Anelito de Oliveira é poeta, ficcionista, crítico, ensaísta e editor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Que pergunta difícil! Muito inusitado – cada dia começa de um jeito, transcorre e acaba de outro jeito. A única rotina é mesmo abrir os olhos, olhar o teto de um quarto, as paredes, a janela e, às vezes, o que se apresenta depois da janela. Nem sempre durmo e acordo no mesmo quarto – viajo muito, cada vez mais, fico muito em hotel e, ultimamente, em hostel.
Nos últimos três anos, passou a fazer parte do meu despertar a recorrência ao Smarthphone, que resisti a usar até 2016. O celular acabou por piorar minha desrotina matinal. Costumava dormir e acordar lendo, com um livro impresso nas mãos, desde os 16 anos. Agora tenho dormido e acordado lendo os conteúdos tantas vezes inúteis do Facebook, do WhatsApp, do Google e até de duas caixas de Emails, que raramente abrigam qualquer coisa de interessante atualmente.
Desperto-me nesse cenário bestial, centrado no digital, e prossigo pela manhã – quando acordo antes de meio dia, raramente, pois só consigo dormir muito tarde. Raramente consigo escrever de manhã. Gostaria de acordar cedo, bem disposto, depois de dormir um sono bom. Mas realmente nunca tive nem tenho isso que, para mim, seria um privilégio. Acordo de qualquer jeito, depois de dormir geralmente mal. Cada vez pior.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevi quase toda minha produção criativa de madrugada, quando me sentia mais livre, num ambiente mais calmo, depois de passar o dia todo embaraçado em atividades práticas para ganhar a vida.
No final dos anos 1980, quando comecei a produzir textos de criação literária, escrevia à tarde, no intervalo entre uma atividade profissional e cursos noturnos – Técnico em Contabilidade, inicialmente, e Letras, depois. Naquele período, vivendo ainda em Montes Claros, norte de Minas Gerais, trabalhei como datilógrafo num Colégio, no ano de 1988, e depois como repórter em vários impressos locais, nos anos de 1989 e 1990.
Em 1991, já morando em BH, passei a trabalhar em assessoria de comunicação de entidades sindicais e a escrever resenhas, algumas remuneradas de modo bem modesto, para os jornais “Estado de Minas” e “Minas Gerais”.
Tanto em Montes Claros quanto em BH foram tempos de muita dificuldade, de muito trabalho e pouquíssimo dinheiro, de muita privação, pobreza, angústia.
Em BH, já com dois filhos, corria atrás, como já se dizia, obsessivamente, tentando encontrar, sempre em vão, alguma oportunidade de trabalho que me permitisse escrever com tranqüilidade, ser escritor profissional, que significa ter reconhecimento financeiro pelo trabalho de escrita.
Como nunca consegui nada, o jeito era me dedicar à literatura (ler, estudar, escrever) de madrugada, como uma atividade clandestina.
O ritual era – e continua sendo – parar, com a cabeça rachando de problemas, e escrever, que muitas vezes consiste em reescrever, elaborar rascunhos feitos na rua, em bibliotecas públicas, dentro de ônibus, em guardanapos de mesa de café.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Ao longo de mais de 30 anos já de ofício, o momento de escrita variou muito, em consonância com a relação com a escrita, que, no meu caso, nunca foi uma relação de paz e amor, de auto-complacência.
Escrever, para mim, sempre foi muito mais um desejo de escrever, de poder escrever, que não tenho qualquer pretensão ainda de considerar realizado. Queria, e ainda quero, escrever diariamente, mas nunca pude, de fato, contar, na maioria das vezes, com condições mínimas de produção, tampouco com condições ideais.
Escrever, como qualquer trabalho, não é algo que se possa fazer sem investimento de capitais, a começar pelo capital tempo, passando pelo capital psíquico e chegando ao capital dinheiro.
Acaba que a falta de capital financeiro complica decisivamente o trabalho do escritor: como escrever sem pagar as contas de aluguel, luz, água, telefone, internet etc? Evidente que inúmeros autores escreveram em condições as mais adversas, e escreveram obras-primas, mas só um olhar romanticamente cínico, típico do burguês catolicista, para associar sofrimento físico a qualidade artística, para entender que escritor bom é escritor miserável – e morto.
