Andrea Nunes é escritora, autora de A Corte Infiltrada.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa muito cedo, às 5h30 da manhã. Café, jornais, beijo de bom dia nas filhas e marido, leituras ligeiras, trabalho na promotoria.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu trabalho jurídico rende mais pela manhã. O processo criativo como escritora funciona muito melhor à noite. Vou escanear no cérebro onde encontrei literatura naquela rotina do dia. O silêncio é essencial para ouvir essas vozes interiores.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende do que estou escrevendo: se for um texto curto, como conto, poesia ou crônica, só escrevo quando estou realmente inspirada. Criatividade não rima muito com produtividade, ao contrário do que sugere a fonética. Mas se for um romance, por exemplo, aí já é diferente: o processo de escrita não pode parar, me obrigo a sentar todo dia e escrever novos capítulos, mesmo que eu tenha de refazer tudo depois. Porque a pausa prolongada nesse tipo de escrita pode te descontextualizar do ambiente que você criou, ou te afastar do espírito dos personagens. Mas ainda assim, não estabeleço metas, tanto posso escrever três parágrafos como vinte páginas, o importante é azeitar sua relação com a história.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Na verdade, meu processo de escrita está sempre acontecendo: os escritores veem o mundo com lentes estranhas, como se precisassem o tempo todo traduzir tudo em palavras. Dentro da minha cabeça, no ferver do dia, apreendo gestos, cores, sentimentos e olhares. Gosto muito do que os olhares não dizem. Quando a rotina aquieta, misturo esse cabedal de insumos com as ideias que eu tenho para a minha narrativa, e a história vai escorrendo fácil dos dedos. Escrever é bálsamo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É muito difícil travar diante de uma tela branca, que só sugere possibilidades. Difícil é viver, que não tem rascunho nem tecla delete. A escrita é abrigo, acolhimento, prazer. A imaginação do escritor é um cavalo doido, que pode parecer assustador enquanto não aprendemos a domá-lo. Mas, uma vez que descobrimos que existem técnicas para levar esse cavalo para onde quisermos, a tela branca do computador vira o paraíso para passear com esse bicho.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Assim que o texto “respira”, já começo a revisá-lo. Reviso inúmeras vezes, quantas eu puder e, ainda assim, se eu reler um texto meu já publicado, os dedos coçam para mexer em algo. Meu pai era meu leitor beta preferido. Depois que ele morreu, toda vez que termino de escrever um livro, sinto como se tivesse acabado de ficar órfã novamente. Mas hoje em dia tenho bons amigos da literatura que opinam, criticam e dão sugestões valiosas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A tecnologia é uma grande aliada: uso de tudo nela, para anotar em aplicativos de telefone uma ideia que surge durante o dia, salvar links que me ajudem com a pesquisa para a construção da trama e até tirar uma foto inspiradora ou interessante para a ambientação da história. Da escrita à mão, preservo o gosto por desenhar meus personagens e montar fluxogramas da evolução da trama.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu nasci num ambiente de professores universitários, sendo que minha mãe também é artista e meu pai foi preso na ditadura militar. Então desde pequena os livros e a liberdade de pensamento eram coisas sagradas na minha casa. Posso imaginar que o hábito de ler obsessivamente e me interessar por ideias e opiniões das pessoas tem ajudado a me enriquecer como ser humano e como escritora.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Eu diria primeiro para não ter pressa em publicar. Ter um livro escrito é algo fantástico, você quer logo dividir essa experiência com os outros, mas a escolha de uma boa editora, o aprendizado da técnica e uma revisão detalhada elevam a qualidade dos produtos. Até hoje sinto que escrevo com o entusiasmo de uma menina, mas o que basicamente mudou foi o pós-escrita. Não tenho mais receio de mexer profundamente no que escrevo, se isso tornar a trama melhor.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um projeto que penso em realizar é escrever um livro inteiro que não tenha elementos da literatura policial. Já participei de diversas antologias e contribuí para blogs com textos em outros gêneros, mas nunca publiquei um romance que não fosse policial. É algo que pretendo fazer um dia, mas ainda não sei quando. Sobre os livros que quero ler: estou negociando com Deus um tempo extra de vida, para ler dezenas de obras publicadas que me fascinam e ainda não tive a oportunidade de apreciar. Desejar os que ainda nem existem seria um abuso nessa negociação, portanto, por enquanto prefiro administrar a cobiça quanto aos que já estão publicados.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
