André Ricardo Aguiar é escritor, autor de “Chá de Sumiço e Outros Poemas Assombrados”.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não tenho uma organização específica. Não tenho um estopim. Toda semana começa como uma folha em branco. Se eu tenho algo a cumprir, faço primeiro o dever de casa, o que me rende imediatamente para o bolso, para que eu pague as contas. Um pouco de chão. Aí vou espalhando deveres e prazeres. Eu tenho que negociar comigo sempre, para que não apareçam tempos mortos, buracos, lacunas. Prefiro ter vários projetos, desde que não haja conflito. Mas nunca me peguei com tantos ao mesmo tempo. No máximo dois. A sensação é de equilibrar pratos, mas é inspiradora. Sempre acredito que se tenho um olho numa coisa, e o outro noutra direção, dá faísca, cria-se um ambiente de possibilidades.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu planejei com livros de pouca extensão. Exemplo, o infantil O rato que roeu o rei eu sabia do início ao fim, porque a estrutura do livro estava na cabeça muito antes do texto. Era circular, era uma releitura do Flautista de Hamelin e envolvia uma sequência de bichos como pragas. O mesmo se deu com o recente Da existência enquanto gato. Começou como uma plaquete, mas por ser monotemático, o livro mesmo se guiou. Sabia qual era o objetivo, mas não sabia ainda sua dimensão, extensão, que poema abriria, que poema fecharia o livro. Aliás, muito do que planejo também é um diálogo com a editora, qual formato vai ser o livro, como será a capa. Estas questões influenciam o andamento do texto. Pra mim, mais que a primeira ou última frase, o mais difícil é responder a pergunta: o que diabos eu vou começar agora?
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Gosto de imaginar rotinas. A rotina dos outros parece mais interessante. Que tipo tinha o Lewis Carrol, quando escrevia Alice. Ou se Hemingway parava quieto, entre uma caçada e outra, ou se desenvolvia metas ainda no abstrato. E os poetas metafísicos. E os beatniks. Eu penso em uma rotina? Eu só descobriria isso se me sentisse a ausência, quando eu estaria perdido dentro de mim, coreografando gráficos e tabelas. Não sei se tenho rotina. Mas eu sou fã da ideia de um dia igual ao outro rolando uma pedra ao modo Sísifo. Gosto de me sentir quebrando a cabeça, até ouvindo o barulhinho dela. Por isso, o ambiente deve ser arrumado em algum ponto. Um comodismo, uma área em que eu possa ter os livros à mão. E tudo que não me distraia, nem sombra de rede social ou alarmes de sereia do smartphone. Eu preciso entender que estou no melhor dos mundos e que eu sou um labirinto amigável.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Eu preciso trapacear muito, muito mesmo, porque sou um sujeito apto para nunca adiar uma procrastinação. Até brinquei muito com o tema nas redes. É um vício dissimulado, mas de grande estrago. Quando não tenho projetos, quando estou apenas trabalhando em material já editado, ainda dá para seguir se desviando, alternando tempos produtivos com tempos mortos. O mal mesmo é quando é na safra mesmo da produção: mistura-se com o bloqueio criativo ou é combustível do próprio bloqueio. Quando estou no limite, vou às fontes: leio mais o que me interessa, dentro da linguagem com que estou lidando. Ou vou brincar com outras linguagens, quem saber retomar algo já iniciado, deixando de lado o muro aparentemente intransponível. Acredito que o artista pode ganhar muito até com essa rasteira que faz a poeira levantar. É preciso um pouco de dor para que se desperte algo.