A grande obra literária, artística em geral, é diretamente proporcional à liberdade efetiva, material – não apenas espiritual –, do seu criador. A falta de capitais diversos – e a de capital financeiro, em especial – compromete a liberdade do escritor, que passa a se ver obrigado a negociar sua escrita, a escrever com medo, a conter sua criticidade, a anulá-la, na maioria das vezes.
Assim, para não “vender”, para não “prostituir”, minha criação literária, sempre trabalhei muito em outras coisas – jornalismo, assessoria, edição, produção cultural, pesquisa, magistério etc –, não podendo, por isso mesmo, ter um planejamento rígido em termos de tempo para a escrita, bem como de meta diária de escrita a atingir.
Sempre escrevo o que posso, como posso, no tempo em que posso, nunca o que quis, como quis, na hora que quis escrever.
Por outro lado, em razão disso, também nunca ganhei nada, além de alguns raros elogios, alguma respeitabilidade crítica, pelos meus escritos literários; pelo contrário, até perdi um certo dinheiro investido na produção de alguns livros.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita varia muito, variou ao longo dos anos, de acordo com as circunstâncias.
Comecei escrevendo à mão, num caderno, por volta dos 15 anos, quando não sabia sequer que o que estava fazendo era literatura – apenas sabia que era algo diferente com as palavras.
Passei a escrever à máquina ali pelos 17 anos, comovido pela impressão de que estava entrando numa relação mais séria com a escrita.
Escrevia e reescrevia, sempre muito entusiasmado, achando muito cômodo, confortável, um exercício lúdico até – o barulho do toque nas teclas do teclado me soava musical.
Inicialmente, escrevia à mão e depois passava a limpo na máquina de escrever; depois passei a escrever direto à máquina, principalmente contos e crônicas.
A maior parte dos textos reunidos n´O iludido, publicado pela Páginas Editora em 2018, foi produzida numa máquina de escrever marca Remington no período de 1990 a 1994.
Também a maioria dos textos que integram meu segundo livro de ficção a ser publicado este ano, intitulado A menina chinesa, foi produzida nessa mesma máquina no início dos anos 1990.
A máquina de escrever ainda me possibilitou experimentar novas possibilidades de figuração da linguagem poética, como a espacialização, a alternação entre maiúsculas e minúsculas, o uso de cores – vermelho, verde, preto -, o uso de sinais, como “&” e “/”, enfim, elementos simples que me deram uma ideia, digamos, de expansão do horizonte semântico da poesia verbal escrita.
O uso da máquina significou, no meu processo de criação, a aquisição espontânea de uma certa racionalidade, que demarca um desejo de profissionalismo que, desde o início, levou-me a uma auto-imagem que se diferenciava da maioria dos companheiros de geração – eu não queria apenas brincar de escrever, não era coisa de adolescência.
Três coletâneas ainda inéditas produzidas entre 1991 e 1995 – intituladas Objetos do medo, Esboço de uma máquinae Parque feiete– documentam essa racionalização.
A partir de 1996, passei a utilizar computador, que altera decisivamente a minha relação com a escrita, assim como se deu com quase todos os autores que começaram a escrever na era pré-informática.
A principal alteração, no meu caso, foi de ordem ética: passei a me preocupar mais ainda com a preservação da diferença em face de uma máquina homogeneizante, em fazer, com o uso do novo meio tecnológico, algo autêntico, próprio.
Minha preocupação maior, depois do computador, passou a ser como resistir às facilidades, ao quantitativismo, estimuladas pelo computador.
A partir dos anos 2000, com a internet, essa preocupação aumentou cada vez mais, a ponto de eu chegar a uma crise criativa que dizia respeito não à produção, mas à difusão do meu trabalho de criação.
Passei a resistir radicalmente a publicar minha produção, entendendo que a internet, com a facilidade de autopublicação, tinha banalizado a ideia de literatura.
Essa crise durou cerca de seis anos, entre 2005 e 2011, período em que não publiquei nada de criação em livro, somente alguns poemas nos blogues www.anelitodeoliveira.blogspot.come www.revistaorobo.blogspot.com.
O livro de poemas que publiquei em 2004, Três festas / a love song as Monk (Anome Livros/Orobó Edições), expõe elementos ideológicos constitutivos dessa crise, como o consumismo, o narcicismo, a ostentação, a virtualização, a imbecilização, tudo isso que alimenta as redes sociais.
Voltei a publicar livros de criação em 2012, convicto de que a literatura é um dispositivo de negação da negação, em termos hegelianos, de negação das forças ditas positivas que nos negam. As redes sociais são, do ponto de vista ideológico, uma monstruosa força negativa.
