Andrea de Moraes Cavalheiro é doutora em Antropologia Social pela USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durante os nove meses finais da escrita da minha tese optei por ir morar no meio do mato, na Chapada dos Veadeiros, local paradisíaco, em uma casinha sem forro e com fogão a lenha. Se eu gritasse ninguém iria me acudir, pois o vizinho mais próximo estava há uns quatrocentos metros. Eu possuía uma antena de internet rural que funcionava bem.
Nasci e morei toda a minha vida em São Paulo, mas durante o doutorado ocorreu o término do meu casamento e uma crise interna sobre meu modo de lidar com a academia, aí decidi me internar no mato. Eu chamava esse período de hospital-maternidade, onde buscava sair da UTI dos meus sentimentos e parir a minha tese. Foi um dos melhores períodos da minha vida.
Em geral acordava por volta das 8h ou 9h, tomava café, ajeitava algo na casa, meditava por uns quinze minutos, começava meu trabalho às 10h e parava por volta das 12h30 para preparar o almoço.
Às quartas-feiras eu ia para a cidade fazer mercado, ir ao correio, lavar roupa na casa de uma amiga que tinha máquina. Um dos meus vizinhos era pequeno produtor rural e ele colhia tudo na hora, o milho e o brócolis vinham doce de tão fresco.
Domingo era o descanso da minha escrita, eu ia para as cachoeiras mais distantes de casa e tocava tambor no grupo de Maracatu da cidade.
Eu não tinha TV, mas costumava dizer que a minha casa possuía dois canais: Animal Channel e o Sky TV. Afinal eu acordava de manhã com pica-paus batendo no telhado, uma família de tucanos que grunhia mais que porcos e recebia visitas constantes de beija-flores, calangos, sapos etc. Quanto ao Sky TV, refiro-me ao céu mais absurdo que tive a oportunidade de ver, era um céu pesado, a porta de casa ficava virada para o Cruzeiro do Sul e a Via Láctea passava por cima dela boa parte dos meses do ano. O nascer e o pôr do sol eram, todos os dias, rosa-choque, parecia o céu do apocalipse de tão vermelho. O espetáculo era mais impressionante que Cirque du Soleil e tratava-se do meu programa imperdível no dia.
Minha casa ficava a 2km de três cachoeiras lindíssimas e após as 17h os proprietários não cobravam o ingresso para entrada. Era ótimo, porque já havia escrito boa parte do que me propus no dia, assistia o pôr do sol de lá e não gastava com ingresso.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em geral minha mente é mais produtiva de manhã, mas varia. Também não gosto de ficar mais de 3h sentada escrevendo, preciso levantar, tomar um café, ver o pôr do sol, dar uma volta, arrancar mato na frente da casa, ou seja, fazer algo que esvazie a mente e mexa o corpo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevia das 10h às 12h30. Daí preparava o almoço, comia e limpava a cozinha das 12h30 até às 14h30, após isso eu descansava na cama uns trinta minutos e voltava a escrever das 15h às 17h30 ou 18h. Então eu parava para ver o pôr do sol e tirar fotos. Muitas vezes escrevia de tarde deitada na rede do lado de fora de casa.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Faço uma estrutura, ela é fundamental. A primeira coisa é o propósito, tenho que ter claro porquê estou escrevendo aquilo, o que eu quero entender. Então defino os grandes pontos que, em geral, irão formar capítulos. Dentro de cada grande ponto elenco os itens importantes que formarão os subtítulos de cada capítulo. Depois de montada a estrutura central eu começo a escrever.
Sempre chamei as etapas da minha escrita assim: esqueleto, que corresponde à estrutura; carne, quando vou preenchendo a estrutura com os parágrafos, meu foco é passar as ideias centrais e não me preocupo muito com a forma; lixa grossa, quando releio todo o texto buscando melhorar a escrita ou dar conta de ideias que não parecem bem desenvolvidas; lixa fina, quando releio novamente buscando errinhos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando há uma estrutura clara, você sabe o que deve escrever e isso tira as travas. Quanto ao medo e a ansiedade, tratam-se de questões mentais, são os monstros que cada ser humano precisa dissolver para estar em paz. Se você pensa, age ou escreve nestas vibrações você está errando.
Eu tive bastante angústia, então lembrava que era apenas um texto, não precisava ser o melhor texto da minha vida, deveria fazer apenas aquilo que o meu coração sentia que era bom e que eu me perdoaria se desse errado. A melhor coisa é ser fiel a si mesmo, ao que você verdadeiramente acredita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Após a lixa grossa e a lixa fina o texto estava quase pronto, só faltava a revisão da corretora mais maravilhosa do cosmos: a minha mãe. A minha santa mãe leu praticamente todos os textos que escrevi na vida. Ela fez Letras e gostava de ler o que eu escrevia, é o amor de mãe. Após a revisão da mamãe o texto estava pronto para publicação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Geralmente faço tudo no computador, exceto em alguns momentos na composição da estrutura ou no desenvolvimento de alguma ideia, quando sinto que ajuda desenhar a ideia elencando as palavras-chave e pondo flechas. Assim que tenho clareza, passo para o computador e cada ponto vai sendo desenvolvido.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Das minhas angústias, da minha necessidade de compreensão que faz romper com o sofrimento. A mente é por si criativa se você tem saúde mental e bom hábitos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Eu mudei muito e cresci demais no período da escrita da tese. Foi como tinha de ser. De modo geral, hoje tenho mais clareza sobre como montar um texto e quais conteúdos me interessam. Também perco menos energia com as ansiedades e medos das expectativas externas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
No momento, nada ligado à escrita: fazer cerâmica artística e horta. Daqui dez anos quero ler “2020: como a humanidade atingiu a iluminação coletiva”.