Como eu escrevo

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Como escreve André Luiz Pinto da Rocha

12 de novembro de 2018 by José Nunes

André Luiz Pinto da Rocha é autor de Flor à margem (1999), Primeiro de Abril (2004), Isto (2005), Ao léu (2007), Terno Novo (2012), Mas valia (2016) e Nós, os dinossauros (2016).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Minha rotina é a mais comum. Como qualquer trabalhador, não acordo, sou acordado pelos deveres e afazeres do dia. Dependendo do horário em que bato o ponto, me levanto até de madrugada, mas sempre, no mais tardar, pela manhã.

Se eu tenho uma rotina matinal? Os dentes são escovados com pressa, a comida é engolida, quase que abrindo mão do gosto.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Não há uma hora específica. Há poemas de que me orgulho que escrevi de madrugada, outros pela manhã, outros à tarde, e houve outros também à noite, ainda que eu escreva em geral pela manhã e de madrugada, quando fico mais sozinho. E, sim, algumas coisas ajudam a escrever; por exemplo, ouvir música. A música me ajuda a obter ritmo. Por exemplo, tem um poema em meu livro Flor à margem, que escrevi enquanto ouvia a parte instrumental da música “Varal”, dos Paralamas do Sucesso, no LP Severino. Sonhava um dia gravar o poema tendo a canção como fundo. Ouçam-na e, após o trecho cantado por Herbert Vianna, leiam o poema em voz alta para ver. Na minha cabeça, quando eu o escrevi, funcionou:

Os galhos secos nascem virgens, brotam mortos no verão. E um menino socorre o mundo num primeiro berro. Mal sabe berrar. Força nem tem. Os galhos secos embelezam a paisagem numa coroa onde os espinhos não ferem os que abrigam; por cima de todos, o chão abre fendas maiores do que cova. Dentro dessas covas, um esterco esfolado pela pata de um boi anuncia: a chuva falta pouco. Os galhos secos nascem virgens, a vida mal respira, o ar é inflamável. E os filhos de seus filhos ainda vão suar uma água que nem Deus sabe de onde vem.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Não tenho uma meta de escrita diária. Mas escrevo quase que diariamente. E há períodos, principalmente quando estou no fim de um livro, em que escrevo mais. É algo que me instiga: ser convidado a fazer projetos. Seja um livro de poemas, um artigo, ensaio ou capítulo de livro, quando há um prazo para ser entregue, acelero e me concentro no que precisa ser feito. É um desafio que me atrai.

Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Livros de poesia, e assim são os meus livros, não são temáticos, mas ambientes abertos, um modo de me sintonizar no mundo, emocionalmente. Foi sempre desse jeito. Os títulos surgiram na medida em que eu ia sentindo o lugar onde os poemas me traziam. Mas meus livros tratam da mesma coisa: alguém que se sente à margem, certa mistura de orgulho, de injustiça e insatisfação. Daí os títulos: Flor à margem, Ao léu, Mas valia, Nós, os dinossauros, e agora este, ainda inédito, Migalha. Voltando à sua pergunta, os meus poemas vão se juntando aos poucos, e cada livro é apenas um capítulo do romance que é a minha vida.

Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

A procrastinação, o medo de não conseguir escrever, tinha quando era jovem; hoje tenho menos. Contudo, ainda que hoje eu escreva menos, os intervalos entre os poemas são mais regulares do que antes. Em geral, esses desertos criativos acontecem em especial quando o livro sai da editora. É a hora em que eu fico mais agitado. Enquanto estou à procura de uma editora para publicar um livro, não: vivo a sensação de que eu preciso continuar a escrever para ter outro livro na manga caso aquele seja rejeitado por todos. Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, já me acostumei. Nunca me dei valor ou talvez me tenha dado demais. Sei que muitos também se sentem assim, mas é essa a minha sensação, como pus em Ao léu, de quem se sente “um zero à esquerda até no momento do gol”, e essa sensação ao mesmo tempo é o que me move para frente e acaba me colocando um pouco acima do chão:

