Anelise Freitas é poeta, professora, editora, tradutora e revisora, doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Na parte da manhã eu levo meu filho para escola e costumava dar aulas na Universidade Federal de Juiz de Fora (até 2018 eu era professora de Língua Espanhola em um projeto para a comunidade acadêmica). Entre uma atividade e outra eu passava na padaria perto de casa, comprava um café e um fumava um cigarro até chegar ao ponto de ônibus que me levaria ao campus. É até engraçado falar da rotina no passado, mas é que esse ano estamos, meu companheiro e eu, nos adaptando: em dezembro descobri que estou grávida, meu companheiro começou seu mestrado em outra cidade e consegui uma bolsa de pesquisa para o doutorado. Assim, atualmente eu tenho levado meu filho à escola e voltado para a casa, a fim de cumprir as minhas atividades de pesquisa. Leio e escrevo até a hora de pegá-lo na escola. Nessas leituras, tenho sempre por perto o meu caderninho e vou anotando observações, ideias e outras coisas para a tese (e para a vida).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Tenho sempre a impressão que trabalho melhor pela manhã. A cabeça fresca, cafezinho sem açúcar e um cigarrinho (que são a minha espécie de ritual) e o trabalho flui: ler e escrever, em um processo de mescla (lê um tanto, escreve outro tanto). Mas, infelizmente, é raro o dia em que tenho tempo para esse ritual de trabalho pela manhã. Só esse mês vim a assinar os papeis dessa bolsa para me dedicar exclusivamente à pesquisa, então não tive muito tempo para aproveitar essa nova rotina. E, por ora, não posso fumar. Via de regra é escrever quando dá, e dá pela tarde ou noite (a depender das aulas, lida com o filho e outros trabalhos que eu tiver).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta nenhuma de escrita. Eu não ganho dinheiro com a escrita. O meu dinheiro vem das aulas que dou, dos textos que reviso e de todo tipo de serviço que alguém graduado em Letras e Comunicação faz. Não posso acordar e sentar para ler e escrever, essas coisas faço entre cuidar do meu filho e trabalhar. Então, escrevo e leio no ônibus, no intervalo de uma aula e outra, nos finais de semana. Como disse anteriormente, acabei de ser contemplada com uma bolsa de estudos, mas até hoje eu nunca tinha recebido bolsa para pesquisar, ou seja, ia fazendo como dava e como podia. Esses dias passei a sentar para ler e estudar, mas, além de coisa recente, faço pela pesquisa. O diletantismo é sempre meio aristocrático.
Talvez eu tenha metas de leitura, mas escrever, ao menos no que tange à poesia, não é uma coisa maquinal, não costumo trabalhar com prazos. Quando o assunto é poesia, eu escrevo quando me passa algo que motive a escrita. Não tenho uma rotina de sentar e escrever poemas. Embora eu encare a poesia como um trabalho, acho que não precisa ser um trabalho burocrático ou fordista. Eu passo pelo mundo (e coisas do mundo se/me passam), observo as imagens e a poesia acontece, então a transmuto em poema. Por isso, parte da minha rotina de escrita é ter sempre um caderno na bolsa para poder escrever em qualquer lugar, pois nunca sei quando o poema vai surgir.
Quanto à tese, tenho metas semestrais e vou trabalhando dentro desse período. Quando preciso escrever um artigo, por exemplo, normalmente eu tiro um ou dois dias para esse trabalho. Depois, passo vários dias lapidando a ideia principal.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu vou lendo e escrevendo. Grifo e escrevo nos livros – de poesia ou teóricos – e depois volto fazendo pequenos fichamentos que tenham a ver com a pesquisa que eu esteja desenvolvendo. Não tenho compromisso com estrutura acadêmica do fichamento, são apenas notas que me auxiliem na escrita. Quando escrevo poesia eu descrevo imagens que mexem comigo e a partir delas escrevo. E o melhor, a partir dessas imagens posso escrever em qualquer momento, porque ao lê-las me lembro do lugar, o cheiro, e percepções daquele momento. A escrita da poesia, para mim, tem muito a ver com memória, não no sentido confessional e/ou diarístico, mas sim com a memória imagética e sinestésica que pretendo guardar de determinado momento. Talvez esse seja meu processo de pesquisa para a poesia, que na realidade é um processo empírico e quase sem perquirição.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho travas para escrever poesia, mas se for um texto acadêmico eu fico mais amarrada por conta da equação prazo x qualidade. Acho que no final a gente tem que se desprender dessas amarras, porque elas surgem, muitas vezes, de uma cobrança que nós mesmos criamos. Esse meio da escrita lida muito com o ego, todo mundo querendo ser mais genial que o outro, enquanto deveríamos estar focados em fazer um bom trabalho. Desde muito cedo minha mãe me ensinou a não me preocupar com a opinião do outro e que a gente não agrada a todo mundo. Então, eu procuro estar satisfeita com o que faço, é isso que busco. O que o outro acha e me cobra é problema dela, não meu.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meus trabalhos acadêmicos não, com eles a troca se dá mais entre mim e alguns poucos da academia, como a minha orientadora ou algum(a) professor(a) de alguma disciplina para a qual eu esteja escrevendo algum trabalho. Depois, se publicados, vem mais interlocução, mas não porque eu a fomente diretamente.
