Andressa Tabaczinski é médica e colaboradora do portal para escritores Carreira Literária.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A primeira coisa que faço todas as manhãs, religiosamente, é passar um café preto, comer uma panqueca e esperar o cérebro acordar. Dou comida para os meus animais (meu gato Vicente e meu cachorro Nathan Zuckerman). Vez ou outra assisto ao noticiário da manhã, mas tenho evitado cada vez mais o contato com jornalismo (de qualquer mídia). Sou uma pessoa matutina, portanto, no período da manhã e no começo da tarde estou mais bem-disposta e tenho, digamos assim, a cabeça mais arejada. Mesmo quando me proponho a ler no período da noite, percebo a leitura mais desconcentrada e apressada. Quando começa a escurecer, vou assistir a qualquer besteira no YouTube ou Netflix.
Enquanto estou despertando, arrumo minha cama e tento organizar (de forma muito pouco metódica) o quarto e minha escrivaninha. Sou uma pessoa MUITO bagunceira, minha casa vive um caos, mas tento ao menos dar uma ajeitada nas coisas (empilhar os livros, os papéis e guardar os marcadores). Um ambiente organizado organiza a sua cabeça! Isso é inegável.
Pratico exercícios físicos pelo menos 3x na semana no final da manhã, perto do horário do almoço.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando comecei a escrever “Crisálida”, eu fazia residência médica em Psiquiatria e trabalhava 60h/semana – fora a quantidade de matéria que precisava estudar e os trabalhos que precisava redigir –, portanto, meu tempo para escrever era bem curto… e sempre bem tarde da noite. Acontecia, vez ou outra, de uma cena me ocorrer enquanto eu estava esperando por um paciente ou resolvendo alguma questão burocrática; então, eu a escrevia no bloco de notas do meu celular e mais tarde passava para o computador.
Em 2018 tirei um ano sabático para me dedicar aos estudos e à literatura. Nesse ano, eu escrevia sempre no período da tarde. Depois de ter almoçado.
Independente do horário do dia, meu ritual de preparação é sempre o mesmo. Eu preciso de uma folha em branco, bloco de notas, um caderno qualquer, e lápis ou caneta na mão. Antes de ligar o computador, eu tento me recordar em que ponto parei na história e onde quero chegar, e vou rabiscando tudo. Muitas vezes, sei que meus personagens precisam passar por uma situação específica, se deslocar de um ponto A para um ponto B ou descobrir algum mistério, por exemplo. A partir disso, vou fazendo um brainstorming, rabiscando a folha e pensando quais serão as atitudes que vão tomar, em que encrencas vão se meter, o que vão sentir. A cena vai se criando em pequenos fragmentos… algumas falas vão surgindo, algum gesto, alguma reflexão que eu gostaria de passar. A intenção da cena se cria. Depois de muitos rabiscos desordenados, eu pego outra folha em branco e os coloco de forma linear. Pronto. Agora, eu ligo o computador.
Enquanto vou escrevendo o que planejei, outras ideias vão surgindo, muitas vezes por vontade dos próprios personagens, que decidem mudar o percurso de toda a situação… por isso o lápis nunca sai de lado do computador. As ideias têm que ser escritas à mão. É quase um TOC.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sempre escrevi em períodos concentrados. Mas para 2019 quero estabelecer uma meta diária. Meu próximo romance está todo esboçado em um bloco de notas e, a partir desse ano, quero me impor a rotina de escrever pelo menos duas horas por dia. Como estou com muitos projetos em vista, que ocorrerão de forma simultânea, quero estabelecer rotinas. Todos os meus escritores favoritos eram regradíssimos com suas atividades diárias e os invejo por isso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ideias vão surgindo o tempo todo. Não são necessariamente histórias, mas vezes ou outra imagino cenas cotidianas que podem acabar em catástrofe – tenho uma mente incontrolavelmente fértil para pensar em desgraças. Às vezes, acabo conhecendo pessoas que se tornam personagens na minha cabeça. Quando acontece de uma ideia vir à cabeça e insistir em não sair, acabo anotando no meu bloco de notas. Cenas, temáticas, reflexões vão se aglutinando, e eu vou tomando nota de tudo.
Depois defino quem será meu narrador. Será em primeira ou terceira pessoa? Defino qual será o arco dramático e, por fim, defino qual será o tom do livro. O que eu quero que as pessoas sintam quando leiam o meu texto? Depois que eu defino essas três coisas, faço uma lista de leituras que eu acredito que possam me ajudar a entrar no clima. Geralmente peço a curadoria de amigos. Chego e pergunto, “Olha, eu queria ler um livro que cause bastante angústia”, ou então “Quero um livro que seja narrado em primeira pessoa”.
