Andréa Mascarenhas é escritora, arteira, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Crio/escrevo sem rotinas e em qualquer lugar, no gume do que me é possível. Já que a vida cotidiana obriga a rígidos horários e compromissos, reservo à arte alguma liberdade fora de qualquer ordem. Às vezes, a escrita começa antes de determinada hora e se adianta até entre as atividades do trabalho. Há sempre um lugar e/ou espaço para criação. Mas, não dá para dizer que existe um padrão, um modo fixo, meticulosamente preparado para o ato de criar: a cada dia muda e é ótimo que seja assim, porque o próprio processo que antecede a criação é importante e já faz parte do que resultará o ato criativo em si. De cadernos, cadernetas, folhas avulsas, materiais artísticos, recursos e suportes virtuais: tudo isso tem vez e auxilia minhas criações.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há hora determinada. Sem pretensões de domar o tempo, ao me dedicar, um pouco que seja, ao labor artístico, sinto que consigo tocar diretamente nos anseios que me transcendem e experimentar o que não vejo por aí, no campo das artes. Quando as palavras borbulham dentro e querem se/me derramar/sair, para se/nos tornar corpo comunicável, não há muito o que fazer, senão pousá-las/registrá-las sobre algum suporte. Já me dou por satisfeita quando consigo capturar algum pequeno peixe nas corredeiras da imaginação e não o matar, quando da transposição, com vistas à comunicá-lo em algum tipo de linguagem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sem metas externas. Tento abrir espaço para a criação (não somente para a escrita) todos os dias, mas não é fácil concretizar tal intento. Se não posso parar e escutar as palavras que gritam em mim, deixo que os dedos as traduzam em outras formas de escuta, em outras artes, como o desenho livre, por exemplo. Projetos de livros vão se montando a partir do que escrevo, uns mais adiantados que outros. Só há bem pouco tempo ideias para livros nasceram antes dos textos livres.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Diverso/móvel. Depois das anotações, dos esboços, dos rascunhos, há um movimento da poesia para a prosa e vice-versa. Com os vários exercícios de escrita, descobri que qualquer gênero requer um tempo prévio de preparação por parte de quem escreve. Por menor e/ou mais “simples” que se queira um texto, faz-se necessário a reunião de informações, tradução de dados cotidianos que possam ser filtrados em sumo poético. Nesse sentido, ainda que laivos de vida escorram do texto, ali se sente o labor artístico com a matéria viva, transmutada em palavra. À revelia desta etapa prévia, muitas vezes me pego escrevendo textos que saem praticamente prontos, no exercício de escritura que necessita apenas de um fôlego para se realizar e praticamente não requer emendas/correções posteriores. Cultivo um apreço especial por esses textos, uma vez que os considero como um registro rápido, quase instantâneo, de um átimo poético que se realiza “no interior do meu interior”, para citar uma música belíssima de Vander Lee. Não é difícil começar. Difícil é levar adiante um projeto artístico quando o curso da existência nos afoga a cada esquina.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ser uma profissional a serviço da palavra, mas não ser uma escritora profissional ainda, ajuda a lidar com fantasmas que assombram a seara das letras. Escrever/criar é o remédio, o antídoto para tudo que está fora do ato criativo. Se cada pessoa criativa é seu primeiro público espectador, está tudo certo e não deve existir cobrança maior do que desejar expressar o que há de melhor a partir de cada habilidade que desenvolvemos. Medo? Só de não mais poder criar, seja o que for. Tenho trabalhos inéditos que já estão em processo há bastante tempo, sobretudo quando se trata do gênero prosa e, nesses casos, o tempo longo não corresponde à procrastinação e, sim, à maturação estética.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão se faz importante quando consideramos um trabalho pronto e que já pode ser dado a público. Revisar o próprio texto é sempre tarefa inglória quanto necessária. Pressa, nesse momento, não é conveniente. Preciso esquecer o que escrevi para ler o que sobra, o que pode ser reescrito, o que ainda cabe no texto e vale acrescentar. Ser surpreendida por textos antigos é uma alegria incrível. Tenho alguns poucos interlocutores, em quem confio especialmente nesta etapa de revisão: outros olhos, outra percepção, um olhar de fora, capaz de perceber detalhes da escrita que não são observáveis a quem escreve, no mais das vezes.