André Luiz Pinto da Rocha é autor de Flor à margem (1999), Primeiro de Abril (2004), Isto (2005), Ao léu (2007), Terno Novo (2012), Mas valia (2016) e Nós, os dinossauros (2016).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina é a mais comum. Como qualquer trabalhador, não acordo, sou acordado pelos deveres e afazeres do dia. Dependendo do horário em que bato o ponto, me levanto até de madrugada, mas sempre, no mais tardar, pela manhã.
Se eu tenho uma rotina matinal? Os dentes são escovados com pressa, a comida é engolida, quase que abrindo mão do gosto.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há uma hora específica. Há poemas de que me orgulho que escrevi de madrugada, outros pela manhã, outros à tarde, e houve outros também à noite, ainda que eu escreva em geral pela manhã e de madrugada, quando fico mais sozinho. E, sim, algumas coisas ajudam a escrever; por exemplo, ouvir música. A música me ajuda a obter ritmo. Por exemplo, tem um poema em meu livro Flor à margem, que escrevi enquanto ouvia a parte instrumental da música “Varal”, dos Paralamas do Sucesso, no LP Severino. Sonhava um dia gravar o poema tendo a canção como fundo. Ouçam-na e, após o trecho cantado por Herbert Vianna, leiam o poema em voz alta para ver. Na minha cabeça, quando eu o escrevi, funcionou:
Os galhos secos nascem virgens, brotam mortos no verão. E um menino socorre o mundo num primeiro berro. Mal sabe berrar. Força nem tem. Os galhos secos embelezam a paisagem numa coroa onde os espinhos não ferem os que abrigam; por cima de todos, o chão abre fendas maiores do que cova. Dentro dessas covas, um esterco esfolado pela pata de um boi anuncia: a chuva falta pouco. Os galhos secos nascem virgens, a vida mal respira, o ar é inflamável. E os filhos de seus filhos ainda vão suar uma água que nem Deus sabe de onde vem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta de escrita diária. Mas escrevo quase que diariamente. E há períodos, principalmente quando estou no fim de um livro, em que escrevo mais. É algo que me instiga: ser convidado a fazer projetos. Seja um livro de poemas, um artigo, ensaio ou capítulo de livro, quando há um prazo para ser entregue, acelero e me concentro no que precisa ser feito. É um desafio que me atrai.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Livros de poesia, e assim são os meus livros, não são temáticos, mas ambientes abertos, um modo de me sintonizar no mundo, emocionalmente. Foi sempre desse jeito. Os títulos surgiram na medida em que eu ia sentindo o lugar onde os poemas me traziam. Mas meus livros tratam da mesma coisa: alguém que se sente à margem, certa mistura de orgulho, de injustiça e insatisfação. Daí os títulos: Flor à margem, Ao léu, Mas valia, Nós, os dinossauros, e agora este, ainda inédito, Migalha. Voltando à sua pergunta, os meus poemas vão se juntando aos poucos, e cada livro é apenas um capítulo do romance que é a minha vida.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação, o medo de não conseguir escrever, tinha quando era jovem; hoje tenho menos. Contudo, ainda que hoje eu escreva menos, os intervalos entre os poemas são mais regulares do que antes. Em geral, esses desertos criativos acontecem em especial quando o livro sai da editora. É a hora em que eu fico mais agitado. Enquanto estou à procura de uma editora para publicar um livro, não: vivo a sensação de que eu preciso continuar a escrever para ter outro livro na manga caso aquele seja rejeitado por todos. Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, já me acostumei. Nunca me dei valor ou talvez me tenha dado demais. Sei que muitos também se sentem assim, mas é essa a minha sensação, como pus em Ao léu, de quem se sente “um zero à esquerda até no momento do gol”, e essa sensação ao mesmo tempo é o que me move para frente e acaba me colocando um pouco acima do chão:
Jacarezinho
o que
é o que é
é tão pequeno
que quando nasce
já morreu
que quando corre
escorreu
: arte
arte:
mancada maior não há
quando sua escola
fica
no jacarezinho
e um muro
caiado descascado serve
de abrigo para as primeiras fotos
da infância
os moleques sedentos
narizes
escorrendo
muitos
caíram aos dezenove
tinha tudo
pra ser feliz (p. ex
caminhoneiro)
então preferiu fazer uso
da palavra
: mágoa