Jacarezinho

o que

é o que é

é tão pequeno

que quando nasce

já morreu

que quando corre

escorreu

: arte

arte:

mancada maior não há

quando sua escola

fica

no jacarezinho

e um muro

caiado descascado serve

de abrigo para as primeiras fotos

da infância

os moleques sedentos

narizes

escorrendo

muitos

caíram aos dezenove

tinha tudo

pra ser feliz (p. ex

caminhoneiro)

então preferiu fazer uso

da palavra

: mágoa

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

O número de vezes é enorme, chega a algumas dezenas. Em Ao léu, chamei a mão que escreve de analfabeta: aquela que tenta entender o que a cabeça pensou, que quer captar a velocidade de um pensamento. Raramente um poema vem de uma tacada. De uma tacada, acho que só foram uns dez poemas, dos cento e oitenta poemas por mim já publicados. Quanto a mostrar os poemas, quem me conhece sabe que eu gosto de mostrar os meus, tanto quanto gosto de ler os poemas dos outros. Nesse sentido, as páginas sociais são um ótimo termômetro. Costumo mostrar os poemas isoladamente, não em seu conjunto, quando o livro já está pronto.

Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Primeiro, à mão. Só teve um poema que eu escrevi diretamente no computador e que está no meu livro inédito Migalha. E, sinceramente, ainda que tenha gostado do resultado, se não, não o publicaria, não me satisfez o processo. Primeiro o poema é escrito no papel, em geral, num caderno. São vários cadernos de poesia, onde eu escrevo e reescrevo o poema dez, quinze vezes. Depois, passo para o computador e ali trabalho outras vinte, trinta vezes, ora alterando o texto, ora a sua disposição na página. Penso na tipografia. Para mim, assim como ler um livro de poemas pela manhã é diferente de lê-lo de madrugada, como lê-lo no ônibus é diferente de quando a gente lê em casa, um poema publicado com tal fonte será diferente quando com outra. Poesia é uma central de sensações e afetos.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?

Levo em conta tudo o que eu vivo, leio e vejo. Tudo é, enfim, matéria para poesia. Se você me perguntar quando esse senso de observação começou, acho que foi em 1994, aos dezenove anos, quando eu escrevi um poema que depois foi publicado em Primeiro de Abril, em 2004. Na época em que ele foi escrito, eu era acadêmico em enfermagem e obstetrícia pela Uni-Rio. Estava na época estagiando no Hospital Souza Aguiar e vi na Avenida Presidente Vargas, na altura do Campo de Santana, um acidente automobilístico. Coincidentemente, eu viria a socorrer os seus acidentados, meia hora depois. Na hora em que vi o acidente, a imagem me veio como um relâmpago: se os homens são os lírios do campo, os atropelados são essas flores despetaladas. Escrevi no caderno da faculdade os quatro últimos versos do poema. O resto surgiu depois, quando voltei para casa e pude escrever com mais calma o que faltava:

Olhai os atropelados da esquina

Eles não colhem nem ceifam

e ainda te achais melhor do que eles?

Viajemos profundo. O corpo carrega a alma

que surdamente desfalece e o abandona

Os atropelados da esquina irão para os hospitais

Lá dormitam anjos de branco

e um suor amargo permeia toda gravidade

Os atropelados são atendidos, porém, há tantos

Souza Aguiar, Salgado Filho, Miguel Couto

Bendito sejas anjo de branco

Bendito o vosso fruto que os reparte

que me corta em fatias. Algumas sobrevivem

outras estarão em vidros de formol e estudo

Bendito sejas onde tudo é permitido

Só o corpo não permite a sua salvação

e a vida se dá por um fio, por uma gota

Da veia, exige todo transporte

Teu fígado é corrosivo. Teu rim é ácido

Há tendências de secura e afastamento

Os atropelados da esquina sorriem

dormem diante um sono tranquilo, sem atropelados

Lá estarão melhor

Os atropelados são homens, lírios

Brotam no meio do asfalto

onde toda velocidade

retira-lhe as pétalas.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?

