Andri Carvão é poeta, escritor e graduando em Letras pela USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como diz o esquartejador: vamos por partes. Acordo às 05h30, muitas vezes minutos antes do celular despertar, para ir trabalhar. Dando sorte subo no primeiro ônibus, se não aguardo o próximo ou até o terceiro, caso tenha um espacinho onde eu possa me apoiar para conseguir escrever no app do celular. No celular registro anotações rápidas, geralmente de versos ou estrofes para futuros poemas, dos quais trabalharei mais tarde ou nos próximos dias, assim que tiver um tempo e estiver instalado em local mais tranqüilo para tal, como a minha casa, por exemplo. Chegando ao trabalho, guardo meus pertences no armário e saco o caderninho de anotações onde redijo sem correções e num fluxo só minhas observações, impressões ou causos da faculdade no Diário Universitário. Já estou no sétimo caderninho. Saindo do trabalho a caminho da facul – lotação-metrô-metrô-ônibus – eu leio prosa. Algum romance ou livro de contos, crônicas ou mesmo teóricos, inclusive pequenos parágrafos na escada rolante. É o tempo que tenho para isso. Na faculdade tomo um café com bolacha, pão de queijo ou algum salgado gorduroso, pensando na vida que encurta e se esvai rapidamente com o lanche. Quando consigo, fujo dos amigos para poder me concentrar nos estudos refugiado na biblioteca. Antes de mergulhar nos textos densos e cansativos da faculdade, saco o caderninho de anotações. No caminho de volta para casa – ônibus-metrô-metrô-ônibus – reveso entre o app do celular, o caderninho de anotações e o livro que estou lendo. Chego por volta da 00h30, engulo alguma coisa, tomo um banho e tchibum na cama. Dia seguinte, levanto às 05h30, muitas vezes minutos antes do celular despertar, para o trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
É. Reforçando o que disse anteriormente, escrevo picadinho no decorrer do dia. Não consigo precisar exatamente em qual hora do dia trabalho melhor, já que a necessidade de escrever pontua a minha existência diária. Meu ritual para a preparação da escrita é imposto pelo embate entre a necessidade interna de escrever e a vida social – família-trabalho-faculdade. Penso que, tendo uma vida urbana, corrida como a esmagadora maioria dos brasileiros, não posso me dar ao luxo de ter um tempo só para mim, sendo que sustento minha casa. Abdico de muitas diversões e distrações, comuns a maioria das pessoas, para me dedicar à escrita. Desde que voltei a estudar em 2009 – três anos de cursinho popular + cinco anos de faculdade – não sei mais o que é televisão, não vejo séries da Netflix nem assisto a filmes com a mesma freqüência com que via durante toda a adolescência. Minha vida social é construída durante o trajeto das minhas necessidades diárias. Muitas vezes preciso escolher entre fazer algo que julgue supérfluo ou escrever. Geralmente elejo escrever, porque tenho consciência de que a cada vez que respiro a vida se esvai como areia entre os dedos. Meu mantra é: a vida é muito curta pra gente perder tempo. Portanto, digo a mim mesmo, escreva, escreva, escreva para não passar em branco.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sim. Escrevo um pouco todos os dias, mas não tenho uma meta diária. O quê acontece quando passo um dia sem escrever sequer uma linha? Fico emburrado. Como possuo alguns projetos de livros, cada qual com sua temática e suas particularidades, tudo o que escrevo tem potencial para se encaixar em um dos “works in progress”. Às vezes me surge uma frase que se encaixa no projeto x, um poema para o projeto y, ou um parágrafo do projeto z. Geralmente me detenho mais sobre o projeto que está mais avançado, mas sem esquecer os projetos paralelos. Sou taurino – devagar e sempre… – por isso não tenho uma meta a cumprir, como chegar às montanhas que ondulam no horizonte distante. Não. Nada disso. Imagino que ao galgar as montanhas terei à vista novos horizontes, talvez até intransponíveis para mim, de modo que teria que viver outras vidas para percorrer todos os caminhos. Como diz a canção: tenho a cabeça nas nuvens e os pés no chão. Entre tantos caminhos – qual?
