André Peixoto de Souza é coordenador do curso de Direito da UFPR e professor do PPGD-UNINTER e da FCJ-UTP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho sim uma rotina matinal. Em alguns dias da semana dou aulas muito cedo, e para isso, sem descuidar de um café da manhã rigorosamente idêntico todos os dias, acordo e levanto por volta das 6h30. Nos dias em que não dou aula, aproveito a programação do despertador e também levanto nesse horário, a cumprir minha nova paixão: corrida de rua. Não tenho problemas com despertar e levantar cedo.
Horário fixo, exercícios físicos e alimentação regrada no início do dia até sugerem que eu seja metódico, o que absolutamente não corresponde à verdade! Essa foi, a rigor, uma recomendação médica, desde que há um ano e meio tive um piripaque em sala de aula e fui ao hospital cardiológico. Resolvi segui-la e me sinto muitíssimo bem.
Aqui está, afinal, a minha rotina matinal: despertar cedo, bom café, exercícios, aulas, reuniões e atendimentos aos estudantes. Nada de escrita pela manhã. Almoço normalmente em casa. Após o almoço é que passo a escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Geralmente eu trabalho bem ao longo do dia todo. Há muitos e muitos anos eu mantenho inúmeras atividades e já me acostumei a lidar com essa rotina intensa. Então, desde cedo até tarde da noite, ao longo de umas 14 horas diárias, trabalho bem.
Para escrever, no entanto – e isso ocorre normalmente à tarde – tenho sim um ritual. Gosto do “clima da escrita”. Crio um clima, que envolve a mesa de trabalho, a paisagem interna e externa, o som: música me acompanha quase sempre, ao menos nesse período de preparação para a escrita. No entorno, os textos e livros de consulta, o caderno certo, caneta ou lápis. Quase sempre o Heleno (meu cachorrinho) está por perto me dando uma força.
Gosto de pensar que ao me preparar para escrever estarei sendo produtivo num tempo em que não há mais tanto tempo. Por isso o ritual, a otimização, alguma organização. Não exatamente um método.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Dentre essas alternativas eu prefiro responder que escrevo um pouco todos os dias, embora não escreva exatamente “todos” os dias. Tenho sim uma meta de escrita diária: uma página por dia. Dificilmente eu cumpro essa meta, e mesmo que não cumpra, rigorosamente não me preocupo com isso. Insisto em dizer: esse descumprimento não me angustia. Sendo assim, a rigor, nem é exatamente uma meta. É muito mais uma pretensão.
É evidente que se estou num projeto maior, e que implica em prazos ou algo assim, concentro a escrita e fecho o texto. Mas isso é raro. Procuro estar sempre pronto, sempre com um ou dois textos “a postos”. Atualmente tenho certa liberdade e fluidez para produzir, mesmo vinculado a projetos de pesquisa. Os projetos são bons porque envolvem grupos de estudantes, e essa produção coletiva é deveras salutar, mormente no sentido educacional.
Sobre escrever um pouco todos os dias (e, complemento, ler um pouco todos os dias), fato é que gosto de trabalhar em muitos projetos ao mesmo tempo. Estou nesse instante lendo três livros e escrevendo dois. E considero “escrever” muito além de posicionar caneta sobre papel e combinar palavras. Muitas vezes escrevo nas ciclovias de Curitiba, quando corro. As ideias fluem, há alguma organização, e tempos depois, no decorrer do dia, quando paro a escrever – agora sim, caneta sobre papel –, aquilo que produzi na ciclovia retorna, até amadurecido. Isso tem sido muito interessante. Acho que é um pouco aquela coisa do mens sana in corpore sano. Pelo menos tem funcionado comigo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Normalmente não é difícil começar. É mais difícil desenvolver. Mas se tenho um bom plano do texto – e costumo fazê-lo, especialmente para textos maiores – e uma vez que compilei notas suficientes, baseadas em resenhas e fichamentos de textos que li, ou em documentos que encontrei e separei, o desenvolvimento flui mais ou menos bem. Aí, o mais difícil é concluir. É inevitável que eu tenha (que nós tenhamos) essa ou aquela predisposição conclusiva, mas às vezes a pesquisa nos surpreende e a conclusão vai por outro caminho. Quando é assim, surge sim uma pequena angústia, que só se resolve com o posicionamento conclusivo, seja qual for. O importante é guardar coerência entre os dados coletados, a conclusão do trabalho, e, certamente, alguma ideologia que sobra. Não acredito em texto imparcial. A imparcialidade científica ocorre, talvez, apenas numa parte das ciências exatas.