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O número de vezes é enorme, chega a algumas dezenas. Em Ao léu, chamei a mão que escreve de analfabeta: aquela que tenta entender o que a cabeça pensou, que quer captar a velocidade de um pensamento. Raramente um poema vem de uma tacada. De uma tacada, acho que só foram uns dez poemas, dos cento e oitenta poemas por mim já publicados. Quanto a mostrar os poemas, quem me conhece sabe que eu gosto de mostrar os meus, tanto quanto gosto de ler os poemas dos outros. Nesse sentido, as páginas sociais são um ótimo termômetro. Costumo mostrar os poemas isoladamente, não em seu conjunto, quando o livro já está pronto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Primeiro, à mão. Só teve um poema que eu escrevi diretamente no computador e que está no meu livro inédito Migalha. E, sinceramente, ainda que tenha gostado do resultado, se não, não o publicaria, não me satisfez o processo. Primeiro o poema é escrito no papel, em geral, num caderno. São vários cadernos de poesia, onde eu escrevo e reescrevo o poema dez, quinze vezes. Depois, passo para o computador e ali trabalho outras vinte, trinta vezes, ora alterando o texto, ora a sua disposição na página. Penso na tipografia. Para mim, assim como ler um livro de poemas pela manhã é diferente de lê-lo de madrugada, como lê-lo no ônibus é diferente de quando a gente lê em casa, um poema publicado com tal fonte será diferente quando com outra. Poesia é uma central de sensações e afetos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Levo em conta tudo o que eu vivo, leio e vejo. Tudo é, enfim, matéria para poesia. Se você me perguntar quando esse senso de observação começou, acho que foi em 1994, aos dezenove anos, quando eu escrevi um poema que depois foi publicado em Primeiro de Abril, em 2004. Na época em que ele foi escrito, eu era acadêmico em enfermagem e obstetrícia pela Uni-Rio. Estava na época estagiando no Hospital Souza Aguiar e vi na Avenida Presidente Vargas, na altura do Campo de Santana, um acidente automobilístico. Coincidentemente, eu viria a socorrer os seus acidentados, meia hora depois. Na hora em que vi o acidente, a imagem me veio como um relâmpago: se os homens são os lírios do campo, os atropelados são essas flores despetaladas. Escrevi no caderno da faculdade os quatro últimos versos do poema. O resto surgiu depois, quando voltei para casa e pude escrever com mais calma o que faltava:
Olhai os atropelados da esquina
Eles não colhem nem ceifam
e ainda te achais melhor do que eles?
Viajemos profundo. O corpo carrega a alma
que surdamente desfalece e o abandona
Os atropelados da esquina irão para os hospitais
Lá dormitam anjos de branco
e um suor amargo permeia toda gravidade
Os atropelados são atendidos, porém, há tantos
Souza Aguiar, Salgado Filho, Miguel Couto
Bendito sejas anjo de branco
Bendito o vosso fruto que os reparte
que me corta em fatias. Algumas sobrevivem
outras estarão em vidros de formol e estudo
Bendito sejas onde tudo é permitido
Só o corpo não permite a sua salvação
e a vida se dá por um fio, por uma gota
Da veia, exige todo transporte
Teu fígado é corrosivo. Teu rim é ácido
Há tendências de secura e afastamento
Os atropelados da esquina sorriem
dormem diante um sono tranquilo, sem atropelados
Lá estarão melhor
Os atropelados são homens, lírios
Brotam no meio do asfalto
onde toda velocidade
retira-lhe as pétalas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que cada livro meu é autônomo em estilo em relação aos outros. Sou, à maneira de Drummond, uma oficina irritada. Pensando melhor, estou mais para uma oficina dramática do que propriamente para uma oficina irritada, ou esteja para as duas, não sei. Meu jeito de escrever, que vai da clareza ao obscurantismo, aponta para alguns humores, como que a incursionar, pelo viés da linguagem, a confusão e a certeza. Assim, em Primeiro de abril, o que estava em jogo era decifrar, por motivos pessoais que não cabem cita-los aqui, o obscuro e o inconsciente:
Como se da desavença
restasse uma flor
peremptório gancho
dessa face cruzando
alheia a sonhos
e diretrizes; se do peso
e da palavra bom dia
rogasse um pranto
duro (…), daninho
queria dizer, decifrar
a tétrica cor de homem
manchando a camisa
colhendo as divisas
de uma dignidade
que nem conheceste
que não recebeste
e até soprara forte
no peito; sim, dessa flor
que desaba quarteirões
inteiros de rugas, natais
opressos sem mão
afago de mão pelo
filho vindouro: mal
reveste a lacuna do medo
num muro ardente
de cal.
