Angel Cabeza é poeta, cronista, produtor editorial e gráfico.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Com um resquício de trevas nos olhos. Somos assim, não? Uma parte escura, outra branca… Poesia à parte, não sigo rotinas, talvez as comuns: faço minhas abluções, arrumo-me rapidamente e devoro livros. Como trabalho no mercado editorial, estou sempre a ler, reler, observar, concatenar experiências para produzir para outros escritores. Acordo pensando em livros, durmo pensando em livros e vivo como uma espécie de “homem folha”. Acho que muitos são assim, não? Entre um projeto e outro teço o meu próprio. Poemas e crônicas. Não tenho organização alguma para escrever e só crio em meio ao caos: ônibus, trabalho, ruas, exposições, restaurantes, cafés… Já tentei seguir rotinas, mas se me sento numa cadeira frente ao papel, não consigo. Acho que a canalização dentro do caos diário, do sofrimento humano, faz com que eu consiga gerar algo que valha. Metodicamente não funciona. Gostaria de ser como muitos que se sentam num determinado horário e extraem não sei quantas palavras. Mas só o caos é minha bússola.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor em horário comercial. (risos) Funciono apenas nos momentos de intensa atividade do mundo comum. No trabalho, por exemplo. Estou lá e um texto me vem gritar aos ouvidos. Parece-me que quanto mais agitado, mais o fluxo se movimenta. Sou aquele sujeito que ri sozinho olhando através da janela de um ônibus e pensando em algo novo. Já escrevi muito dessa forma. E já li muito também. Prefiro ler e escrever na agitação, talvez por me livrar desse sufocamento de cimento. Imagine um Jonas engolido por uma baleia de metal. Sou eu cotidianamente. É lá, no estômago da baleia, que produzo.
A preparação para a escrita é não estar preparado, como se ela me chamasse por um súbito assobio, como conhecidos ao se cruzarem na rua. Mas não posso estar desguarnecido para esse encontro. Levo comigo cadernos, canetas, o que possa me ajudar no registro de alguma ideia. Já fui o sujeito que andava com a bolsa cheia de folhas e cadernos. Com o advento de celulares “mais avançados”, praticamente computadores portáteis, abandonei um pouco o papel e o registro ficou muito mais ágil. Ainda carrego comigo pequenas brochuras, mas escrevo também no celular e passo para o computador posteriormente. Além disso, mudo o foco da visão para ser mais receptivo. O que vale está nas coisas que ninguém observa. Repare como as pessoas andam nos grandes centros urbanos, cheias de cinza e número. Ando olhando para cima ou para baixo. Se um pássaro corta o céu, pode ser que nele more um poema; se uma formiga desloca o concreto, pode ser que nela more um horizonte. Usei muito esse artifício ao escrever crônicas. Meu segundo livro chama-se Sempre existe um último momento e nasceu da observação. São textos sobre a condição humana nos relacionamentos. O título é um texto que compõe a obra e fala sobre o fim de tudo. Estava eu sentado numa praça e notei um casal a brigar. Pensei “tudo é fim e início. Por mais que tentemos, jamais nos afastaremos do fim de algo, até mesmo no amor”. E então corri para escrever a crônica. Posso dizer que se eu não ousasse me “meter” na vida alheia, no mundo, nas pequenas coisas que ninguém liga, jamais escreveria. Sempre existe algo pronto para ser capturado. Nesse aspecto sou um flâneur antes de mais nada. O método é a leitura e a caminhada.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas, apenas deixo o texto fluir. Se hoje vou ao mercado, por exemplo, pode ser que lá algo me espante e eu escreva um poema ou crônica. Como diria Gullar, o espanto fascina. É dele que nasce o poema. Com prosa é um pouco diferente, pois preciso observar bastante, retirar algo sutil e engraçado do cotidiano (o cronista que mora em mim é diferente do poeta, seja na voz ou no peso). Como sou uma pessoa hiperativa, concentração é o que menos ajuda. Claro que ela é necessária em outra etapa do processo, a lapidação. Mas no momento da criação não há concentração que vá além do papel ou tela, e isso momentaneamente.