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não sei ser tão taxativo a respeito disso já que meus livros até agora tiveram processos diferentes durante a composição e a conclusão dos trabalhos. Vejamos. Hummm… Embora tenha começado a escrever poesia aos 14 anos e, realmente se trata do gênero em que me expresso melhor, sem contar que foi responsável por eu abandonar um futuro nada promissor nas artes plásticas, meu primeiro livro publicado foi Polifemo em Lilipute e outros contospela Editora Appaloosa, do editor e poeta neobeat tupiniquim Felippe Regazio, colega da faculdade. Estava trabalhando na administração de um lugar chato pacaraleo, não tinha nada para fazer, um marasmo, oito horas por dia sozinho numa sala, arquivo cinza, mesa com telefone, garrafa de café. O colega postou na rede social sobre a nova editora, curti e comentei: “mano, publica os colega ae caraleo!”. Nunca tinha escrito contos. Então pensei: histórias são cotidianas, tudo aquilo que achamos digno de contar para outras pessoas como se fosse novidade, tem potencial de virar um conto, uma novela ou até mesmo, quem sabe, um romance. O que contar? Como contar? Ora, aí já é outra história. Acontece que, todo o dia pensava em histórias que vivi ou presenciei ou ouvi falar e transpus para o app do celular durante o meu turno de trabalho. Em seguida postava no blog e assim tinha um feedback dos amigos. Em quatro meses tinha um número considerável de textos. Dividi o trabalho entre ensaios, contos e crônicas. Crônicas e ensaios, publiquei no site Educa2, indicado pela amiga e escritora Caroline Fortunato. Dos trinta contos selecionei os vinte que compõem Polifemo em Lilipute e outros contos, livrinho digital que saiu pela Appaloosa com download gratuito.
No caso do livro Um Sol Para Cada Montanha(Chiado Books), meu primeiro livro escrito, embora tenha sido o quinto a ser publicado, foi gestado de forma diversa. Para começar, 1SPCM é fruto de um trabalho de 25 anos, são poemas selecionados dentre a minha primeira produção que abarca de 1993 a 2013 e só lançado em 2018, cinco anos depois, ou seja, comemorando 25 anos de produção poética. Num domingo fatídico, por volta de 1997, li uma frase de Dashiell Hammett que serviu de bússola para mim à época: “A literatura é a arte do corte: quanto menos, melhor.”Daí – BINGO! Pensava eu, do alto da inocência e ingenuidade dos meus 20 anos, que havia escrito oito livros – 8! – quando na verdade descobri se tratar de uma trilogia poética que no final das contas se tornou um único livro dividido em três partes. Como cheguei a essa conclusão? Comecei a me interessar por poesia aos 13 anos quando descobri Manuel Bandeira. O coloquialismo na linguagem aliado ao sentimento de finitude da vida na temática, mas também a alegria de viver, a infância no Recife… enfim. Quando li um verso do poeta que dizia que a poesia pode estar em tudo, desde nas coisas mais complexas quanto nas mais corriqueiras, tanto na flor quanto nos chinelos, fui arrebatado. Escrevia e reescrevia meus primeiros rascunhos poéticos num caderno brochura, escrevia a lápis e depois passava a limpo por cima mesmo com a caneta vermelha ou verde e nas próximas leituras passava a caneta azul ou preta, uma encima da outra, de modo que aquilo foi se tornando irreconhecível. Foi quando recebi a doação de uma máquina de escrever Remington da minha tia Ana, professora de Literatura numa escola pública da 3ª Divisão, no extremo da zona leste de São Paulo. Da Remington passei para uma Ollivetti que minha mãe trouxe do trabalho, pois estava destinada ao lixo ao ser substituída por um computador. Pois bem. Passei a escrever a mão no caderno e logo em seguida batia à máquina. Peguei alguns livros de poesia que tinha em casa e fiz uma média da quantidade de poemas por obra, chegando à conclusão de que um livro de poesia devia ter 50 poemas. Dessa forma quando atingia essa meta, guardava num envelope pardo ou numa pasta branca. Depois de uns cinco anos produzindo de forma intensa, reuni oito “livros” com cerca de 400 pseudopoemas. Bastou a frase do Hammett para que no “domingo fatídico” me debruçasse sobre a minha produção iniciática. Sei que passei esse dia lendo criticamente todos os 400 “poemas”. Enchi um saco preto de lixo e descobri que as sobras poéticas carregavam três temáticas/vertentes, meus temas e formas: poesia de introspecção (na época eu chamava de “existencial”), poesia concreta ou visual e poesia de crítica social. Enxuguei ao máximo (ou seria ao mínimo?) e os 8 “livros” viraram 3, uma trilogia poética. No final dos anos 90, à caça de uma editora para lançar o primeiro livro da trilogia, pra cima e pra baixo com os manuscritos debaixo do braço, a falta de grana para tirar xerox e encadernar, fora o custo do deslocamento ou do envio pelos Correios, mais os inúmeros “nãos”, as portas na cara, pensei: peraí!, se não consigo lançar um livro, vou lançar três? Selecionei mais ainda e o 1SPCM se tornou um livro dividido em três partes.
