, nunca perdi um prazo. Talvez tenha me acostumado com a adrenalina e funcione melhor assim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu revejo à exaustão. Nunca o texto é revisto o suficiente. Borges disse que nós publicamos porque senão ficaremos a vida inteira reescrevendo. E é verdade. Poxa vida, é terrível e angustiante este processo de catar erros em busca de uma perfeição que nunca vai existir. Um texto nunca nasce pronto, obviamente. Ingênuo é aquele que acredita ser sua inspiração maior que a técnica que toda escrita exige. Por isso prefiro levar dez anos entre a publicação de um livro a outro, a publicar muito e me arrepender. Quando escrevo direto no facebook, muitas vezes logo depois apago. Ou então fico toda hora entrando na página para modificar.
Com relação a mostrar o que escrevo a outras pessoas, como uso muito o facebook, geralmente levo para lá. Antes do face, mostrava a alguns amigos escritores que me davam opiniões. A gente pede opinião e dificilmente a segue. Hoje como temos o facebook, há logo uma resposta imediata. O facebook é perigoso com relação a tais respostas. Todos sempre elogiam. Pode ser a maior besteira do mundo, os amigos elogiam. É perigoso demais; e foi por descobrir isso que parei de escrever poemas no face. Fiquei ainda mais cruel comigo: acho tudo que escrevo ultimamente muito ruim. Acredito que todo poeta deveria fazer autocrítica para não sair por aí publicando de dois a trinta poemas por dia, achando o que escreve muito lindo e perfeito, mandado por Deus.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Apesar de não entender nada de tecnologia, de odiar a tecnologia, não escrevo à mão. Só anoto ideias. Escrever é direto no computador. Quando não tinha computador, era na máquina de escrever. Minha cabeça pensa muito rápido e minha mão não acompanha. Sempre tive, desde criança, muita dificuldade de escrever à mão, justamente por conta da rapidez de minha cabeça e a lentidão de minha mão. Foi aí que resolvi isto aos 15 anos, fazendo o curso de datilografia. Hoje vejo meus cadernos de menina, com poemas todos rabiscados, num ensaio de labirinto perverso: riscando, riscando, procurando caminhos. Neste ponto a tecnologia foi boa: basta um toque no delete e isto se resolve.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acredito que minhas ideais vêm das leituras que faço: nos livros e no mundo. Acredito que a criatividade vem do anseio para transformar o sofrimento em alguma coisa, e aqui estou citando novamente Jorge Luis Borges. Ele disse que a felicidade a gente vive, mas a infelicidade precisa exige ser transformada em alguma coisa. Por isso existe a arte, a literatura. O sofrimento me leva a ler a vida e o mundo, tentar compreender este embaraço que é viver. A criatividade nasce em tentar compreender tudo isso. De repente o resultado pode ser a felicidade, a ternura; uma alegria franciscana de ver sua criação: um texto, um poema, ou simplesmente ter compreendido o olhar de seu gato.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
O que mudou foi que eu estou amadurecendo, aprendendo todos os dias que não sou a bambambam que aos vinte anos eu achava que eu era; não sou mais a “poeta municipal”. Quando jovens, sempre nos acreditamos gênios. Com o tempo a gente cai na realidade e percebe mais defeitos do que grandes acontecimentos na nossa escrita. Ao longo dos anos desenvolvi mais a técnica, acreditei menos no meu potencial para a escrita, duvido muito dele. A dúvida é algo saudável. Acreditar ser um gênio é absolutamente imbecil.
O que eu diria àquela menina de 12 anos que começou a escrever seus primeiros versos? Diria: “Continue escrevendo, menina; um dia você vai entender que sua vida só tem sentido mesmo com estas duas coisas: ler e escrever”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho ideia para muitos projetos, gosto de muitas coisas, mas as procrastinações me desviam. Porém, tenho projetos já iniciados e pretendo aprofundar: sobre a velhice, sobre o cinema, sobre a psicanálise, tudo isso relacionado à literatura. Quanto ao livro que gostaria de ler e ainda não existe, nunca pensei nisso. Acredito que os livros chegam para mim sempre como sortilégio, magia: os livros têm uma sintonia, uma sincronicidade com o nosso interior. E quanto à segunda pergunta: acredito existirem livros no mundo para todos os assuntos, todas as angústias sem resposta: os livros são os depositários das intuições sem nome, que nos acalmam e nos ajudam a ir vivendo.