Como citei anteriormente, gostaria de escrever diariamente; sentar e passar algumas horas redigindo centenas de palavras. Muitos escritores conseguem isso e acho magnífico. Não sofrem com problemas comuns como perder ideias, esquecer palavras, canetas ressecadas, baterias acabando… Já cheguei a pedir caneta e papel para estranhos com a desculpa de anotar um endereço.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Penso nesse processo como uma ventania. O poema ou a ideia aparece do nada, sem aviso. Pode ser apenas uma palavra, uma imagem. O canto da cigarra, por exemplo, fez com que eu escrevesse um poema chamado “Músculo”, uma analogia. Algumas vezes o poema inteiro se concretiza, o que é raro. Na maioria das vezes anoto a palavra ou escrevo o poema no caderno ou celular. Releio tudo para ver se vale continuar ou se descarto (e como jogo coisa fora!). Após o período de maturação, releio novamente e inicio trocas, cortes, aplicação de sinônimos, metáforas, imagens… Trabalho no texto exaustivamente até que consiga algo com alguma qualidade. Depois de publicado (ou não), volto ao texto. Acredito que, embora nunca esteja bom o suficiente, ele precisa ser cicatrizado.
Não é muito difícil começar, mas o trabalho de escrita é bloqueado muitas vezes, seja por afazeres diários ou problemas com as musas. A mão às vezes seca. Tem poemas em que me debrucei por meses. Já me esforcei por um ano para escrever um único poema, pois ele não queria nascer. Muitos morrem pelo caminho.
Não sou um “pesquisador” propriamente. Se você pensar no fato de eu estar sempre em movimento, andando, observando, talvez o seja. Pesquisa mesmo só nos dicionários, manuais de sinônimos e regras. Acho que o ofício no mercado me fez cuidadoso com a palavra. A própria leitura dos meus cômpares faz com que eu busque uma qualidade, o apreço pela linguagem. Não sou um parnasianista que acredita na arte pela arte, na poesia pelo caráter estético apenas. Procuro dosar a estética com uma espécie de inspiração que toque o leitor. Em outras palavras, quero que tanto o doutor quanto o padeiro entendam, o que nem sempre é possível.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando William Golding escreveu O Senhor das Moscas, a crítica não foi muito receptiva (não apenas com ele, mas com muitos). Ele ficava extremamente ansioso. Sou um pouco assim, mas não adoeço por isso. Trabalho no meu tempo, sempre observando o que acontece ao redor, o que existe, quem se destaca ou não. Também conheço os bastidores do mercado e sei como a máquina funciona, portanto não tenho expectativas em relação ao que acharão da minha obra. Mas isso não exclui o desejo de que a mensagem atinja o receptor e seja deglutida de forma positiva. Acho até interessante esse negócio de “escrevo para mim mesmo e não me importo” ou “não penso em ninguém quando escrevo”, mas não compactuo dessa idiossincrasia, se é que posso chamar assim. A escrita tem algo de biográfico e liberta-nos do sufocamento diário, então desejo que o poema fira o leitor. Quem escreve almeja algo, seja eternizar uma memória ou solidificar uma experiência. Escrever por escrever, apenas como ato, não funciona comigo. Acho que há um certo romantismo em quem acredita nisso, como se o processo fosse intocável, algo além do humano, não sei. Desejo que os leitores gostem, comentem, partilhem da mesma sensação. Muitos textos, sejam poemas ou crônicas, são assuntos que me tocam; outros são comuns ao mundo. Se o trabalho de observar algo que o leitor não viu me sensibilizou, evidente que desejo a ele o mesmo sentimento, a mesma sensação. Pode não ocorrer, mas a finalidade é essa: como poeta liberto-me desse mundo fatídico e pesado e tento libertar ou abrir os olhos do leitor para esse estímulo. Uma mensagem numa garrafa que sucumbiu ao oceano foi uma mensagem sem finalidade. Mas essa é apenas a minha visão. Temos outras interessantes por aí.
Por estar sempre atento acho que a procrastinação é normal. O mundo faz com que tenhamos que deixar de lado muitas coisas. Posso estar no meio de algo e a necessidade de sobreviver pedir outra coisa. Normal e saudável. Posso fazer muitas coisas ao mesmo tempo, o que é comum para mim. É preciso ir na rua comprar o pão, não? Contudo, penso na literatura como uma forma de simbiose. Vou comprar o pão, mas escrevendo. Mesmo quando não crio nada, penso e idealizo. Minha mente não para. Não vejo separação entre vida e literatura. Uma não existe sem a outra. A sensação é de alívio quando finalizo algo. Sou como Sísifo e sua pedra. Isso é uma doença, doutor? (risos)
Não penso em projetos longos. Não sou romancista ou contista. O mais próximo disso seria a crônica, mas também não penso nela dessa forma. Simplesmente escrevo. Se grande ou pequeno, não sei. Sigo o que o texto me pede.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso até depois de publicados. Sempre posso melhorar algo, essa é a verdade. É uma insatisfação, uma minúcia, que só quem escreve entende. O problema é dosar isso: alteração necessária ou preciosismo de autor?