Resumindo, penso que cada caso é um caso. O que se produz é conduzido de forma única, conforme a necessidade que opera a obra em si.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É muito luxo ter travas na escrita! Além de escrever para mim, por necessidade pessoal, emocional, espiritual e física, produzo textos escritos para a faculdade. Ou seja, a minha vida intelectual é indissociável da escrita. Escrevo e reescrevo todos os dias, como agora, por exemplo, sentado em frente ao computador, a responder as 10 perguntas desta entrevista. Isso já responde quanto à procrastinação. Ou não. Sim! Agora me veio à lembrança a respeito de uma disciplina do último semestre, já caminhando para as férias, cansado, na verdade exausto, tendo em vista a vida que levo, sem querer reclamar aqui, fazer o meu rosário de misérias, sabendo que zilhões de brasileiros tem uma vida muito mas muito mais cansativa do que a minha, enfim, uma disciplina que exigiu demais e me trouxe pouco, ou por culpa minha mesmo, fracassei, pois não consegui aproveitá-la devidamente de forma que ao reunir o material para escrever o segundo trabalho, chutei o balde e berrei: CHEGA! NÃO QUERO SABER DE MAIS NADA! NÃO VOU ENTREGAR ESSE TRABALHO! QUE SE LASQUE! Surtei e atirei o pau na Dona Chica, como diz o meme. Sem o menor peso na consciência, fugi pras Bahamas. (Contém ironia.) Fui-me embora pra Pasárgada! Na verdade pra Belzonte.
Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, posso dizer sem pestanejar, sem o menor pudor, que só me preocupo com as expectativas dos professores por conta das notas e do avanço no curso da faculdade. Mas levando em conta a recepção ínfima da minha produção poética, fico extasiado com a meia dúzia de comentários e retornos de leitores, que muitas vezes também são autores que li devido aos escambos literários que tenho feito desde o lançamento de 1SPCM. Portanto não crio expectativas nem durante a minha produção, muito menos diante da almejada repercussão que um livro meu possa causar. Haha!
Respondendo a última questão dessa pergunta, referente à ansiedade de trabalhar em projetos longos, não meço dentro do meu sistema de trabalho o tempo despendido durante todo o processo, mesmo porque, como já disse anteriormente, cada caso é um caso e cada livro tem o seu próprio tempo de gestação. Exemplos: Polifemo em Lilipute e outros contos– de quatro a seis meses; Um Sol Para Cada Montanha– 25 anos.
Esbocei doze capítulos de um romance, mas ainda não parei para escrever. Parece que para dar andamento a esse projeto eu teria que me dedicar integralmente e, por enquanto, não tenho tempo para isso. É uma pena.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso incontáveis vezes, às vezes meses, às vezes anos. Costumo dizer que os melhores amigos do escritor são a gaveta, a lixeira e o tempo. Eu até entendo essa gana juvenil de se publicar para ontem. Já passei por essa fase e as dificuldades que enfrentei para conseguir um espacinho no mercado editorial, de certa forma agiram positivamente diante do processo da minha escrita. Como não conseguia publicar meus textos, me dediquei a cuidar deles, a conviver com meus poemas, como bem disse Drummond.