Acerca de um movimento da pesquisa para a escrita – questão interessantíssima! –, pensando bem, acho que exercito as duas práticas simultaneamente. Quando estabeleço o plano do texto, já trato de preencher esquematicamente os tópicos, e conforme a inspiração, o humor, o tempo, já parto imediatamente para um rascunho desse ou daquele capítulo. Isso, portanto, antes da pesquisa. Essa pode estar no meio do processo. A pesquisa serve para fundamentar a estrutura do texto. Mas pode ter estado antes mesmo do plano, quando da preparação do texto pretérito.
É comum “sobrar” materiais (ideias, rascunhos) de textos passados, e se eu julgo oportuno aproveitá-los, que assim seja! Portanto, a pesquisa terá estado antes mesmo do plano. E no decorrer do plano, e no decorrer do texto. Até na revisão.
Pesquisa e escrita são volúveis e dinâmicas para mim. Não separo o momento da pesquisa do momento da escrita. Creio que só nos doutorados eu tenha feito isso, mais por conta de acesso a arquivos, de viagens, de cumprimento de créditos e prazos. Portanto, minha mobilidade entre pesquisa e escrita é bastante híbrida.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido bem com isso tudo. Não vou dizer que não haja travas na escrita, ansiedade… Hoje, menos do que ontem. Mas travo sim! Agora mesmo estou travado: quero a solução para um problema que coloquei e critiquei, mas não a encontro. Não há prazo, mas seria bom finalizar esse projeto logo.
Procrastinar, não. Simplesmente porque não há tempo para isso. Se entrei num projeto, necessito finalizá-lo. E os projetos se seguem, se complementam, se sobrepõem. Fico até contente com esse excesso. Ansiedade, talvez; angústia não. E a ansiedade vem mais para finalizar o texto do que para não fazê-lo. Para colocá-lo no mundo; para encarar o debate. Não há “medo de não corresponder às expectativas” (seria essa uma vaidade ou um preciosismo que, creio, já não possuo mais).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso poucas vezes. Umas duas ou três vezes. Fico tão concentrado na pesquisa e na escrita que em geral estou satisfeito com o resultado (confesso uma heresia metodológica: certa preguiça das revisões).
Não costumo mostrar os textos para outras pessoas antes da publicação. Costumo, sim, enviar para todo mundo logo após publicado. Outra heresia acadêmica, a vaidade: aprecio ser lido e criticado. Em algumas ocasiões, especialmente quando o tema é polêmico, até mostro antes pra Aline, pro Rapha, pra Duda… e é quase certo que eles me critiquem e peçam para não mandar adiante.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é verdadeiramente péssima. Procuro evitá-la até onde possa. Meus primeiros rascunhos são escritos à mão, sempre! Nesse exato instante estou respondendo a essas perguntas à mão: caneta sobre caderno. Gosto de cadernos médios não pautados, folhas totalmente em branco. Minha escrita é quase desenhada e graficamente ininteligível a terceiros. Vou e volto, puxo setas, flechas e espirais, risco, sublinho, anoto no canto da página, esquematizo. Não sei fazer isso no computador, ao menos com a rapidez exigida quando as ideias estão borbulhando.
Até as revisões procuro fazê-las no caderno, relendo o manuscrito, corrigindo, sublinhando, riscando… e só na terceira versão passo a limpo no computador. Nesse ponto, uma falha grave: preguiça de revisar depois de estar no computador. Uma vez que lá está, tendo passado até que cuidadosamente do caderno para a tela, já envio para edição ou algo assim (salvo, evidentemente, em trabalhos mais densos que possam exigir maior rigor metodológico ou formal, ou então em trabalhos maiores e mais livres, como o último livro e os dois próximos).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias nem são exatamente minhas. Ainda não criei nada original. Gosto muito de observar o mundo, as coisas, as pessoas. Por exemplo: não sou muito de futebol, mas até frequento estádio (em ano bissexto ou algo assim), e muito mais olho para o público do que para o jogo. As ideias estão aí, no mundo à nossa volta. Nas ruas, nas ciclovias, nas escolas, nas salas de aula, nos teatros, nos bares e restaurantes, nas delegacias e penitenciárias, nos bairros, nos Tribunais. Procuro estar atento a isso.