Escrevo na solidão. Quando algo está pronto (ou quase) e desejo algum retorno, quem me acompanha em casa lê em primeira mão. Essa leitura primordial, de um leitor comum sem o pensamento crítico-literário, norteia muito minha obra. Também tenho uma amiga, excelente revisora e leitora voraz, que discute comigo sobre literatura. Isso também me influencia. E tenho outro amigo, poeta e contista, com quem partilho coisas em comum. Algumas vezes mostro algo ou ele mesmo comenta sobre o que leu. Não mostro para mais ninguém. Sou recluso nesse aspecto. Não saberia como abordar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo muito em computadores. O costume do pensamento ágil não comporta mais o papel em todas as etapas do processo de criação, pelo menos para mim. No computador as coisas são mais rápidas. Enquanto digito, apago e reescrevo com a mesma velocidade do pensamento. Essa agilidade de comunicação só a tecnologia oferece. João Ubaldo comentou isso uma vez. Sem citar as consultas, dicionários e informações que você cruza para o resultado final e estão disponíveis na rede.
Se você souber usar as ferramentas, será recompensado.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Todas as ideias vêm da observação. Não acho que seja apenas criatividade. Deixo que o fluxo aconteça naturalmente. Também não acredito apenas em inspiração como Adélia, mas não sou radical como Drummond. É uma dose dos dois. Não preciso me esforçar num primeiro momento. Como disse, sou um flâneur. Não há nada que não esteja aqui conosco. Sou um observador do chão, das coisas ínfimas, do cotidiano humano. As pequenas agruras me deliciam. Sou existencialista. É dessa matéria bruta que sai o meu trabalho. Gosto muito de observar o outro, como se estivéssemos em um grande parque. E então nascem crônicas, poemas, ou ideias que norteiam algo. Tudo o que leio também se transforma em influência. Quer ser criativo? Leia seus autores preferidos, os grandes autores, os pequenos. Quando você entra em contato com outras literaturas, a formação de ideias é modificada. É um brainstorming maravilhoso. Não é copiar ou plagiar um autor como forma de alcançar algo. Quando você lê, movimenta-se internamente. Isso gera uma infinidade de informações que resulta em trabalho artístico.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Uma palavra: amadurecimento (pessoal e literário).
Não há como escrever sem adquirir experiência. Se você não viveu, o que pode contar? Não é apenas ficção. Há algo de biográfico, sempre. Pelo menos para mim. Acho fantástico escritores que conseguem aos vinte anos algo grandioso. Rimbaud, os românticos em geral, até mesmo os contemporâneos. Mas para isso é necessário ler muito e muito e absurdamente. E quando você acreditar que leu bastante, leia mais. Só então você retira a matéria. Viver e perceber o entorno também é necessário. Uma coisa interessante do período romântico brasileiro é que os poetas, em geral, morriam cedo. De doença, de desgosto… Entretanto, nunca vivenciaram aquilo de fato. Eles morriam por acreditar. O corpo adoecia pela imaginação. Sabe a história da “mente sã, corpo são”? Funciona. Estudei o período romântico e o fato é que um jovem de 22 anos não poderia morrer de desgosto, na boemia, se não vivesse como um boêmio. E como faziam? Sentiam e acreditavam naquilo. Por isso digo que não existe escrita sem observação. Eu mesmo mudei a forma de lapidar as palavras, as imagens. A leitura me trouxe isso, um novo vocabulário, uma nova forma de ver.
Se pudesse, teria dito para mim mesmo: “não publique isso agora. Espere. O tempo deteriora, mas também molda”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gosto muito de teatro e desejo, quem sabe um dia, escrever uma peça. É algo que penso desde quando comecei a escrever. Sou frequentador de teatro. Entretanto, não saberia por onde começar, pois envolve uma série de questões. Gostaria mesmo é de tempo para ler os livros existentes e que me fazem falta. Tem muito material que não conheço sendo produzido e perdido pela agitação diária.
A vida é curta demais para todos os livros, essa é a realidade.