Sinto que a poesia, mais especificamente, é fruto do desabafo, das idiossincrasias do poeta num primeiro momento e a posteriorio trabalho com a palavra; é a junção entre a vazão do pensamento, do sentimento ao trabalho com a palavra.
Não costumava mostrar a ninguém meus poemas, porque quando adolescente era tido por meus tios como um chato e adotei o hábito de não incomodar ninguém com meus escritos. Eventualmente, hoje em dia, mostro algo à minha esposa. A internet propiciou a autopublicação. Já tive blog, mas abandonei há um tempo. O primeiro site em que publiquei foi o Portal Literalda Heloísa Buarque de Holanda, por volta de 2009. No Portalfoi a primeira vez que obtive um retorno de outros autores da rede, sendo que mantenho contato com alguns deles até hoje. Ultimamente, como a maioria dos poetas contemporâneos, volta e meia, posto algo nas redes sociais, Instagram & Facebook. Entre meia dúzia de curtidas e raros comentários, forma-se uma teia de primeiros leitores. Dessa forma acabo aprendendo o mecanismo para saber direcionar meus textos de modo a atingir o outro. Nem sempre surte o efeito desejado, mas isso não impede que o texto seja reaproveitado em outras formas de publicações como sites, revistas, ou mesmo o livro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia já foi pior. Hoje penso que melhorei muito, pois tinha verdadeira aversão a ela. Já fui radical ao extremo de me recusar terminantemente a trocar a máquina de escrever pelo computador. Mas, de uns tempos para cá, constatei o ganho de tempo e esforço mediante as facilidades (ctrl c/ctrl v) que o pc nos propicia. Antes, por conta da mudança de uma simples palavra, tínhamos que redigir toda a página de novo na máquina de escrever. Agora é só selecionar e apagar. Acho uma bobagem aquele discurso velho de gente que já morreu em vida dizendo “no meu tempo era melhor”. Era melhor uma figa, melhor é agora e o meu tempo é hoje!
Quanto aos meus primeiros rascunhos, como dizia o Adoniran: “aí vareia!”Adquiri o hábito de digitar no app do celular, pois meu pensamento funciona melhor em movimento pela cidade. Mas também naquela meia hora escondido, antes de entrar para o trabalho, escrevo à mão garranchos num caderninho. Neste momento, sábado, 23 de fevereiro de 2019, às 14:39, horário de Brasília, como estou de folga, aproveito o conforto do meu lar e o fato da Lene, minha esposa, estar pulando carnaval com a tia Sol e outras professoras no Bloco do Alceu, e minhas filhas Alice e Sofia estarem entretidas com um desenho animado, Jovens Titans em Ação, para escrever direto no computador. Ou seja, aí vareia.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As minhas ideias são o conjunto de ideias de outras pessoas e quem disse isso não fui eu, foi o David Bowie. Mas antes dele, Bakhtin e Benveniste já haviam tratado a respeito de texto e discurso, dizendo que os nossos pensamentos, as nossas ideias, a nossa oralidade, são espelhos ou retratos ou reflexos dos pensamentos, das ideias, enfim, da exposição oral ou escrita de tudo aquilo que lemos, vemos e ouvimos. Portanto as “minhas ideias” têm conexão direta com as influências externas, eruditas ou populares, culturais e sociais, livrescas, cinematográficas, teatrais, jornalísticas, dentre outras formas de expressão humana, além da experiência cotidiana.
