Anelise Rizzolo é professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina igual em todos os períodos do dia, mas de manhã sim. Gosto muito da rotina matinal e sem ela meu dia começa mal. Acordo e preparo meu café. Gosto do silêncio da manhã, da brisa do sol, do cheiro do café, de ver as notícias do dia, do ritual da cozinha. Passeio com meu cachorro (quando consigo ainda pratico um pouco de ioga, mas pratico menos do que preciso) e só depois o dia começa…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor com o avançar do dia. Meu cérebro demora para acordar e mergulhar nos processos criativos. Preciso de silêncio para escrever. Cada vez mais. Como tenho dois filhos e os processos de escrita se adaptavam ao meu “tempo livre”, em geral, os horários eram noturnos. Consigo produzir quando sei que a casa está arrumada, os filhos nas suas atividades, a comida feita… Escrever me demanda entrega e isso só vem quando eu sei que cumpri meus deveres do trabalho e da existência… Algo por aí. Nem sempre é assim. Mas, em geral, prefiro me sentir livre para escrever.
Quando sento ao computador, tenho alguns rituais e nunca consigo iniciar a escrita imediatamente. Reviso a caixa de e-mails, checo a agenda de atividades, analiso as mensagens de WhatsApp para ver se tem algo urgente, pego água, chá, me acomodo na cadeira. É um ritual de chegada. Cerca de meia hora, só assim começo. Procuro não escrever à noite nem em finais de semana. Minha mente é excessivamente ativa e, se há estímulo demais, eu não durmo e a mente segue trabalhando, pensando e produzindo espontaneamente, o que me traria de volta ao computador para não sufocar com os pensamentos e ideias…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando inicio um projeto, escrevo um pouco a cada dia. Uns dias mais e outros menos. Depende da força da ideia. Às vezes as ideias se formam antes de eu ir para o computador. Penso muito nos espaços do dia, dirigindo, comendo, cozinhando, penteando o cabelo, tomando banho, escovando os dentes… Mente inquieta! Daí registro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu sou professora universitária. Trabalho estudando e pesquisando, então tenho um banco de informações cotidianas com arquivos e referências disponíveis no computador. Se preciso qualificar algo, atualizo as pesquisas. Os textos, em geral, versam sobre questões técnicas – políticas, mas minha proposta é uma narrativa dialética, menos acadêmica. Às vezes sento e as ideias se formam. Há momentos em que escrevo muito. Passo dois ou três dias escrevendo sem parar e não volto para ler. Escrevo quase como uma “psicografia”. Vou acolhendo a necessidade de articular os pensamentos, ideias, análises e sínteses. Geralmente, nestes momentos repito muitas coisas, adjetivo demais. Sou excessivamente passional, mas prefiro deixar sair o que acho principal. Depois de uma semana ou duas “parindo”, dou uma pausa e começo a ler. Imprimo e leio. Leio, corrijo e incluo outras coisas. Faço isso umas quatro ou cinco vezes. Paro. Fico uma semana sem ler. Fico pensando sobre o que eu quero com o texto. E, quando volto, tenho tudo pronto na cabeça. Incluo o objetivo, organizo as partes, insiro os nexos que faltavam, ordeno parágrafos e começo a aprofundar subtemas. Aí é um perigo, pois posso escrever até o fim da minha vida. Neste momento, eu adoraria compartilhar com alguém. Pedir para alguém ler, mas quase nunca consigo. As pessoas têm mil atividades e eu tenho prazo para entregar.
