Andréia Delmaschio é escritora, professora e pesquisadora, doutora em Ciência da Literatura pela UFRJ e autora de “A máquina de escrita (de) Chico Buarque”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu realmente não tenho uma rotina diária para além das tarefas obrigatórias com filhos, alunos e orientandos. Mesmo porque, sendo mãe solo de gêmeos, dando aulas e orientando, não me sobra muito tempo para estabelecer uma rotina – especialmente uma em que caiba um período livre especialmente dedicado à escrita e ao seu aprimoramento. Por sorte tenho muita insônia: durmo tarde e acordo cedo. É nessas horas que escrevo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há rituais. Quando a casa ainda está em completo silêncio (como agora, às cinco da matina do terceiro mês de quarentena), aproveito para pôr em dia tarefas que demandam concentração. E é quando escrevo por mais horas seguidas, sem interrupções.
Durante algum tempo eu imaginei que poder ter uma parte do dia livre, reservada apenas para a escrita, fosse o segredo de uma obra vasta e rica. Logo descobri que, para mim, não funciona. Hoje, mesmo quando consigo um intervalo de tempo mais longo que posso dedicar apenas a isso, ele quase nunca é aproveitado integralmente. A interrupção e a alternância entre diferentes tipos de tarefas (obrigatórias e não obrigatórias, de ordem prática e de ordem intelectual), e mesmo entre tipos de escrita (acadêmica e ficcional, por exemplo), já fazem parte do meu processo: o que escrevo se alimenta da dor e delícia de ser o que sou.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nunca pensei em estabelecer metas. Devido às condições que relatei acima, raramente tive ou tenho períodos de longa duração dedicados ao trabalho de escrita. Minha ficção é alimentada devagar e sempre. Agora, excepcionalmente, devido à pandemia de Covid-19 e à consequente transferência do espaço de trabalho para casa, mesmo com todas as tarefas de ordem prática que se sobrepõem, finalizo meu primeiro romance. Tenho trabalhado quase todos os dias, um mínimo que seja, na reescrita, retocando, podando aqui e acolá…
Como tenho sido, até hoje, eminentemente cronista e contista, ou seja, autora de narrativas curtas, sempre pude aproveitar bem o tempo para deitar o esqueleto do texto na tela de uma só vez, reelaborando depois, nos momentos em que for possível. Pensando bem, a vida que levo combina mesmo com o respiro da crônica.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como ficcionista, não costumo compilar notas. Apenas, uma vez ou outra, dito alguma coisa ao gravador do celular: um jogo de palavras que naquele instante me soa fascinante, uma frase aparentemente tão inteligente, rs, uma ideia novíssima! No entanto, no momento mesmo em que estou escrevendo, invariavelmente, quando tento enxertar aquela peça brilhante no meu texto, ela já não cabe, não tem lugar, o contexto já é tão outro que parece que ela nem é minha; assim, acaba sendo abandonada e esquecida.
Por outro lado, tranquiliza-me o fato de que aquilo que me marca de verdade, sobre que eu quero e preciso escrever, não vai ser simplesmente esquecido; mas também não vai se revelar numa frase. Isso sim fica rondando por dias, às vezes vai sendo mentalmente elaborado por meses, até por anos, e uma hora, mais cedo ou mais tarde, é trabalhado em forma de texto.
Veja como tudo se liga: o raro tempo disponível, os gêneros eleitos e o modo de elaboração. Claro que estou falando como ficcionista. Embora eu seja uma leitora e crítica literária apaixonada, a ficção é o tipo de escrita a que pretendo me dedicar cada vez mais – apenas porque chega uma hora em que o tempo, que já é raro, se estreita ainda mais, e é preciso escolher a quê dedicamos a vida que nos resta.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Provavelmente todos nós, mais cedo ou mais tarde, nos deparamos com algumas dessas dificuldades. Só conheço um modo de lidar com elas: pegar o bicho pelas orelhas e ir conduzindo devagar, porém vigorosamente.
Explorando melhor os termos da sua pergunta, eu imagino que, se existe a ideia da procrastinação, provavelmente é porque se trata de um trabalho que está sendo solicitado por outrem, algum tipo de imposição. Mas, mesmo quando se trata de trabalhos acadêmicos, penso eu, é possível fazer algo que seja verdadeiro para quem o faz. Imagino que escrever apenas para cumprir um prazo, conseguir um certificado ou atender às expectativas de um orientador ou de um programa seja algo muito duro. Fazer por fazer, sem acreditar na importância das ideias a serem defendidas, a isso ninguém deveria se prestar.
E eu sei que a cobrança de produtividade grassa nas universidades. Acompanho de perto a agonia de pessoas que nada têm a dizer, mas se sentem impelidas a publicar e a fazer com que seus orientandos publiquem – muitas vezes sem se importar com a qualidade, a veracidade, a importância daquilo que está sendo tornado público. Que vantagens pode haver em ter o nome na capa de um livro que nada diz de você, da sua verdade? Pessoas assim vão ficando tristes, aborrecidas, porque a vida perde o sentido no calvário dessa elaboração burocrática de textos que ninguém lerá, nem mesmo os seus supostos pares, ocupados que estão, eles também, em produzir e fazer com que se produzam outros textos acadêmicos obrigatórios, por vezes repletos de citações anacrônicas de livros que essas pessoas nem mesmo leram, ou leram muito mal… Assim segue a linha de montagem kafkiana da escrita natimorta… E o mundo já vai tão cheio de papeis inúteis!