Em suma, meu processo de escrita começa na ferramenta de escrita – na caneta, na máquina, no computador -, passa por uma relação sempre crítica com a própria criação e se agudiza a partir da apreensão de elementos históricos, materiais, da vida social em processo.
Há sempre pesquisa de formas, conteúdos, problemas de vária ordem, mas o meu movimento de criação é sempre inusitado, sem pré-determinações – um movimento estranho.
Sempre faço muitos rascunhos, rabiscos, esboços, projetos do que gostaria de escrever, mas acabo escrevendo, dando por uma escrita literária, aquilo que considero que posso escrever.
Poder escrever se sobrepõe a querer escrever, no meu caso, e, por isso mesmo, assumo as tantas falhas das minhas escritas – são escritas possíveis de um outro que, contra todas as adversidades, ousa escrever.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nunca tive facilidade para escrever. Sempre escrevo em meio a muita dificuldade de escrever, sem saber se realmente chegarei a escrever, se o que estou escrevendo resultará em algo auto-sustentável dentro dos gêneros discursivos que pratico – poema, conto, crônica, novela, ensaio etc.
Não se trata de dificuldade proveniente de expectativa em relação ao leitor, de querer corresponder aos interesses de supostos leitores. Nunca pensei nem penso em agradar leitores, mas em estabelecer um diálogo produtivo, honesto, franco, crítico, com possíveis leitores sobre questões comuns, sociais.
Minha dificuldade não é exatamente de fundo, pertinente ao “o quê” dizer, mas de forma, pertinente ao “como” dizer.
O fundamento dessa dificuldade está no meu mal-estar na cena da escrita literária: não escrevo a partir de um lugar confortável, mas de um lugar desconfortável, que tem a ver com minhas especificidades étnico-raciais, sociais, econômicas e políticas, com a experiência histórica de um subalternizado, descendente de escravos, filho de trabalhadores explorados, que nunca tiveram direito ao exercício da cidadania plena, com seus direitos sociais e humanos garantidos.
Quaisquer textos que me vejo estimulado a criar estão, por uma questão de honra, vinculados a um desconforto na literatura, num lugar dominado por valores etnocêntricos, logocêntricos, burgueses, brancos, colonialistas, lugar que, por isso mesmo, não é meu enquanto grupo sócio-étnico-racial.
Tento, com a própria escrita literária, destruir esses valores constitutivos do lugar da literatura no jogo societário, converter o meu lugar de fala – o lugar do escritor – num lugar de vala, de buraco, de abismo, de ausência.
Daí, frequentemente, os impasses, as crises, os silêncios. Escrever é, para um escritor, também não escrever, resistir a escrever, lutar com a escrita. Não é algo necessariamente mallarméano, desejo de dizer o indizível, mas apenas uma perspectiva negativa em face da ideia positiva de literatura, que é ideológica.
Essa ideia, que encontramos nos autores mais vendidos (em todos os sentidos), equipara produção literária e dominação política, como se vê no Arcadismo, no Romantismo, na Geração de 45 e em parte considerável da produção literária brasileira dos anos 1990 para cá, com o triunfo do cinismo.
Na prática, não é nada fácil passar por longos períodos de impasse, de crise, sem conseguir engatar qualquer projeto de escrita criativa mais consistente.
Publiquei dois livros este ano – Os acampamentos insustentáveis(Kotter Editorial) e Degredo: poema-fronteira(Sangre Editorial) – e dois ano passado – Traços: poema-andante (Patuá) e O iludido (Páginas Editora) -, mas são trabalhos produzidos nas últimas três décadas, para os quais só agora encontrei editoras.
Ainda este ano devem sair mais três ou quanto trabalhos, dois de poemas, um de narrativas e um de ensaio, mas também são coisas produzidas de meados dos anos 1990 até 2018 – uns poucos textos produzidos nos últimos seis anos.
Atravesso neste momento, na verdade, um dos impasses mais profundos no meu trabalho de criação e de reflexão crítica, com características que eu até então desconhecia.
Sinto, às vezes, que já não tem sentido continuar escrevendo textos de criação, tampouco de crítica, que, no meu caso, sempre foi extensão, reverberação, da experiência de criação.
