André Ricardo Aguiar é escritor, autor de Chá de Sumiço e Outros Poemas Assombrados.
Como você começa o dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu tenho dificuldades sobre este tipo de começo. A noção de dia que começa é bem turva. Talvez eu queira enrolar com o que ainda tenho de sonho grudado ali no travesseiro, talvez pense em bruma, resquício de livro lido na noite anterior. Apesar de acordar sempre de bom humor, sinto que o dia é uma roldana de movimento preguiçoso. Não tenho uma programação imediata para as manhãs. Meu pensamento se concentra só no café. Sim, é o vício o primeiro momento de inteligência. A cabeça é um campo a ser preenchido. Em seguida, uma possível espiada na rede social e a observação de como estou por dentro – o que vou pensar sobre o dia, sobre o que devo fazer, é algo imprevisível. E eu tenho gatos com que me preocupar, então vem um maquinário de pequenos gestos que me dão uma segurança: botar comida, limpar a caixa, e só aos poucos reconheço que estou num apartamento e posso começar a pensar numa suave forma de entrar nos eixos. Resumindo, rotina pela manhã é como uma história da carochinha: posso ter a cabeça aberta para acreditar, mas de modo infantil.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sempre gostei das tardes, e já escrevi muito neste período do dia. Se eu pudesse, diria que a hora do dia estaria também ligada a um clima. Frio, um frio de me deixar concentrado, bem acomodado. Sempre acho que o clima perfeito seria de montanha, ou de região bem fria. Claro que isso fica no compartimento dos desejos. Escrevo em qualquer clima. E, poderei até dizer, em qualquer horário. Digo isto porque não tenho ainda um projeto claro de uma escrita constante. Eu vivo de insights, fragmentos, frases, narrativa breve ou interligada. Posso parar quando quero e retomar dias depois. Começar numa cidade e terminar em outra.
Meu ritual de preparação é catar cacos de todo tipo: desde frases ouvidas nas fendas do dia (o Antonio Tabucchi tem um conto interessante sobre este tema), pedaços de ideias e quebra-cabeças da realidade, além do inventário constante de pessoas que me parecem interessantes e, sobretudo, livros, histórias dentro deles, germinações de narrativas, cenas, causos, paradoxos, jogos. Qualquer coisa que faça a minha cabeça girar. Penso que se me dou a chance de participar de algo da complexa teia de eventos mentais, sinto-me consciente de que posso contribuir. Ao mesmo tempo, gosto de estar numa mesa ampla em que possa botar objetos e em que me torne mais confortável o ato em si.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho método (ainda). Escrevo todo dia se me dá chance, porque meu outro lado, o de leitor, é bem mais forte. Diria que o vicio de ler contamina um tanto o vício de escrever. Como eu sou meio avesso à escrita caligráfica, preciso ter uma boa tela, luz, e espaço para ir catar frase a frase o que penso, o que imagino. Então minha meta é ainda em parte uma coisa que se passa mais na cabeça do que na tela. Preciso ter isto bem claro: minha consciência literária das coisas é como uma meditação de pescador para conseguir de vez o tão sonhado peixe. E ele está ali, oculto, difuso, à véspera do anzol.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é penoso, às vezes. Depende do gênero. Com poemas, parto de uma imagem ou um verso que vai irradiar mais e mais imagens. Às vezes, ainda é o referencial, o que ainda não é o poema. Eu vou retirando tudo o que é entulho retórico, tento pensar como criança, tento buscar o que seria um pensamento extraterrestre ante as coisas do mundo. O tal olhar inaugural. Já com a prosa, se for infantil, a coisa se dá como uma conversa comigo mesmo, puxando tudo o que tenho de senso de humor para uma história, ou conjunto de pensamentos sobre um aspecto da vida. Ou mesmo dando uma de bisbilhoteiro no que já foi escrito e que virou memória de leitor. Daí para o conto e para a crônica, é luta mesmo. E tudo leva a crer que eu preciso me vigiar cada pedacinho de tempo para não largar o projeto, a unidade do texto. Se preciso for, mais leitura para dar um acabamento, para sentir que estou pleno de expressão.