Acho que cada livro meu é autônomo em estilo em relação aos outros. Sou, à maneira de Drummond, uma oficina irritada. Pensando melhor, estou mais para uma oficina dramática do que propriamente para uma oficina irritada, ou esteja para as duas, não sei. Meu jeito de escrever, que vai da clareza ao obscurantismo, aponta para alguns humores, como que a incursionar, pelo viés da linguagem, a confusão e a certeza. Assim, em Primeiro de abril, o que estava em jogo era decifrar, por motivos pessoais que não cabem cita-los aqui, o obscuro e o inconsciente:

Como se da desavença

restasse uma flor

peremptório gancho

dessa face cruzando

alheia a sonhos

e diretrizes; se do peso

e da palavra bom dia

rogasse um pranto

duro (…), daninho

queria dizer, decifrar

a tétrica cor de homem

manchando a camisa

colhendo as divisas

de uma dignidade

que nem conheceste

que não recebeste

e até soprara forte

no peito; sim, dessa flor

que desaba quarteirões

inteiros de rugas, natais

opressos sem mão

afago de mão pelo

filho vindouro: mal

reveste a lacuna do medo

num muro ardente

de cal.

Em Ao léu deu-se um movimento de abertura para o inteligível, uma reabertura no caso, onde pude, mais do que nos livros anteriores, dirigir o olhar para o Rio, a cidade que me fez. E assim, escrevi:

A cidade comove, risível quanto

o mar, qual o sentido

da palavra risível onde as casas

se amotinam sob a grossa poeira?

Onde minha mãe nascera

minha avó morrera

o subúrbio não se cansa de dizer

mais esquecido que o Nordeste.

Escrever é proibido, artistas vivem

de pagode, bate aqui no peito

a ruína de quem cedo

aprendeu a ler e eu não devia.

Tudo isso contado junto

enquanto os vagões

desandam por entre os bairros

poderia ser Nova Iorque.

Madureira, matadouro de homens

dos secos e molhados

nas praças e nos

congados, de nossas vítimas.

Todos os meus livros são pessoais. Dizer onde começa o estilo, as soluções que adotei para a escrita e para a vida é quase impossível. Realmente, essas coisas estão na mesma colher. Em Nós, os dinossauros, de 2016, que é o livro que mais gostei de ter escrito, Cris está toda presente como um recomeço:

Gare

Chove em Copacabana.

O que dobra são os sinos da Igreja ao lado

abafado à buzina dos carros

e o vermelho das maçãs. A padaria

estava aberta, ia quase me esquecendo.

Que bom que te encontrei

ainda de manhã.

Agora, em Migalha, minha preocupação não está tanto na forma como eu escrevo, nem sobre o que eu escrevo, mas em conseguir guardar o estado de espírito disso que comumente chamam de poesia:

Quando saio com meu filho costumo passar por uma rua detrás. Na entrada de um dos prédios, uma árvore e que Tales adora tocar as folhas, sentindo os contornos. Um dos moradores interrompeu num dia desses nosso passeio: vejo que o garoto adora tocar na planta, deixa eu arrancar algumas folhas a mais para ele… Por favor, não faça… mesmo assim fez. Quando as pessoas irão entender que experimentar é justamente o contrário de ter?

E agora você me pergunta o que eu diria a mim mesmo se eu pudesse voltar. Não sei, José Nunes. Daria o conselho que me dei num poema acima: nesse país, garotos pobres como você estão proibidos de escrever. Com certeza o rapazote de 1991 não me ouviria. E o pior é que ele está certo.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Pretendo com Migalha, meu novo livro de poemas, ganhar ou pelo menos ser indicado em algum grande prêmio literário brasileiro, mas estou ciente que isso nunca vai acontecer. Contento-me então em só deixar uma antologia. Já tem até nome: Aos cuidados de Platão. E assim, depois de enviar um pedido de desculpa ao rei-filósofo, quero voltar à república, mandar assar um galo para Asclépio, me sentir mais satisfeito comigo mesmo e um dia, quem sabe, ser aquilo que chamam de feliz.

“You’re going to reap just what you sow”

(Lou Reed)

* Entrevista publicada originalmente em 12 de novembro de 2018, no comoeuescrevo.com (@comoeuescrevo).

Arquivado em: Entrevistas

Sobre o autor

José Nunes (@comoeuescrevo) é doutor em direito pela Universidade de Brasília.

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