Já os textos de poesia são compartilhados entre outras pessoas, principalmente outras mulheres, antes que cheguem às livrarias ou às mãos de outros leitores. O que acontece muito é publicar textos esparsos de um projeto em revistas e jornais de poesia.
Não sei ao certo quanto reviso um poema, mas normalmente, em média, mexo nele umas três ou quatro vezes antes de mostrá-lo a alguém. Depois disso eles vão entrando nos projetos (não crio projetos, os projetos se criam a partir de uma percepção minha daquilo que tenho escrito). Quanto aos textos acadêmicos, esses demandam maior tempo de revisão. Normalmente, imprimo e vou marcando o que é necessário modificar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Se for algum texto acadêmico, escrevo no Google Drive. Às vezes escrevo alguns rascunhos nos caderninhos que andam comigo na minha bolsa, mas o texto mais grosso vai sempre para a nuvem, de cara. Não tenho tempo de passar nada a limpo. Se for poesia, primeiro vai para o caderninho – onde mexo e remexo sem parar – e quando está mais bem acabado eu passo para o computador. Na realidade, o computador serve mais para quando já estou fechando um projeto de livro. O meu livro “Sozé”, por exemplo, perdi três vezes porque escrevi primeiro no computador. Depois, foi tudo para o caderno e só então eu digitei. Perdi minha dissertação assim também. Então, a minha relação com a tecnologia é sempre de amor e ódio.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As minhas ideias vêm, essencialmente, do dia-a-dia. Estar viva, e na condição de mulher não-branca, é o que motiva os trabalhos, minhas pautas e minhas vontades. O meu filtro criativo é a vida que levo (e a que posso levar). Mais uma vez, criatividade me parece muito com diletantismo e, como disse, diletantismo é meio aristocrático.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando comecei a escrever eu não tinha muito filtro. Não é que eu ache o diário um gênero menor, mas eu confundia muito poesia com meus sentimentos de adolescente. Dava no mesmo escrever um diário e um poema, não tinha trabalho. Com o tempo fui percebendo que o texto necessitava cuidado e trabalho. As imagens que me afetavam poderiam ser as mesmas, mas a linguagem deveria ser poética para ser um poema. Entretanto, isso tudo fez parte da minha escrita e me inscreveu como escritora, ou seja, se eu voltasse e pudesse dizer algo a mim mesma, talvez, o percurso da escrita teria sido outro.
Se eu pudesse me encontrar naquela época, diria a mim mesma para continuar do mesmo jeito, mas para tomar cuidado com certas pessoas que iriam cruzar meu caminho. A minha escrita está (e sempre esteve) muito relacionada a um erotismo da linguagem. Com isso, dialoguei com muita gente boa, mas também atraí muita gente machista e capaz de assediar. Esses encontros (e desencontros) foram importantes para a minha formação como escritora (e mulher), mas muito sofrimento poderia ter sido evitado.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ah, tenho muitas ideias e sonhos. Ano que vem publicarei na Argentina a tradução do meu livro “Sozé”. Quero muito finalizar o livro de contos que me propus a escrever. Tenho bastante experiência na escrita e produção de poesia, agora queria trabalhar um pouco com a prosa como uma forma de exercício, de experimentar outro gênero. Sempre acho o que tenho escrito muito óbvio e bobo, mas gosto como um exercício de escrita. Talvez eu não devesse terminar esse livro nunca e deveria deixá-lo viver como uma longa prática. Além desse projeto pessoal, quero muito colocar em prática os projetos que tenho com o selo editorial criado por mim e outras três escritoras (Laura Assis, Fernanda Vivacqua e Marcela Batista), chamado “Capiranhas do Parahybuna”.
Fora do âmbito da escrita, mas ainda no âmbito da literatura, quero muito viver um tempo na Argentina. Tenho uma pesquisa em andamento sobre a poesia brasileira e a daquele país. Gostaria de estar imersa. Embora já o tenha visitado duas vezes, ainda me falta viver por tempo maior que um mês.
Se eu for pensar nos livros que ainda não existem terei um ataque de pânico. Por isso, me basta conseguir ler todos os livros que tenho em minha estante. E já é bastante coisa.