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Lanço mão de tudo que esteja disponível para ser suporte e colocado a serviço da criação. Costumo dizer: “do papel ao byte”. Assim, movimento meios através dos quais possa expressar a literatura que elaboro: da celulose palpável ao universo tecnológico mais virtual, como os que o ciberespaço nos oferece – computador e seus recursos de texto; celular, com seus blocos de notas; aplicativos que permitem a edição de textos, imagens e simulem escrita de máquinas de datilografia, entre outros recantos e recursos da internet.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Mais do que nunca, as ideias são pescadas no leito da vida.rio em que nos banhamos diuturnamente. Interessa a leitura/tradução do que vivo e/ou do que vejo na existência de outras pessoas com as quais tenho contato – de perto e de longe. Mas, essa regra muda, quando a imaginação e os sonhos se impõem, com seus textos praticamente prontos. Por isso, tento estar preparada para registrar outras paisagens subjetivas e tantos materiais pulsantes. Os suportes que estiverem por perto serão usados. Em algumas ocasiões, o texto exige um determinado tipo de materialidade: digital e/ou analógica. A palavra literária que invento tem se misturado a outras formas de expressão criativa, tais como: livro de artista, art journal, nature sketch e sketchbook, foto-poema, desenho livre, entre as possibilidades de criação que passeiam, por exemplo, entre linhas, agulhas, mil caderninhos, aviamentos de costura, bordado, papelaria e diferentes formas de arte.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Entendo escrita artística como uma forma de experimentação. Tenho muito orgulho dos meus primeiros manuscritos e da ânima que me conduziu até o presente estágio de composição. Apesar da pouquíssima ou quase completa ausência de qualidade estética dos primeiros exercícios com a palavra poética, reconheço uma coragem, uma vontade de crescimento paulatino em relação a inúmeras possibilidades de criar que a linguagem escrita oferece. O exercício constante, de forjar vida em palavra, oportuniza uma espécie de aprendizado literário. De um início difícil, sem interlocutores e de poucos ganhos em termos de construção artística, percebo que o que permanece é a pulsão criativa, o desejo de continuar escrevendo/criando. Somente isso explica, hoje, a sintonia que vivencio em relação ao universo poético, a relativa facilidade de compor, a pluralidade de conexões, gêneros e combinações realizáveis. Por que não começou antes, quando a escrita de diários e cartas já eram suportes possíveis? Eis um questionamento que talvez fizesse a mim mesma, em meados da década de 1990, quando iniciei a escrita de uma possível literatura. Faltava-me, à época, uma certa consciência artística e, muito mais, o autorreconhecimento do que já começava a criar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Do convencional ao artesanal independente ou uma mescla entre os dois formatos – eis os livros que pretendo ver cada vez mais impressos. Os virtuais também são válidos: um formato não anula e/ou invalida outro. Futuramente, após a publicação do meu primeiro livro autoral (no prelo), será em meio a esse segmento editorial alternativo que pretendo apresentar os projetos que estou elaborando/criando – materiais que quero ler e dar a ler/fruir. Motiva-me a ideia de lançar mão dos diversos espaços que estão disponíveis e, se for preciso, criar outras searas. Tais projetos são, já, mais que livros, uma vez que aposto nas artes integradas, ou melhor, na reintegração das artes. Acredito na letra bordada, na cidade como suporte, na natureza reeditada, reaproveitada, preservada em arte viva. Aposto na mágica das palavras livres, soltas, sem amarras a este ou àquele gênero/texto. Sei, sobretudo, que a liberdade pode dar vez e voz a pessoas que ainda nem sabem que escrevem/criam, artistas latentes que precisam de muito pouco para se revelar e se considerar criadores.