Há uma questão importante no meu estilo de escrita. Eu sou uma profissional de saúde que migrou para a área de ciência sociais. Este trânsito me levou a muitas transformações e a narrativa é um dos marcadores mais expressivos do processo. Assim, o meu estilo de escrita atualmente está voltado para o tom de prosa, procuro fazer uma conversa, mobilizando metáforas, saberes e trocas. Como se o sujeito-escritor pudesse interagir com o sujeito-leitor, estimulando anotações ao lado da conversa. Percebo a influência de fortes “gurus” acadêmicos em termos de estilo de literário, como Paulo Freire neste sentido de diálogo com o leitor. Construir a narrativa preservando coerência e credibilidade acadêmico-científicas tem sido um desafio – entre a ciência e a sapiência, como disse Rubem Alves (outra boa influência) -, mas meus textos progressivamente vêm demarcando este estilo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu dificilmente travo. Em geral tenho mais a dizer do que me é solicitado e o exercício (com sofrimento e prazer) é “ajustar o foco” e, isso sim, pode me gerar algumas travas. Ajustar o foco também tem relação com a expectativas do leitor. Quando não tenho muita clareza do público-sujeito da conversa, eu travo. Me explico: apago e escrevo muitas vezes, até perceber que não sei com quem estou falando. Uma saída é conversar com meus pares. Neste momento, me aconselho com colegas e pessoas que respeito no tema que estou produzindo e na vida particular. Pessoas que julgo ter sensatez e bom senso para me recolocar no meu lugar de fala e achar com quem ou para quem quero escrever. Normalmente, depois de montar um cenário possível de leitores, me apresento ou me situo a partir do meu lugar de fala sobre o tema, assim me sinto legitimada e relaxo. Esta estratégia, me deixa mais confortável para construir os argumentos, narrativas e fatos. Não sei se é suficiente, mas eu destravo. A academia tem muitas vaidades e eu tenho muito receio de gerar constrangimentos, ainda que entenda que os temas, ideias e conjecturas não têm propriedade intelectual. Como verso sobre epistemologia e construções teóricas no campo interdisciplinar é importante revelar o lugar onde me vejo e a etapa que me encontro no processo de aprendizagem para evitar atropelos ou compreensões apressadas. De toda forma, meu olhar contra-hegemônico, quase sempre provoca um certo mal-estar que eu entendo como necessário e até intencional. Alguns leitores vão se incomodar com as ideias propostas e discordar. Sem problemas. Não busco consenso. Meu estilo de escrita tem inquietude, adjetivação, dúvidas, reticências e perguntas. É para ser assim mesmo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos até a exaustão mental. Chego a ficar enjoada e criar um pouco de aversão a eles nestes processos. Fico muito preocupada com erros de grafia. Sou detalhista e meticulosa e detalhes me consomem um bom tempo. Nestes detalhes, vou depurando e qualificando melhor o sentido das palavras e das ideias. Depois, ajustando, limpando, encaixando, fluindo. Tenho um tipo de “sensor” que vai me acalmando e familiarizando com o texto, como um filho que vai criando identidade e um belo dia está pronto para ganhar o mundo. Não sei explicar. Isto pode durar muito ou pouco, dependendo do tamanho e pretensão do texto. É um tipo de processo de “maturação”. Até que um dia eu faço a última leitura e pronto. O texto conversa comigo, é como se ganhasse personalidade. Uma questão que preciso mudar e não consigo (me incomoda) é que todas as revisões e leituras que eu faço são em papel impresso. Preciso enxergar o texto no papel para estabelecer uma relação concreta. Enquanto está no computador ele me parece impessoal, virtual. Ao vê-lo no papel, me sinto mais segura e confiante no que eu fiz. Neste imprime- corrige, imprime, corrige, gasto muito papel… Isto é ambientalmente ruim e insustentável.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo sempre no computador. Tenho uma boa relação com a tecnologia. Apesar de ainda escrever diários de campo, poesias e reflexões pessoais à mão, para textos, em geral, uso direto o notebook. Em celulares acho bem ruim e nem quero fazê-lo. Para postar coisas no meu blog pessoal, algumas vezes – se estou em viagem – escrevo no papel e depois insiro pelo celular, mas não gosto porque preciso colocar os óculos e estou numa fase que consigo fugir dos óculos se leio com letras grandes! (risos)
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu sou um banco de ideias vivo! Tenho ideias desde que me entendo por gente. Em todos os lugares, prováveis e improváveis. No banho, escovando os dentes, penteando o cabelo, dirigindo, andando de bicicleta, cozinhando, lavando louça… A criatividade precisa de liberdade e a minha mente sempre foi este espaço para mim.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Mudaram muitas coisas, tanto do ponto de vista do estilo quanto do conteúdo, mas eu diria que a principal mudança veio de dentro. Acho que a minha linguagem ficou mais clara para mim mesma e para os outros. A escrita expressa isso também. Acho que, comparativamente, minha dissertação tem uma narrativa muito diferente da minha tese. Se eu pudesse voltar no tempo, eu diria para mim mesma que está tudo certo, precisava ser desta maneira para eu ser quem e como sou hoje. Este caminho foi uma grande passagem de olhar, narrativa e de aprendizado. Um salto ornamental entre campos disciplinares. A construção da interdisciplinaridade. Um caminho muito rico e diverso. Um exercício solitário e intenso de aprender uma linguagem coerente com o que eu me propus a estudar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu quero escrever um livro de literatura. Espero que a vida me leve para esta aventura. Acho que pode ser possível (ou não). Quem sabe?