Tenho muitos projetos de prosa de ficção, alguns interrompidos, outros ainda em fase de concepção, mas realmente não sei se conseguirei executá-los.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Raramente considero que um texto está pronto. Escrevo, reescrevo, escrevo e guardo. Certos textos ficaram guardados durante anos, como aquele que saiu como meu primeiro livro, intitulado Lama, um poema longo fragmentado, formado por peças aleatórias, publicado pela Orobó Edições em 2000, material produzido no período de 1994-96.
Há textos que ficaram décadas guardados, como onze dos treze que integram O iludidoe os “registros”, como os chamo, que integram Os acampamentos insustentáveis, material produzido no período de 1994 a 2014.
Reviso tudo que escrevo exaustivamente e publico apenas aquilo que me parece corresponder à dinâmica interna de cada trabalho, não ao meu desejo estético ou político, digamos, ainda que essas dimensões pesem na minha compreensão da dinâmica interna do trabalho.
Geralmente, não mostro os trabalhos de criação a outros quando ainda os estou construindo porque acredito que a criação atende a uma demanda muito peculiar, interior, antes de atender a qualquer demanda externa.
A demanda externa é importante, mas não a ponto de decidir o ato criador, sob pena de esse ato perder sua referência de autenticidade, que é o DNA, digamos, do seu criador.
Vejo a criação como um problema entre criador e criatura, um acerto de contas, um encontro difícil, um face-a-face.
O trabalho do escritor é mesmo solitário, um combate na sombra, também em razão do desinteresse da maioria das pessoas por esse trabalho, um desinteresse que conheci bem ao longo da minha trajetória.
Às vezes, queremos mostrar o que escrevemos para alguém, claro, mas não encontramos quem tenha interesse real por esse trabalho, que queira lê-lo e comentá-lo.
Sempre foi assim, mas, sem dúvida, essa situação se agravou muito nas últimas três décadas com a explosão do consumismo, da cultura do entretenimento, dos shoppings centers, dos eletrônicos, das redes sociais etc.
Tornaram-se raras as pessoas interessadas realmente em literatura, leitores de textos literários impressos são animais em extinção.
Há editores, professores, agentes literários, feiras literárias, saraus, revistas digitais aos montes, um excesso de autores – todo mundo escreve! –, mas leitores de textos produzidos por um escritor, por alguém empenhado em construir uma obra, são poucos, geralmente amigos – e tenho apenas alguns, que só raramente ouso incomodar com meus escritos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos a mão ou no computador?
Sempre conflituosa. Coloquei-me já nos anos 1990 publicamente contra o deslumbramento com a tecnologia no âmbito da criação poética, especialmente. Publiquei, no Caderno Pensar do jornal “Estado de Minas”, um ensaio chamado “Contestação da harmonia”, em que combatia a subserviência pura e simples, no Brasil, às “tecnologias da inteligência”, como Pierre Lévy tratava, em livro então recém-saído no país, o PC e quejandos.
O que me incomodava, e ainda incomoda, é a tecnologia de ponta provisória, já que novas tecnologias aparecem hoje em dia constantemente, ser imposta como um valor em si, absoluto, que não pode ser questionado por ninguém.
Essa imposição é um atestado estridente de perspectiva colonialista, que ignora perversamente a dimensão ideológica de que as tecnologias estão revestidas.
Meu encontro com o computador se deu exatamente num momento decisivo da minha formação, quando eu estava imerso na compreensão das contradições da sociedade brasileira em escala histórica, das origens à contemporaneidade.
Não vi o computador como uma salvação, mas antes como uma inquirição, não como uma solução, mas antes como um problema.
Jamais pensei se tratar de uma máquina que poderia aprimorar meu processo de escrita criativa, por exemplo, a ponto de torná-lo mais valioso, porque o valor desse processo não seria exclusivamente de ordem aparente.
Noutras palavras, o computador não poderia dotar o meu processo daquilo que ele não tinha, enriquecê-lo.
Os muitos recursos do computador foram e ainda são importantes sobretudo para a minha criação poética, permitindo-me desenvolver poemas visuais como “Fiat lux”, “Estrelas” e “Sol”, todos publicados pela Revista Dimensão, editada pelo poeta e ensaísta Guido Bilharinho durante os anos 1980 e 1990 em Uberaba (MG).
O computador também facilitou a produção da minha obra ensaística e crítica, inúmeros textos ensaísticos, além da minha produção editorial, inúmeros livros editados pela Orobó Edições e pela Inmensa Editorial.