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Como tenho tendência para trabalhar muita coisa, a lógica é que não há algo que me deu mais trabalho. Deu foi dor na consciência não ter saído como devia. Eu sempre acho que a coisa pode melhorar. Meu livro de poemas, A idade das chuvas (Patuá) deu trabalho com um todo, porque é uma reunião de muitos poemas e de muitas épocas. A mesma lógica para a reunião de contos de Fábulas Portáteis, também da Patuá. Não saio batendo no peito dizendo que tal texto é foda porque me deu muito trabalho. Não no sentido de uma quase impossibilidade. Entendo que até um texto mais leve, para crianças, envolve uma série de quebra-cabeças, até o primordial, o de como escrever tal obra. Mas o meu xodó mesmo é o conjunto de poemas felinos, intitulado Da existência enquanto gato (Confraria do vento). Foi projetado como plaquete num primeiro momento, virou livro aumentado e tem uma proposta única, arriscada, de dar a dimensão existencial do ser gato. Tive que equalizar os poemas, eu que sou muito variado em estilo. E a editora fez a parte dela, criando uma bela identidade visual.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Os temas pululam. Mas estamos num sistema que privilegia determinados temas mais do que os outros. E se eu pensar assim, talvez trave. Gosto de ir buscar em terra menos revolvida, como quem procura tesouros. Os mesmos que me dão vontade de ler. Mas muita coisa fica apenas no ensaio, porque não são todos os temas que gosto que acho que vou conseguir trabalhar. Mas acredito muito nessa coisa de catar lá fora, (fora do meu cantinho livresco), a coisa bruta que aparece nas histórias do dia a dia, as grandes loucuras do cotidiano. Aí o meu leitor ideal tenta achar um encaixe. É muito móvel este leitor. Como eu leio um volume grande de livros, essa entidade imaginária (o leitor ideal) varia bastante no gosto. Os temas podem estar disfarçados. Cabe a uma parcela de sorte bater com um que caia como uma luva para o momento.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Em qualquer ponto do processo. Eu mesmo preciso sentir que não é só um mero rascunho, cheio de erros ou de algo bem clichê. Isso chega no meu radar logo de cara. Poema, principalmente. Eu só mostro quando me sinto seguro em alguma porcentagem ou em algum padrão já mais concreto de trabalho de linguagem. O que quer dizer que quem me lê primeiro já tem algo bem mais longe do que era rascunho e bem mais próximo do que pode ser publicado.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Eu estava no colégio, ensino médio, quando tive uma professora de arte literária. Considerando o tempo, a ocasião, as leituras muito precoces e apressadas, era algo muito preso mais à forma que ao conteúdo. Eu lia Augusto dos Anjos pelo pé, me encantava uma dicção tão original, e meio que imitava. Um amigo meu desenhava, fazíamos edições de papel dobrado e grampo. Para consumo próprio, pois só lembro de um exemplar. Se alguém tivesse dito na época para esperar um pouco mais, para mostrar para gente com espírito mais crítico e levar uns tapas intelectuais, teria sido muito melhor. Ainda passei uns anos produzindo poemas duvidosos, apesar de ter tirado um prêmio no colégio. Sorte que tudo isso não sobreviveu, perdeu-se na juventude em algum escaninho justo.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Ainda não sei se tenho um estilo próprio. Sei que me livrei de alguns cacoetes e segui uma linha, digamos, mais imaginativa. Meu estilo infantil soa melhor. Em poesia, teria tendência para a heteronímia, visto que mudo a cada livro, brinco até. Já na prosa, um dos que mais me influenciaram (para o bem e para o mal) foi o argentino Julio Cortázar. E em seguida, muitos do chamado realismo mágico. Mas insisto, não sou confiável em termos de estilo.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Eu gosto de recomentar vários livros. Não faço um apanhado de qual livro mais indico. Me entusiasmo por tudo que me traz vigor imaginativo. Indico mais autores que até há pouco tempo nem conhecia. E indico quem ganha visibilidade, autores que conheço pessoalmente, e gente que está publicando pela primeira vez. Indico autoras. Indico vertentes. Ano passado indiquei muito a Olga Tokarczuk e a Silvina Ocampo. E também Mario Levrero, Lydia Davis, Elvira Vigna, entre outros. Então isso varia muito.