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido cada vez mais com certa displicência. Se não tem jeito com relação ao travamento, saio do ambiente, vou para outro, tento relaxar. O pior é que é um pulo para a procrastinação, que é a mesma coisa, só que com remorso. Eu me sinto disperso, vou ficando mais. Até bater numa parede. E aí é tentar a volta, o regresso a um novo estado. Por incrível que pareça, a palavra projeto não me assusta. O que me incomoda é a dispersão, é o não ter o que pegar. Dizem que virginianos adoram rotina, adoram lista de afazeres, cumprir metas. Se eu tenho algo em mãos que possa durar uma semana, um mês, um ano, me sinto em casa. Sinto que consigo manter uma rotina, e quanto mais me enfio nela, mais seguro fico. Sempre pensei em algo como biografia, livro de ensaios ou uma história que possa ser gerada através de pesquisa. Isso reduz mais minha ansiedade do que ficar estilhaçado em mil coisas que me tentam e não me fazem andar tanto assim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Devo revisar umas três vezes, depois seleciono gente que confio e mostro também. Já passei pela tragédia de ver livro com erro de revisão, já vi poema meu parar em revista com palavra trocada e sei como dói. Não sou nenhum modelo de organização em termos de arquivos e pastas – já perdi muita coisa, então estou gato escaldado. Qualquer projeto atual eu preciso estar mais que atento. Tem que ser obcecado mesmo pelo que produzimos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Deveria confiar mais em papel do que em máquina, mas o hábito se perdeu. Corro riscos mesmo com perdas de arquivo, confusões com a tecnologia. Ainda assim, é uma relação amor e ódio. Mais amor. Adoro pendrive. E tenho confiança no arsenal que permite editar os textos, ter um simulacro de livro ali, ao abrir o note. Gosto de telas, tanto que até leio alguns livros no Kindle. Mas confesso, adoraria adquirir novamente um bom meio de manuscrito, sentir o papel, o correr da pena. Ainda tenho esperanças.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não sei se já respondi de outra forma, mas as ideias são átomos desordenados ou conjunto de ganchos voadores que vão colidindo e combinando em novas formas. Nada de novo, no entanto. Elas são misteriosas e deixo que as combinações ganhem força e me mostrem algo. Meus hábitos são a constante leitura, o hobby do xadrez, o interesse por histórias e conversas e o que eu consigo resgatar em termos de memória e sonho. Depois, continuar apostando na vida, no roteiro das viagens, nas novas relações afetivas. E manter a saúde em dia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Se mudou algo, talvez foi um maior contato com mais autores, com mais literatura. Sempre acho que em algum ponto, não digo em termos de guardar o que lemos, mas algo fica ali, no subterrâneo, uma reserva de imaginação constantemente alimentada.
Aprendi também a ser mais paciente, a não exigir uma pressa de publicar o que escrevo, deixar o tempo agir. Ao mesmo tempo, tenho respostas rápidas também com certos temas. Pode ser que um determinado projeto me faça terminar em tempo recorde. Se eu pudesse voltar aos meus primeiros escritos minhas ordens preferidas seriam: amasse, rasgue isso, corte isso, não publique de imediato. É fundamental e tem mais acertos que erros essa desconfiança. Desconfiar do texto sempre até começar a sentir alguma segurança severamente testada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Diria que o gênero romance me atrai, não comecei ainda, mas sinto que isso se aproxima. Ao mesmo tempo, tudo o que é gênero ou que não tem nada que se classifique como um gênero específico me atrai. Gosto da ideia de um livro bem mais aberto a experimentos, ainda que não tão louco.
Eu gostaria de ler uma mistura de livro de filosofia com o fluxo narrativo das mil e uma noites, com uma pitada de humor melancólico. Mas isso é delírio de cozinheiro que tenta enfiar no caldeirão uma possível iguaria que pode ser muito carregada. Mas insisto, um livro que me faça rir com calma, tirando de mim um pouco do chão, da minha zona de conforto.