Depois, a escrita começa a fluir, mas sempre acontece de ter que fazer alguma pesquisa ao longo do percurso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou uma pessoa essencialmente ansiosa. Com tudo. Todo projeto longo é um processo de lidar constantemente com sentimentos de amor e ódio. Ora acredito no projeto com todo o meu coração, ora penso em deletar tudo e fingir que nunca aconteceu. Quando estou travada, volto para as minhas anotações e volto a ler livros. Como costumo planejar bem a escrita antes de iniciá-la, não sofro muito com bloqueios. Sofro, aí sim, com a procrastinação. Para lidar com ela eu me imponho uma meta de pelo menos 10 laudas por semana, o que eu considero como uma meta bastante razoável – pelo menos para ficção.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Mostro pouco. Eu costumo falar para as pessoas quando estou escrevendo um livro, mas odeio a pergunta “Sobre o que é?”. É algo irracional que simplesmente não sei de onde vem. É provável que eu não queira criar expectativas em ninguém, ou parecer muito ambiciosa.
Posso acabar mostrando trechos para minha editora ou, talvez, algumas cenas para um amigo… por exemplo: se eu escrevo uma cena com uma intenção muito específica de causar uma emoção (medo, desejo, alegria), eu mostro para alguns amigos próximos para saber se o objetivo foi alcançado.
Quando escrevi meu texto de não ficção, eu revisava cada capítulo uma ou duas vezes. “Crisálida” eu reescrevi cinco vezes, até ter a sensação de que eu não conseguia mais tê-lo na minha frente, mas certamente se eu fizesse mais uma leitura do texto acabaria mexendo nele. Toda a vez que eu lia algum livro clássico, ou algum livro técnico sobre escrita criativa eu acabava detectando falhas no “Crisálida”. Eu queria contratar várias leituras críticas para me certificar de que seria um livro bom, pois nunca tive essa certeza. Sem dúvidas foi uma surpresa emocionante receber tantos feedbacks positivos após o lançamento. A sensação de missão cumprida só veio depois da publicação, e eu sabia que ela não viria antes.
Aprendi lendo um livro do Haruki Murakami que devemos ser benevolentes conosco. Com o passar do tempo, nossa escrita vai melhorar e temos que entender que se dermos o nosso melhor em um projeto, mesmo que não seja uma obra-prima, terá sido o melhor que podíamos entregar naquele momento, e temos que ter a tranquilidade para dizer que o próximo será melhor.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre rascunho à mão! Tenho uma aflição homérica com o cursor do Word piscando na página em branco. Por mais que você possa deletar tudo o que digitar… eu me sinto muito mais à vontade com lápis e papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Desde pequena sou uma pessoa muito curiosa. Muito mesmo… sou até bastante vaidosa com o meu vasto conhecimento em cultura geral inútil – você verá que eu me transformo em outro tipo de pessoa quando estou em uma partida de “Perfil”. Quando era pequena, um dos meus grandes tesouros era a coleção “Enciclopédia Ilustrada do Estudante” da editora Globo – o pessoal da década de 90 vai saber do que eu estou falando. Sou muito fã de documentários (sobre qualquer temática).
Outro fator que ajuda muito é a minha formação em Medicina. É um curso que me deu oportunidade de conhecer um número incalculável de pessoas e histórias. Presenciei muitas histórias tristes e muitas histórias felizes. Enquanto acadêmica, costumava participar de projetos voluntários em cidades minúsculas no interior do estado e pude entrar na casa de muitas pessoas. Fiz atendimentos em uma mesinha ao ar-livre com vacas caminhando e mugindo ao meu lado. Participei de mutirões de exames preventivos em mesas improvisadas na capelinha da cidade. Aprendi sobre todo o tipo de crendice popular e aprendi que as visões de mundo são infinitas.
Felizmente, e com muita gratidão aos meus pais, por poderem me proporcionar isso, pude viajar para outros países, tanto a estudo quanto a passeio. Aprender novas línguas e enxergar novas culturas.
Saí de casa aos dezesseis anos para estudar em Curitiba e me preparar para o vestibular. Lá morei em pensionato e aprendi muito com pessoas da minha idade que também estavam vindo dos mais diferentes cantos de outros estados para almejar um futuro. Falávamos muito sobre as possibilidades que a vida podia nos oferecer… e minha mente sempre ia muito longe. Era a primeira vez que eu morava em uma capital e, por sorte, acabei morando próximo a uma saudosa locadora, muito maior do que qualquer uma que eu um dia podia imaginar conhecer, e que tinha um acervo gigantesco de filmes estrangeiros – os quais eu passei a locar com muita frequência.
Depois de formada, virei um completa nômade. Mudei 5 vezes de cidade em 4 anos. Trabalhei como médica emergencista, como médica de família, depois iniciei minha residência em Psiquiatria e me aprofundei no estudo das psicopatologias e da psinálise – fonte inesgotável de material para romances.