Creio que o conjunto de hábitos para me manter criativo tem relação com a busca, o interesse, a curiosidade de saber, de conhecer, de estar sempre aberto para o novo, mesmo tendo a consciência de que “o novo” nada mais é do que a repetição do passado, reformulado e muitas vezes dissolvido. Daí a minha predisposição em manter contato diário com as artes, frequentar museus, teatros, exposições, afora o estudo e a leitura de jornais, revistas, livros. Quem não se enche se esvazia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A minha escrita amadureceu conforme a necessidade vital de escrever se tornou um hábito. Se um atleta não pratica, perde a resistência, atrofia. O mesmo pode-se dizer sobre o trabalho intelectual de escritores, pintores, músicos, bailarinos. Percebo a mudança no processo da minha escrita no que tange a evolução entre a busca de uma voz poética nos poemas inicias de Um Sol Para Cada Montanhae os novos poemas gestados já na maturidade da vida.
Eu voltei aos meus escritos iniciais, aos meus primeiros textos. Em 1SPCM revisitei os meus primeiros poemas. Selecionei e reescrevi boa parte dessa produção. Penso que os poemas de 1SPCM nada mais são do que os meus cantos de inocência e o novo livro, o conjunto de poemas que venho escrevendo desde 2016, a ser publicado ainda este ano, são os meus cantos de experiência.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Na verdade tenho dois projetos que gostaria de tocar adiante. Um deles é o Gangue Poétikaque comecei com alguns amigos da faculdade. Tivemos três reuniões, onde esboçamos o projeto, mas, infelizmente, não saiu do papel; ficou no campo das idéias. O Gangue Poétikaconsiste basicamente em apresentações do grupo de poetas em lugares públicos da cidade, munidos de um microfone num pedestal, caixa de som e máscaras. Como não houve andamento no projeto e eu fui o único a adquirir uma máscara (a minha é uma máscara de carnaval veneziano), postei no Instagram algumas performances poéticas em vídeo usando a máscara e também fotos com frases de efeito, pensamentos e poemas curtos.
O outro projeto, dessa vez individual, é O Poeta na Escola. Muito comum, uma ideia nada original. A ideia é fazer palestras em escolas da periferia de São Paulo, começando pelas duas onde cursei o ensino fundamental e o médio, para falar sobre a minha experiência pessoal com a literatura, a importância da leitura para o desenvolvimento do indivíduo. Não só para aqueles que pretendem se tornar escritores, jornalistas ou professores da área. Mas para todos aqueles que têm o sonho de seguir uma carreira, seja médico, advogado, engenheiro. Mostrar para a garotada que independente da área que almejem, o hábito da leitura é imprescindível. Mostrar que o pouco que conquistei na vida, para além do privilégio de ter nascido numa família de classe média baixa, porém estruturada, foi devido também ao meu hábito de leitura, mantido desde a pré-adolescência. O objetivo, portanto, não é formar escritores. O objetivo é alertar para o fato de que a escola pública forma cidadãos para trabalhar no comércio, na indústria e nas fábricas e não pensadores. E deixar claro que, desde que não abandonem os estudos, todos têm potencial para conquistar o que quiserem na vida.
Agora, sobre o livro que eu gostaria de ler e ainda não existe… gostaria de mudar um pouco a questão, só para concluir: eu gostaria de ver pronto o romance que tenho esboçados 12 capítulos e que não sai da minha cabeça.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Depende. Já planejei muito antes de pensar em escrever e o tiro saiu pela culatra; e também já fui escrevendo aleatoriamente de modo que uma ideia de ‘projeto’ tomou forma. Depois que encontro um norte na minha escrita, passo o tempo todo com o ‘projeto’ [chamemos assim] na cabeça. Tudo aquilo que produzo e não se encaixa na temática, guardo para um ‘projeto’ futuro. Procuro focar no que estou fazendo, não costumo me dispersar. Se ‘engaveto’ [na verdade arquivo no computador] e deixo de mexer, trabalhar nele, incluir, excluir, revisar, o projeto está morto. Preciso vivenciar a escrita, estar completamente apaixonado pelo livro [isto! LIVRO – prefiro assim] que estou escrevendo. Busco sempre me dedicar ao máximo e cada vez mais adicionar elementos que deem cara de livro ao que estou escrevendo e desse modo deixar de ser só mais um ‘projeto’.