Todavia, o advento do computador não me levou a abandonar a escrita à mão. Continuei e continuo a escrever bastante à mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não é fácil determinar um lugar de onde vêm as “minhas” ideias, até porque tenho uma certa dificuldade de definir o que são as “minhas” ideias, no sentido filosófico, no trabalho de criação.
Lido mais com impressões do que com ideias propriamente ditas, isto é, com algo distinto de coisas, resultante de uma elaboração racional, lógica, dialética até.
Dei à segunda coletânea de poemas que organizei no ano de 1991, ainda inédita, exatamente o título de As ideias com corpo, enunciando, de modo bastante intuitivo, uma articulação, uma conjugação, entre os campos subjetivo e objetivo que reconheço como característica do meu modo de criar.
Creio que minhas ideias sejam coisais, atravessadas de vida experienciada, tanto em prosa quanto em poesia, sempre o desejo de atravessar a massa de signos indiciais em direção a uma iconicidade, à representação de uma materialidade que possa sugerir, jamais definir ou impor, uma verdade transtornada.
Desde cedo, moveu-me e continua a me mover a intuição de que a escrita criativa, literária, deve ser desconfiada de si mesma, colocar-se perante si mesma numa posição crítica.
A literatura que se compraz consigo mesma é “le reste” da “L´art poétique” de Verlaine, o excesso inútil, um enfeite que nada acrescenta realmente ao que importa na cultura do texto criativo, mero protocolo institucional.
Um escritor que se respeita, que trabalha a partir de um preceito de ética da responsabilidade, que não se subordina a quaisquer conveniências, entra em atrito com a literatura, no sentido positivo, a fim de afirmar o próprio sentido negativo que define, no fim do século XVIII, a literatura como coisa contra-ideológica, como contra-verdade, como discurso proibido.
Assim, os hábitos que cultivo são aqueles que me estimulam a criar sempre criticamente, na contramão do discurso oficial: ler autores estranhos de épocas e lugares estranhos – latino-americanos, africanos, orientais, especialmente – dos campos da criação e da reflexão crítica, ver filmes e ouvir músicas de artistas consagrados e novos que se colocam no horizonte insubordinado das vanguardas do fim do século XIX e XX, acessar a produção teatral, plástica e performática dos “outsiders”, assistemáticos, desocidentalizantes, ex-cêntricos, mas, sobretudo, andar ao léu por cidades diversas, em transportes diversos, olhando, ouvindo, falando, pensando, num permanente exercício de aprendizado de mundo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Escrever para mim sempre se confundiu com lutar para escrever, para poder escrever, inicialmente, e para poder continuar escrevendo, depois. Meu processo mudou e continua mudando em razão dessa luta, que evidentemente só se explica a contento em termos sociais, econômicos e raciais.
Não se espera que alguém nascido na pobreza, com os problemas financeiros diários comuns aos pobres, e, ainda por cima, negro, escreva, dedique-se a uma atividade considerada tão nobre, burguesa, branca.
Espera-se ver negro e negra trabalhando na construção civil, lavando chão ou carro de rico, dirigindo caminhão ou vigiando prédio, puxando enxada ou jogando futebol, consumindo ou vendendo drogas ilícitas, cantando pagode ou cumprindo pena num presídio, não escrevendo, publicando livro, assumindo-se como intelectual.
Assim, para um negro ou negra, a questão nunca é apenas sentar-se e escrever, encaminhar originais para editoras e ficar aguardando sorrindo, com a caneta na mão, o dia do lançamento, o convite para as feiras literárias, o contrato milionário de algum produtor de cinema.
Antes, durante e depois da sua dedicação à escrita literária – esse investimento a fundo perdido -, aquele ou aquela que, sendo negro ou negra, que deseja escrever, precisa resolver um monte de problemas de vária ordem, inclusive psíquica, filosófica e jurídica, entregar-se a uma luta que muitas vezes significa a morte, a desistência.
Não é fácil, para quem é percebido frequentemente como não-humano, como burro-de-carga, como mercadoria, como coisa, reconhecer-se como apto a exercer uma tarefa fundamentalmente vinculada à ideia de humanidade, que é escrever, enfrentando, antes de mais nada, a indiferença, as hostilidades, de parentes e amigos.
Tive e continuo a ter a experiência de um conflito: será que devo mesmo me dedicar a ser escritor? Será que caibo nesse lugar? Será que não deveria deixar isso para os brancos e brancas burgueses, que vivem confortavelmente em suas casas luxuosas, que têm seus excelentes empregos no Estado brasileiro?