Em Ao léu deu-se um movimento de abertura para o inteligível, uma reabertura no caso, onde pude, mais do que nos livros anteriores, dirigir o olhar para o Rio, a cidade que me fez. E assim, escrevi:
A cidade comove, risível quanto
o mar, qual o sentido
da palavra risível onde as casas
se amotinam sob a grossa poeira?
Onde minha mãe nascera
minha avó morrera
o subúrbio não se cansa de dizer
mais esquecido que o Nordeste.
Escrever é proibido, artistas vivem
de pagode, bate aqui no peito
a ruína de quem cedo
aprendeu a ler e eu não devia.
Tudo isso contado junto
enquanto os vagões
desandam por entre os bairros
poderia ser Nova Iorque.
Madureira, matadouro de homens
dos secos e molhados
nas praças e nos
congados, de nossas vítimas.
Todos os meus livros são pessoais. Dizer onde começa o estilo, as soluções que adotei para a escrita e para a vida é quase impossível. Realmente, essas coisas estão na mesma colher. Em Nós, os dinossauros, de 2016, que é o livro que mais gostei de ter escrito, Cris está toda presente como um recomeço:
Gare
Chove em Copacabana.
O que dobra são os sinos da Igreja ao lado
abafado à buzina dos carros
e o vermelho das maçãs. A padaria
estava aberta, ia quase me esquecendo.
Que bom que te encontrei
ainda de manhã.
Agora, em Migalha, minha preocupação não está tanto na forma como eu escrevo, nem sobre o que eu escrevo, mas em conseguir guardar o estado de espírito disso que comumente chamam de poesia:
Quando saio com meu filho costumo passar por uma rua detrás. Na entrada de um dos prédios, uma árvore e que Tales adora tocar as folhas, sentindo os contornos. Um dos moradores interrompeu num dia desses nosso passeio: vejo que o garoto adora tocar na planta, deixa eu arrancar algumas folhas a mais para ele… Por favor, não faça… mesmo assim fez. Quando as pessoas irão entender que experimentar é justamente o contrário de ter?
E agora você me pergunta o que eu diria a mim mesmo se eu pudesse voltar. Não sei, José Nunes. Daria o conselho que me dei num poema acima: nesse país, garotos pobres como você estão proibidos de escrever. Com certeza o rapazote de 1991 não me ouviria. E o pior é que ele está certo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Pretendo com Migalha, meu novo livro de poemas, ganhar ou pelo menos ser indicado em algum grande prêmio literário brasileiro, mas estou ciente que isso nunca vai acontecer. Contento-me então em só deixar uma antologia. Já tem até nome: Aos cuidados de Platão. E assim, depois de enviar um pedido de desculpa ao rei-filósofo, quero voltar à república, mandar assar um galo para Asclépio, me sentir mais satisfeito comigo mesmo e um dia, quem sabe, ser aquilo que chamam de feliz.
“You’re going to reap just what you sow”
(Lou Reed)