Costumo também, e vai aqui outra confissão, dar crédito a vários marcos teóricos, mesmo antagônicos. Sei que isso pode até ser um erro metodológico proveniente de estupidez ou ingenuidade, mas é certo para mim que toda obra tem o seu grau de relevância. De um lado ou de outro, certo ou errado, aquele autor dedicou parte de sua vida àquela escrita, e isso merece mínima consideração, nem que para estabelecer a crítica adequada e respeitosa.
Todavia, tenho hábitos de, digamos, criatividade. Especialmente na literatura e na música. Leio vertiginosamente, dos técnicos à literatura e aos sites e blogs e jornais e redes sociais. E toco piano com boa frequência, desde muito pequeno e até hoje. A música é e sempre foi muito presente em minha vida. Cheguei ainda adolescente ao Coral Sinfônico do Paraná, como barítono, e a regente de outros corais amadores (especial destaque para o Coral Mokiti Okada), e hoje me deleito com jazz, numa banda de Curitiba chamada Snap Jazz, que aguarda ansiosamente convites para um tour: de Curitiba para o mundo, a começar por Morretes e Paranaguá (litoral paranaense), para onde já fomos convidados a ir.
Eu até me considero criativo, e permanentemente atento e aberto a possibilidades estéticas. Isso tem sido importante para a minha escrita, e em parte para a minha advocacia criminal notadamente perante o Tribunal do Júri.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Certamente o que mudou ao longo desses anos (e lá se vão 7 anos de defesa dos doutorados) foi a minha desenvoltura diante do papel, em parte conquistadas pela liberdade que esse título nos concede no sentido de não haver um prazo a cumprir, créditos a cursar etc. Em outra parte, porque após as defesas geralmente “largamos” esse tema e lemos outras coisas bem diferentes e tão interessantes quanto os temas das teses. Isso melhora o nosso estímulo, amplia nossas possibilidades, aprimora e enriquece até a sala de aula – mão dupla por excelência de qualquer processo de ensino-aprendizado. Por isso, sinto-me cada vez mais leve na escrita e, ouso dizer, quase pronto para o jazz da escrita, a liberdade plena dos textos: a literatura.
Sobre voltar à tese, não tenho essa ambição. Fui muito feliz naquele tempo, e a maior parcela de responsabilidade nisso veio dos meus orientadores: o meu maestro Ricardo Marcelo Fonseca (na UFPR) e a queridíssima Ediógenes Aragão Santos (na UNICAMP). Escrevi duas teses módicas, que julgo serem complementares uma da outra. Ainda pretendo trabalhar na sua compilação e publicação, mas esse não é um projeto prioritário, nem de médio prazo. Porque há dois anos estou completamente envolvido noutro tema.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria muito de escrever literatura. Ainda não comecei, mas tenho a impressão de que começarei em breve. Recentemente fui apresentado a novas estéticas literárias, com especial destaque para a literatura contemporânea de língua portuguesa, e tenho estado simplesmente encantado com isso tudo.
Outro projeto que está na minha pauta é o estudo mais vertical da psicologia. Li algumas coisas mas é óbvio que são insuficientes para uma compreensão intensa a qual pretendo adquirir. Por essa razão, com apoio explícito e engajado de estudantes, criamos uma disciplina tópica sobre a matéria. Isso vai me forçar a encarar o projeto. Daqui, pretendo estruturar um texto maior.
Além disso, gostaria muito de conseguir concluir os livros que estou escrevendo agora (mas aí eu fujo da pergunta, que quer saber sobre o que escreverei e ainda não comecei).
O livro que eu gostaria de ler e sei que ainda não existe é o próximo livro do Valter Hugo Mãe. Vejo as suas publicações recentes nas redes sociais e ele tem postado muitas fotos da Tailândia… deve estar fazendo pesquisa por lá. Estou curiosíssimo com o que virá desse gênio. De um ano para cá eu li rigorosamente toda a sua obra publicada no Brasil, e me encantei com sua sensibilidade, com sua percepção de mundo, com sua estética, com seu impressionante e pleno domínio da língua portuguesa.