Não tenho problema em escrever a primeira frase ou a última, afinal estou sempre escrevendo. As frases que elejo para introduzir ou concluir um texto ou um poema ou um livro quase nunca foram escritas nessa ordem, geralmente elas surgem durante o processo, assim como os títulos, frutos do acaso.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Gosto de escrever, portanto sempre consigo um momento, nem que seja uma meia hora do meio dia para fazê-lo. Independente de onde eu esteja: no trabalho, na rua, numa fila, na condução, em casa, no banheiro… não importa, dificilmente vou passar um dia sem escrever uma linha que seja, mesmo que for somente para um post nas redes sociais. Meu modo de trabalhar a escrita é caótico, bem anárquico. Gosto disso porque creio que o tempo que disponho para me dedicar, a maneira como cavo, cavo, cavuco esse tempo acaba refletindo no meu estilo.
Quanto a me dedicar a vários projetos ao mesmo tempo, neste ponto sou bem organizado. A partir do momento que me proponho a fazer, a participar, sou bem engajado, me comprometo mesmo. Claro que por aceitar convites diversos, às vezes me sobrecarrego um pouco [ah vai, nem são tantos assim também né], mas anoto a sequência dos projetos, a ordem em que surgiram, as prioridades, aqueles que têm prazos, e procuro cumpri-los. Não gosto de ser cobrado mais de uma vez ou de deixar os colaboradores na mão.
A propósito, no começo do ano eu estava justamente participando de um projeto de escrita colaborativa com outros quatro poetas; fui convidado para escrever dois prefácios, um para o novo livro da poeta Mell Renault e outro para o livro de estreia do poeta Matheus Felipo, ambos grandes amigos, embora virtuais; ao mesmo tempo duas revistas digitais, Escrita Droide do poeta Alberto Bresciani e Germina: Revista de Literatura & Arte a convite de Mariza Lourenço me pediram poemas para publicação [enviei do meu livro Poemas do Golpe, recém lançado pela editora Patuá]; por fim, o artista plástico Walter Müller me convidou para participar do projeto Jovens Poetas que consiste em retratos de poetas contemporâneos do Brasil e de Portugal. Enfim, acredito na Arte, a minha vida é indissociável da Arte, por isso, me engajo na luta, na medida do possível e do impossível.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Tudo. Não há tema que não possa servir de motivo para a escrita. Não existe tabu para a Arte. Nesse ponto sou muito rigoroso, rigorosamente libertário.
Minhas primeiras leituras lá pelo início da minha adolescência, com uns 13 anos, me conduziram à escrita. Nessa época, início dos anos 90 comecei a frequentar o Ônibus Biblioteca, projeto da Prefeitura na gestão Luíza Erundina. O Ônibus Biblioteca ancorava nos bairros uma vez por semana e, como numa biblioteca pública, o leitor se cadastrava e passava a ter acesso aos livros podendo retirar dois por semana. Então me viciei na leitura. Retirava dois livros no Ônibus Biblioteca e ao mesmo tempo mais dois na biblioteca da escola. Às vezes conseguia algum emprestado ou mesmo livros da estante de casa mais voltados pra minha faixa etária. Lia uns cinco livros por semana. Quando descobri os modernistas brasileiros Bandeira, Drummond, Vinícius, Quintana, Lygia, Cecília, Clarice, etc., passei a copiar trechos de suas obras num caderninho brochura. De tanto ler e reler esses trechos, refletindo sobre eles, comecei a rascunhar meus próprios poemas e pensamentos. Então abri um novo caderno brochura onde escrevia meus primeiros exercícios poéticos. Escrevia à lápis. Na primeira leitura, alguns dias depois, fazia alterações à caneta azul, depois à caneta verde, preta, uma da outra em cima da outra, de maneira que ficava uma rabisqueira só e nem eu entendia mais nada do que eu tinha escrito. Até que ganhei minha primeira máquina de escrever e consegui organizar melhor meus rascunhos.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Eu tive fases muito marcadas, principalmente durante a adolescência. Certos autores que li muito me influenciaram demais, creio que mais no meu modo de enxergar a vida do que na minha escrita propriamente dita. Tinha autores que eu lia um romance ou um livro de contos ou de poesia e queria ler tudo deles. Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Vinícius de Moraes, Lygia Fagundes Telles, Ignácio de Loyola Brandão, Edgar Allan Poe, Henry Miller, Jack London, entre muitos outros.