Sobre o medo de não corresponder às expectativas, basta que não se agrade uma primeira vez, para que ele desapareça. Daí para a frente, você saberá com certeza se escreve apenas para agradar, ou se há mesmo a necessidade da escrita. Se você escreve para agradar, está no caminho errado; é melhor parar.
Quanto aos projetos, cada um precisa descobrir o que lhe cabe: talvez o que falte a alguns seja traçar projetos menos ambiciosos, que tragam alegria; a outros, descobrir o modo de escrita que fala melhor dos seus anseios. Esse último pode ser um desafio para toda uma vida; não acho que todo mundo deva dedicar seu tempo a projetos assim. A própria expressão “projetos longos”, que aparece na pergunta, já assusta um pouco. Como assim, projeto longo? No meu caso, como sou bastante organizada (não ter uma rotina não significa ser desorganizada), nada me impede de trabalhar em algo por anos seguidos, mas é preciso separá-lo em partes palpáveis e até certo ponto independentes, cujos resultados possam ser testados e me forneçam retornos que estimulem a criatividade. Sem esse estímulo, parece impossível continuar a viagem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A maior parte dos meus textos é lançada diretamente no blog e, apenas depois, em livros. É uma boa maneira de colher comentários sobre os escritos e, ao mesmo tempo, um espaço no qual é possível sempre reescrever os textos postados. Muito raramente releio um texto meu, inédito ou não, que não encontre aspectos que gostaria de modificar. Portanto, a resposta é: reviso inúmeras vezes antes de publicar, sabendo contudo que o formato definitivo talvez seja uma ilusão temporária de que me nutro para dar passagem a um texto, entregando-o ao leitor e assim abrindo espaço para que surja um outro.
Meu último livro de ficção, o infantojuvenil Nas águas de Lia, foi escrito há mais de dez anos, quando eu ainda não tinha filhos, e lançado apenas em 2018. Não posso dizer que, durante todo esse tempo, mexesse nele com frequência, mas havia alguma coisa na linguagem que eu achava que podia melhorar, tendo em vista o público específico ao qual eu queria dirigi-lo. Nesse caso, o trabalho de reelaboração, propriamente dito, aconteceu somente depois que meus filhos cresceram e pude conviver mais de perto com o tipo de diálogo que as crianças estabelecem entre si. É muito curioso o caminho de escrita e reescrita de cada texto, as vias e os desvios que eles podem tomar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo direto no computador. Não tenho paciência para a escrita à mão, não aprecio a lentidão desse trabalho.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Ler e viver. É o que faço para me manter criativa. E não necessariamente nessa ordem.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Vou contar um segredo: eu gostava muito mais do experimentalismo e da inconsequência que havia nos primeiros textos que escrevi na vida adulta, os quais, curiosamente, eu de fato não imaginava publicar. Reli alguns deles há pouco tempo e me surpreendeu a enorme febre de liberdade expressa ali, especialmente nas opções formais.
A vida vai trazendo experiência, claro, mas também vai nos enchendo de responsabilidades éticas, e eu de fato não sei se isso é bom para a literatura como um todo. Mas, é claro, a jovem que eu era, decerto um tanto precoce, vivia sob os efeitos da abertura política, inebriada pela esperança de redemocratização do país – e era jovem.
Passei a adolescência sob um movimento exatamente oposto a esse que vivemos agora, em que se assiste à decadência do estado democrático de direito, esse tempo de moralismo obtuso e de ascensão do obscurantismo generalizado em várias partes do mundo, especialmente no Brasil. É muito triste, depois da maturidade, ter de aceitar que o mundo não se abre em busca de maiores e melhores valores para todos. Para bem e para mal, a minha escrita sempre foi e segue sendo um modo de lidar com as diferentes circunstâncias que vivencio.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Assim… projeto, projeto mesmo eu não costumo traçar. Mas como estou sempre escrevendo alguma coisa, acabo acumulando séries de textos que precisam ser organizados em volumes, quem sabe pelo critério do gênero literário, na falta de outro melhor. É algo que preciso realizar, para meu prazer e para que essa produção não se perca na desordem da escrita.
Atualmente estou envolvida com um projeto semelhante a este seu, de entrevistas. O resultado do nosso trabalho, idealizado pelo professor Vitor Cei, acaba de sair no livro Notícia da atual literatura brasileira: entrevistas.
Quanto ao livro que gostaria de ler e ainda não existe, primeiro eu gostaria de ler uma grande quantidade deles que já existe, e que ainda não li. Por mais que tenha, com o tempo, reduzido a aquisição, às vezes eu olho para a minha estante e penso que muitos dos livros que ali estão eu simplesmente não terei tempo, em vida, para ler. Dias atrás fiz um cálculo rápido acerca da quantidade espantosa de livros disponibilizados gratuitamente para leitura durante a quarentena. Baseei-me apenas nas ofertas que recebi dos amigos e pasmei com o número de reencarnações de que eu necessitaria para ler uma pequena porcentagem deles.
O livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe é a História do Brasil no Século XXI, mas que fosse resultado de um esforço conjunto de uma equipe interdisciplinar de que constassem bons historiadores e pesquisadores, a ver como nos sairemos desse mar de lama em que estamos metidos por enquanto.