O gênero literário ao qual eu me dedico para escrever romances, que é a literatura policial, exige um certo planejamento. Não dá pra começar uma obra dessas sem ter as respostas sobre “quem, como , onde e porquê.” Entretanto, isso é apenas a espinha dorsal. Quando a escrita começa efetivamente é que vêm muitas das ideias, alguns plot- twists, personagens crescem, outros definham , e nem tudo pode ser planejado. Aliás, nem deve. Sobre as frases, definitivamente, a primeira é a mais difícil. Ela carrega a responsabilidade de capturar a curiosidade do leitor para a obra. Por outro lado, se meu leitor chegou à última frase do livro, via de regra ele já está cativo. A última frase precisa ser impactante, mas a primeira frase é decisiva.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu sempre trabalho em muita coisa ao mesmo tempo. Acho que ser multifacetária é um talento das mulheres. Mas é mais fácil quando são trabalhos técnicos e jurídicos. Não gosto de escrever mais de um texto literário ao mesmo tempo, embora já tenha precisado, em algumas ocasiões, interromper a escrita de um romance para fazer textos curtos para alguns projetos literários, e depois retomar a narrativa do romance. Mas, eu não consigo fazer essa “troca de chip “ com naturalidade, talvez isso seja uma limitação minha, mas manter a coerência do ritmo, estilo e linguagem de uma obra literária exige de minha parte uma dedicação artística exclusiva.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
O que motiva como escritora é a possibilidade de traduzir a vida em linguagem. Minha maior inquietação é viver em tempos tão turbulentos e não ser capaz de traduzir tudo o que é preciso em literatura. Há uma enorme responsabilidade de todos os artistas e intelectuais contemporâneos em manter viva a poesia, o lúdico e o pensamento crítico.
Eu tinha catorze anos quando concluí meu primeiro livro , uma obra infantil. Meus pais estavam encantados com aquilo, mas foram muito honestos com uma escolha que eu tive de fazer, e eu tive de escolher sozinha: fazer a sonhada viagem de 15 anos que as minhas amigas tinham planejado comigo ou publicar meu livrinho. Eles eram professores, e não existia grana para as duas coisas, claro. Eu não tive nenhuma dificuldade em fazer essa escolha. Esse mesmo livrinho acabaria por me dar dois prêmios bem legais, e eu tive a certeza que nem toda menina precisa dançar com o príncipe no castelo da Cinderela para se sentir maravilhosa. Descobri desse modo que debutar, afinal de contas, é mesmo um rito de passagem. A diferença é que, dessa passagem, eu escolhi um destino diferente, e nem por isso foi menos mágico.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Não posso deixar de apontar Agatha Christie como a autora mais importante na minha formação como escritora policial. Li quase tudo de sua ampla bibliografia, e sei que ela é a responsável pelo meu fascínio por histórias de mistério, e pela estrutura de construção da trama.
Mas a construção de um estilo próprio sempre vem com o tempo e, claro, com a leitura variada de diversos autores. A grande dificuldade que encontrei nisso é que os romances policiais brasileiros são, provavelmente, o gênero literário que mais sofre influência colonial ainda hoje: a ambientação das tramas de mistério, mesmo escritas por autores nacionais, parecem muitas vezes ter de se subjugar à atmosfera europeia ou americana. Desvendar que o mordomo é o culpado na hora do chá dos personagens que se chamam Charles ou Mary não tem nada a ver com Brasil.
A construção dos personagens e as próprias narrativas fogem com frequência da realidade nacional, buscando sempre referências externas. Identifico hoje como traço diferencial no meu estilo essa busca por uma literatura policial pós-colonial , uma ruptura com esse padrão ,com a busca do resgate de uma identidade cultural nos cenários e tramas policiais. A ambientação de tramas de suspense na região nordeste do país, com personagens que fazem parte do nosso cotidiano, trabalhando arte e cultura regionais como parte da resolução dos enigmas é antes de tudo uma postura de resistência. Descrever cenários brasileiros, inserir linguagens regionais e gírias das periferias e do sertão, problematizar nossas próprias tensões políticas, e fazer tudo isso dentro da via estreita da narrativa policial é o desafio que venho me impondo nas minhas narrativas, o estilo que venho cultivando.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Quarenta Dias – Maria Valéria Rezende. A obra e autora dispensam apresentações, mas esse livro emociona qualquer mulher. Somos todas, em algum nível, Alice.
Mulheres Empilhadas – Patrícia Melo – porque precisamos, mais do que nunca, falar de feminicídio.
Redemoinho em dia quente – Jarid Arraes – porque fala das mulheres que eu conheci, em cenários que conheço, num ambiente de interior que lembra o “desenvolvimento insustentável” descrito no meu livro Jogo de Cena.