Leio bastante (cânones, best-selleres, quadrinhos…), jogo videogame e assisto a muitos filmes. Gosto de ver bobagens no YouTube. Adoro assistir a entrevistas de celebridades e acho que isso tudo acaba virando material para histórias.
Vejo que me alonguei demais nessa resposta, e talvez isso me mostre que sou uma escritora prolixa e vaidosa. Me perdoem. Contei tudo isso pra dizer que acredito que vivi intensamente diferentes realidades e conto com um acervo pessoal que me propicia contar histórias. E, como disse em outra pergunta, pensamentos catastróficos me invadem o tempo inteiro, sou uma pessoa muito introspectiva, muito autocrítica e sofro com uma ansiedade real – às vezes parece que liga um liquidificador dentro do meu cérebro e acelera, bagunça e mistura meus pensamentos. Até o momento a melhor forma de desligar esse liquidificador é colocando palavras no papel.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu comecei a escrever fanfics quando era adolescente, porque queria poder controlar os personagens das histórias que eu gostava. Depois, comecei a escrever cartas para meus familiares e amigos, toda vez que alguém estava fazendo aniversário, ou em alguma outra ocasião comemorativa. Caprichava tanto na emotividade das cartas que as mãos de quem abria ficavam meladas. Com grande frequência via que eles se emocionavam, alguns até choravam… acho que isso foi o que fez com que eu acreditasse que poderia ser escritora. Passei a escrever pequenos contos que nunca mostrava a ninguém. Não sei quanto tempo se passou desse momento até eu ter a vontade de me dedicar a escrever um romance. Quando sentei para pensar o que escreveria só tinha uma certeza: seria um romance policial. Comecei a evocar o que me era familiar sobre enredos policialescos, e a primeira coisa que me veio à cabeça foi “preciso de um cadáver”. Anotei isso. Faltavam um assassino com uma boa motivação, suspeitos críveis e um detetive. Foi quando me deparei com toda a minha “ingenuidade literária”. Escrevia um capítulo inteiro, em uma sentada, com grande entusiasmo. No dia seguinte, lia o que tinha escrito, achava tudo uma grande porcaria. Relia e sentia claramente que o texto estava ruim, mas não fazia a mínima ideia do que faltava ou o que eu podia fazer para torná-lo melhor. Passei a ler mais livros, principalmente os que vendiam mais… não ajudaram. Busquei dicas na internet… ajudaram muito pouco. Tinha pouquíssimos amigos leitores de ficção que pudessem me ajudar. Eu precisava aprender as ferramentas! Mas onde?
Foi quando comecei a participar da comunidade Carreira Literária. Fiz aulas que foram fundamentais para eu entender algumas coisas muito óbvias, e para as quais eu era completamente cega. Entendi que: para alguém escrever qualquer coisa, basta que esse alguém seja alfabetizado; agora, para narrar uma história longa esse alguém precisa conhecer e planejar seus elementos narrativos (narrador, enredo, personagens, etc.). Precisei entender que narrar uma história longa era algo que exigia muito mais suor do que eu imaginava e que comunicar ideias com sabor literário é algo muito, muito, mas muito difícil de fazer.
Agora, o que eu posso afirmar com a mais absoluta certeza é que o que realmente me ajudou a escrever melhor foi: comprar uma gramática e ler os grandes clássicos da literatura (e aqui os brasileiros foram fundamentais) – passei a ler com um lápis na mão, prestando atenção em todas as minúcias de cada sentença, fazendo anotações, percebendo como cada autor caracterizava seus personagens e suas ambientações. Por isso que hoje, uma boa curadoria de livros faz parte do meu planejamento de escrita. Minha dica para a Andressa que estava começando a escrever teria sido essa: seja uma boa leitora, encare os clássicos com mais leveza e deixe os best-sellers para os finais de semana.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu próximo romance tem apenas o primeiro parágrafo escrito e um bloco de notas de dezenas de cenas para serem escritas. Eu estou com ele muito vivo dentro da minha cabeça e muito empolgada para trabalhar nele durante esse ano. Por esse motivo, não consigo pensar em outro projeto. Mas gostaria de me dedicar a escrever histórias curtas. Não sou uma boa contista e esse é um aspecto que eu gostaria de trabalhar mais.
Um livro que eu gostaria de ler e ainda não existe? Na verdade, o livro que eu mais quero ler no momento é o romance que minha esposa está escrevendo – ele já está com suas primeiras laudas redigidas, então acho que não se classificaria como um livro não existente.
Outro livro que eu quero muito ler e que só tem data de estreia para o ano que vem é a biografia do Philip Roth, mas ele também meio que já existe.
Acho que eu gostaria de me deparar com um livro brasileiro contemporâneo que tenha uma pegada machadiana, e tente retratar de forma irônica e ao mesmo tempo melancólica a realidade em que estamos vivendo. Um “Memórias Póstumas” ou um “Quincas Borba” atual. Eu gostaria de ler algo desse tipo.