Depois eu cheguei numa fase de consciência de que eu não teria tempo de vida suficiente para abarcar todas as leituras existentes no mundo, de todas as épocas e nacionalidades. Risível, claro. Daí comecei a colecionar listas de maiores clássicos da literatura. Lembro de uma em especial que foi publicada no Caderno Mais! da Folha de São Paulo em 1999 dos 100 maiores romances do século XX. À medida que lia alguns desses livros escolhidos por críticos literários, autores brasileiros e professores universitários, fazia um círculo à lápis no título do livro no jornal. Isso ajudou bastante a diversificar as minhas leituras. Lia os chamados clássicos contemporâneos, os escritores do Modernismo Brasileiro, poetas malditos do século XIX, poesia marginal dos anos 60, best-sellers sobre a Segunda Guerra Mundial ou sobre a Ditadura Militar, um pouco de filosofia, Sócrates, Platão, Nietzsche, Camus, Sartre e muita poesia.
Portanto acredito que esse balaio de gatos no qual me enfiei deve ter colaborado para me formar como leitor e escritor. Com certeza não passei incólume por nada que eu li, vi ou vivi.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
O primeiro que recomendo é um livro de prosa do Manuel Bandeira: Itinerário de Pasárgada. Neste livro o poeta descreve sua infância, as perdas familiares, seu aprendizado através da poesia, a doença, pois foi diagnosticado com tuberculose e desenganado pelos médicos que diziam que não passaria dos 18 anos [viveu mais de 80]. É o livro do Bandeira que despertou o meu gosto pela poesia e me motivou a ler toda a sua obra poética reunida no livro Estrela da Vida Inteira, outro que indico com força a leitura. O que mais me fisgou na poesia de Bandeira foi a fase modernista de Libertinagem e Carnaval onde o poeta usa e abusa do verso livre, das cantigas populares, temas do cotidiano e da linguagem coloquial.
Minha segunda indicação é As Folhas da Relva do Walt Whitman, poeta americano do século XIX precursor do verso livre. Whitman faz parte do chamado Renascimento Americano juntamente com o ensaísta Emerson e um dos ideólogos do anarquismo H. D. Thoureau. Essa geração de certo modo foi responsável pelo florescimento das letras americanas que deram origem a Hermann Melville, autor de Moby Dick, talvez o grande romance americano. Mas voltando ao Whitman, o poeta me libertou das amarras do verso quanto a necessidade de rimar e contar sílabas poéticas. É claro que o domínio da técnica é importante para a formação do poeta, mas a liberdade é acima de tudo inerente à Poesia e à Arte de modo geral.
A última indicação é Uma Temporada no Inferno do poeta francês do século XIX Jean-Arthur Rimbaud. Poeta maldito do Simbolismo francês, herdeiro de Baudelaire, Rimbaud incorpora o que se convencionou chamar de enfant terrible das letras francesas. Sua obra é adolescente, pois produziu apenas dos 14 aos 19 anos. Costuma-se dizer que o poeta viveu duas vidas: a do poeta adolescente que causava nos cafés parisienses e a do jovem adulto aventureiro que abandonou a vida intelectual para traficar armas na África, onde se especula que tenha morrido em decorrência de ferimentos ocasionados por uma troca de tiros durante um motim. O que me fascina na poesia de Rimbaud é a sua explosão demoníaca.
Pensei em indicar romances, mas preferi aproveitar este espaço para o gênero poesia, o qual me dedico com mais afinco. Não podia de jeito nenhum perder essa oportunidade de puxar sardinha para a Poesia, essa mosca no cocô do cavalo do bandido na Literatura, uma verdadeira pedra no sapato do mercado editorial.