André Mellagi é psicólogo e escritor, autor de “Bricabraque” e “Interfaces”, ambos pela Patuá.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa de acordo com a rotina de casa e do trabalho. Às vezes fico em dúvida se ser escritor apenas se refere àqueles que fazem de sua escrita sua profissão, o que não é meu caso. Trabalho como psicólogo atendendo pacientes de um hospital, esta é a minha profissão. Mas também escrevo. Muitos vivem da escrita não somente criando textos literários, mas fazendo artigos, traduções, resenhas, revisões, dando aulas, oficinas e palestras. Eu não tenho formação técnica e acadêmica em Letras, portanto minha relação com a literatura se limita ao interesse pessoal em ler e escrever. Minha rotina com a escrita é quando estipulo um tempo reservado para escrever, pois está condicionado ao que me sobra dos horários que me dedico ao trabalho ou a compromissos de casa.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Geralmente quando me sinto mais descansado, pela manhã ou então quando estou disposto a escrever à noite. Mas depende do tempo que tenho para escrever, então aproveito para carregar sempre um bloco de notas (de papel ou no celular) para fazer anotações e não deixar as ideias escaparem ao longo do dia. Às vezes uma pausa para um café é o momento que tenho para rabiscar algo. Somente quando tenho já em mente uma direção para elaborar um conto é que vou ao computador e trabalho as anotações. Gosto da noite porque é quando há silêncio para eu produzir mais concentrado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não estipulei metas, procuro ao menos escrever algo nem que seja uma anotação por dia. Já tentei estipular tempo ou número de palavras como metas, mas se não cumpro, me decepciono e dispenso essas metas. Funciono melhor com prazos, se você me pede um conto até tal dia, me reviro para escrever até o dia de entrega.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Já compilei notas até me darem clareza do texto que tenho que começar a escrever. Outras ficam num arquivo, seja em cadernos de papel, seja no computador, para então serem aproveitados numa passagem de um conto ou me inspirarem para um tema específico. Já fiz esquemas que auxiliam a produção de um texto através de algumas oficinas que realizei, tipo fazer uma escaleta, um storyline, criar perfis de personagens. Mas nem sempre é uma regra que sigo, depende muito do texto a ser feito. Ainda não me aventurei a fazer um romance, creio que a preparação e o planejamento devam ser ainda maiores. Mas faço algumas pesquisas para o conto quando o texto exige que eu fale sobre algum assunto, desde concepções teóricas e físicas sobre a dimensão do tempo até regras do jogo do bicho.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu busco guardar para retomar em outro momento e enquanto isso continuo com outros projetos. Mas se tenho um prazo estipulado, pressiono-me a dar conclusões ao texto e abandonar o perfeccionismo. Para mim o principal desafio é otimizar o tempo livre que tenho para escrever, que é escasso, e ao longo dos anos esta escassez só aumenta. Quando estou concentrado, tirar da frente focos de distração é essencial, principalmente redes sociais e seriados.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu procuro revisar quantas vezes for necessário até achar que nada pode mudar sem comprometer o texto. Já mostrei meus trabalhos a outras pessoas que escrevem, a leitores, até leitura crítica já contratei para o meu livro mais recente, o Interfaces. Acho importante uma leitura tanto leiga quanto técnica para descobrirmos vícios nossos e lacunas de clareza no texto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre começo pelos rascunhos à mão, a não ser que não tenha um bloco disponível e use o bloco do celular. Quando as ideias vêm acho que acompanho mais sua fluidez pela escrita à mão, deixo registradas as rasuras, a velocidade que o pensamento chega, para mim é muito mais fácil resgatar anotações num bloco de papel do que no computador. Mas o uso da tecnologia é fundamental para trabalhar o texto, utilizo o Scrivener porque ajuda a organizar diferentes textos e fazer anotações, incluir pesquisas, elaborar um projeto. Acabo utilizando mais o computador quando o texto começa a ganhar mais forma.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ideias vêm de uma situação que enxerguei ou que vivi, de uma palavra que aprendi, de um sonho, de um cartaz de um gato perdido, da atitude das pessoas na rua, na fila da padaria, no ônibus, na internet. Também vêm dos livros e notícias que leio, de algum filme ou comercial, de um documentário, de toda produção cultural que tenho acesso. Em oficinas de literatura tive também sugestões de temas a desenvolver, gosto de receber desafios por conversas com amigos, sair do lugar comum que a gente está acostumado. Gosto de explorar a forma dos contos, desenvolver histórias a partir de imagens, pensamentos ou sentimentos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sim, quando tinha uns vinte e poucos anos (tenho 46) tinha uma prosa mais poética e descritiva. Ultimamente dei maior importância ao enredo, à ação, a experimentar mais formas e temas. Meus textos atuais têm um pouco mais de uma literatura do absurdo e do humor, mas também mantive um apreço pela mitologia como nos textos antigos. Se eu pudesse voltar no tempo diria a mim mesmo para não me preocupar com o perfeccionismo. Para produzir mais, nem que me envergonhe de ter escrito o que escrevi há anos atrás. O problema é que eu acabava sendo o crítico mais rigoroso dos meus textos e isso funcionava como uma trava. É como tirar fotografia. Tiro umas trinta fotos de uma mesma cena para aproveitar uma ou nenhuma. Mas se quisesse a foto perfeita no primeiro clique, com a luz que exijo e com o enquadramento ideal, não conseguiria dar um disparo. Com a escrita, a gente também faz parágrafos inteiros que vão para o lixo ou que são guardados por haver algo ali que possa ser aproveitado futuramente, mas não para aquele texto que está sendo feito agora. É preciso também desapegar de muitas palavras.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Já quis fazer uma coletânea de contos com um foco mais centrado numa atualização dos mitos. Coisas que pontuei em Bricabraque e que também estão presentes no meu último livro Interfaces. Quero também encontrar e fortalecer a minha voz, o meu estilo, para isso também leio literatura do absurdo, principalmente as peças escritas para o teatro. Quem sabe ainda faça um romance, mas ainda não despertei para um projeto mais extenso.
Gostaria de ler um livro que, ao terminar a leitura, me fizesse continuar a ler suas histórias e personagens no mundo. Uma qualidade que os clássicos, em geral, alcançam. Para mim, o Mahabharata contém a melhor história já escrita, entrelaçada por tantas outras, e é meu projeto de leitura para toda a vida.