A operacionalização produtiva, pró-ativa, desse conflito só é possível a partir de uma desconstrução derridiana – não há dúvida – da episteme, do conhecimento, estruturante da produção literária, de modo a, no limite, desmascarar a lei do “tertium non datur” que a preside, o aristotélico princípio do terceiro excluído: “A” é escritor, “Não-A” não é escritor e “B” ou outro “elemento” (o “elemento” escritor negro, por exemplo) não vem ao caso, é um terceiro que se exclui por uma questão lógica do campo literário, em nome da boa saúde desse campo.
Essa compreensão intolerante, que evidentemente embasa ordenamentos jurídicos internalizados pelas sociedades, só pode ser revertida a partir de um tensionamento também de base jurídica, a partir do entendimento da literatura como direito, como formulou Antonio Candido, também da perspectiva do escritor negro, e como direito, neste caso, fundamental ao processo de emancipação humana das comunidades afrodescendentes oprimidas, aquelas que são efetivamente negras, consideradas ameaças ao reinado eterno de brancos e brancas, Senhores e Sinhás também, talkei? (rsrs), etnologocêntricos, fascistocêntricos ridículos.
Deste modo, sempre a partir das bordas mais selvagens – porque é a partir dessas bordas que realmente penso –, chego ao núcleo da primeira parte da pergunta para ferir (que belo tempo em que se usava este verbo no sentido clínico de “tocar”!) objetivamente a segunda parte da pergunta.
Em termos estritamente textuais, mudou, no meu processo criativo, o parâmetro de construção.
Tinha como parâmetro, no fim dos anos 1980 e parte considerável dos anos 1990, o estético; a partir dos anos 2000, esse parâmetro passou a ser o ético.
A problemática da forma, geralmente associada ao estético, passou a ser, para mim, uma questão mais de ordem coletiva em geral, extraliterária, do que uma questão literária, específica, individual.
Creio que haja uma linha de coerência, sobretudo na minha produção poética, que seja a de uma politicidade, uma compreensão da criação como lugar de fricção de questões coletivas, prementes.
O racismo, essa coisa infernal que nós negros e negras enfrentamos diariamente, tem sido, sobretudo nos últimos anos, a questão mais premente para mim, mas não é, evidentemente, a minha única questão – não faço do racismo um produto.
Enfim, o que eu diria a mim mesmo, digo, hoje, é o que sempre me disse: você está sozinho, você é negro, não se engane, não espere nada de ninguém, esqueça – ou escreva para que não se esqueça!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Creio ser fundamental – e gostaria de fazê-lo – escrever biografias, romances, peças, roteiros e filmes sobre sujeitos negros brasileiros e estrangeiros, homens, mulheres, velhos, crianças, doentes, loucos, pobres, mendigos, pessoas que trabalharam, sofreram, lutaram, morreram em razão do racismo, que nunca tiveram um dia de paz, que passaram a vida, breve ou longa, num desespero desgraçado e são parcial ou totalmente ignoradas pela história.
Ainda não comecei a realizar esse projeto porque fiquei e ainda estou muito embaraçado na luta para ganhar a vida, para conseguir sobreviver e garantir a sobrevivência de dependentes.
A barreira do racismo, que tenho encontrado por toda parte especialmente depois do doutoramento (negro doutor, que não é capacho das elites racistas, é um “homo sacer”, para lembrar Agamben, jogado às traças), o racismo institucional, acabou por me dificultar a aquisição de condições básicas de produção para o exercício da tarefa de escrever que, para mim, significa sempre pesquisar, viajar, uma devoção a mim mesmo.
Estou muito longe de me dar por satisfeito com tudo que fiz até agora na literatura contemporânea brasileira, com os livros publicados, com a produção crítica e editorial, com as pesquisas desenvolvidas, com as tantas conferências, cursos, minicursos etc.
No próximo ano, quando devo chegar aos 50 anos, pretendo lançar a criação e a reflexão crítica reunidas em dois volumes, textos éditos e inéditos, encerrando um ciclo para, enfim, abrir outro.
Plano, desejo. Espero que dê certo, mas, sabemos, “a vida é real e de viés”, como diz Caetano, e tudo pode ou não acontecer.
Gostaria de ler todos os livros que ainda não existem (porque estão inéditos ou não foram escritos ainda) de escritores negros e escritoras negras de toda parte.