André Setti é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina matinal definida, mas a manhã é o período que menos escrevo. Normalmente, só escrevo quando lembro de algum sonho, de alguma coisa que pensei dormindo, se vem uma frase, etc. Fora disso, dificilmente sai alguma coisa de manhã.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A tarde e a noite são mais produtivas para a escrita. Entre essas duas, a noite é ainda mais.
Não tenho ritual, mas percebo com muita clareza que o que mais gera poesia é a leitura de livros, sejam eles de literatura ou não. Mas tem hora que a coisa simplesmente “chega”, um verso ou dois, dai sento e o poema sai quase que instantâneo, na maioria das vezes. Depois releio o poema e vou lapidando, se for o caso. Mas tudo pode gerar poema: uma conversa, algo na televisão, o que vejo na janela, um trecho de uma música, um quadro, etc.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta. Sou professor particular de inglês, então literatura para mim é um hobby, sem qualquer pretensão de retorno financeiro. Então, é um hobby que levo com seriedade, mas um hobby, e acho importante a manutenção desse ludismo. O dia em que isso morrer, morre o prazer, e daí não teria sentido continuar escrevendo.
Na prática, é difícil ficar mais do que uns dois ou três dias sem escrever. Acontece, mas é bem raro. E, sim, tem períodos que a escrita é mais concentrada. Esse ano, por exemplo, está bem concentrado. Mas tem anos que escrevo menos do que o habitual, também.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não acho difícil começar. Não acho que escrever seja difícil, é uma atividade como qualquer outra, simplesmente acontece. É difícil jogar futebol? É difícil jogar sinuca ou tênis de mesa? Não, você vai lá e joga, de acordo com seu nível. Difícil seria ganhar uma partida de sinuca ou tênis de mesa contra alguém que joga muito melhor do que você. Isso é difícil, mas você ir lá e jogar no seu nível é natural, o esperado. Então, se eu quiser escrever uma crônica, um conto, por exemplo, aí sim é difícil. Alguns meses atrás, por exemplo, escrevi uma crônica. Gostei do resultado, mas dediquei um tempo bem grande a ela, porque essa atividade pra mim é difícil, já que não tenho nem a prática e nem a “malandragem” da coisa.
Acho chato escritor que endeusa o processo de escrita, que coloca a escrita como “Ó, que máximo, que espetacular”. Espetacular é Einstein, Beethoven, Garrincha, Cartola e Fernando Pessoa, gente desse quilate. Se tudo é espetacular, essa palavra perde completamente o sentido.
Não compilo notas. O que faço é ir sublinhando trechos que gosto de livros. Meus livros são todos riscados, são um espaço vivo de criação. Adoro rabiscar neles, inclusive poemas que vou criando enquanto leio.
Não diria que existe um “processo de escrita”, mas uma escrita, que pode ser feita de diversas formas e por diferentes processos. Esse de ler e rabiscar é o mais comum, mas há outros. Gosto também de escrever ouvindo música ou vendo quadros, ou ambos. Gosto de ligar o gravador, estabelecer um tempo (geralmente um ou dois minutos), fechar os olhos e ir cegamente, falando o que vier à cabeça (depois filtro, claro), ou simplesmente sentar à caidera e escrever. Então, não existe um “processo de escrita”. Existe a própria escrita, e tudo o mais vejo como um estímulo a ela.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Zero travas. Não tenho o que dizer aqui, pois não experimentei nenhuma dessas questões acima. E a expectativa dos outros, se houver, é uma questão que não diz respeito a mim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tem regra, mas poemas longos eu reviso muito mais vezes. Tem poema que já revi mais de 20 vezes, mas é uma exceção. Normalmente, revejo umas três ou quatro vezes.
Às vezes mostro, às vezes não. Se é um poema “normal”, nem acima nem abaixo do que costumo escrever, não ostumo mostrar. Quando mostro, ou é porque foi algo que eu realmente gostei do resultado ou é porque naquele poema há elementos que questiono, então não tenho segurança se o poema é publicável ou não, válido ou não. Nesses casos, o poeta Wagner Andriote ou outras pessoas de confiança são consultadas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Muito boa a relação, se chamarmos de tecnologia o word… Não sou fã de tecnologia, embora ela me ajude demais no meu dia-a-dia (minhas aulas de inglês são via Skype), então não posso reclamar dela, mas reclamo… Enfim, mas no que diz respeito à poesia, a tecnologia só me ajuda.
Escrevo tanto à mão quanto no computador. Se estou do lado do computador e ele está ligado, vou direto ao computador, para não ter que passar a limpo depois, mas se ele não estiver ligado ou se eu estiver longe dele, vai na mão, sem problema.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm do que sou, do que vejo, do que sinto e penso. Não cultivo propositalmente hábitos para me manter criativo. Acho até que, para mim, isso seria uma burocratização da criatividade, algo forçado. Seria como colocar uma fórmula para a criatividade, uma equação. Criatividade não é isso, ela brota, jorra naturalmente. Claro que ela pode e é estimulada pelas coisas que as pessoas fazem ao longo da vida, como o que elas leem, o contato que as pessoas têm com as ditas “coisas do espírito”, como arte, filosofia, história, mitologia e humanidades em geral, por exemplo. Mas isso tem que ser natural, estudar e ler o que se está a fim, ir para onde o desejo e o espírito mandarem. Se não for assim, embota a criatividade. Não sei se isso vale para todo mundo, mas pra mim certamente embotaria.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou bem pouca coisa. O que mais mudou é que agora eu percebo com mais clareza que os livros que leio me influenciam mais diretamente na escrita dos poemas. De resto, que eu esteja lembrando agora, não mudou nada.
O que eu diria a mim mesmo de vinte anos atrás? Uma ótima pergunta. Diria: “Para de ficar lendo só poeta brasileiro e Fernando Pessoa, moleque. Tu tem que ler Herberto Helder, Dylan Thomas, T. S. Eliot, Baudelaire, Verlaine, e etc. Lê e traduz, que você aprende mais ainda. Ouça músicas de várias épocas, locais e estilos, veja produções alternativas, não acredite a priori em nada do que te falam, vai lá e descubre por si mesmo. Estude astronomia, estude as coisas mais loucas e interessantes possíveis, desbrave e alargue o seu mundo e não se contente com isso. Mas não se contente de uma forma leve, sem resmungo”. Diria também “Procura poetas contemporâneos, lê esse pessoal, que tem muito poeta interessante surgindo. Faz amizade com essa galera, porque tem muito poeta e artista gente boa e pessoas cujo convívio só te engrandece, te acultura e te diverte. Foge de artista arrogante, que também tem aos montes. Aproveita e tenta fazer uns poemas em dupla com as pessoas que você gosta mais, porque vai ser uma experiência sensacional e você vai aprender muito pessoalmente e poeticamente e voltar aos seus poemas enriquecido”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O livro que eu gostaria de ler e não existe seria uma longuíssima antologia com todos os poemas relevantes da história do nosso planeta, de todas as civilizações, desde os primórdios, desde a pré-história, antes do advento da escrita (mas com “cantos poéticos”), até o século 20. Seria um livro de umas 500 mil páginas ou mais, provavelmente ilegível no curso de uma vida, mas seria algo espetacular.
O projeto que gostaria de fazer e não comecei é algo que ainda não descobri o que é, senão provavelmente já teria começado. Não costumo ter coisas pré-definidas, mas o caminho sabe o caminho, o caminho se faz ao caminhar, como muito bem disse o poeta Antonio Machado.