André Gravatá é poeta e educador.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Costumo acordar bem cedo, por volta das cinco da manhã, e mastigo os primeiros instantes do dia lentamente. Ainda de olhos fechados, tento pescar as imagens do sonho, para não perder seus mistérios, e ainda cedo anotar num caderno. Geralmente no início dos meus dias estão os cadernos onde escrevo não apenas sonhos, mas também palavras soltas, ideias e reflexões que acordam no meu pensamento como se estivessem me esperando há séculos e me beliscam pedindo atenção. Os cadernos estão sempre presentes como reservatórios para as palavras que se levantam junto com a manhã. Um hábito que costumo repetir, sempre que posso, é me manter distante do celular nas primeiras horas do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sinto que escrevo mais vivamente pela manhã. Mas sei também que, dependendo das circunstâncias e de quão aguçados e vivos estão os meus sentidos e minha paixão, a escrita nasce em qualquer horário e lugar. Antes da pandemia, eu fazia muitas caminhadas pela rua como pretexto para as palavras se movimentarem dentro de mim – como confio que não pensamos só com a cabeça, caminhar é arejar também as ideias que nascem nos pés e mãos e olhos e ouvidos etc. É indispensável para a minha escrita que eu me alimente no cotidiano com livros, filmes, músicas e principalmente conversas e experiências que abrem espaços dentro de mim. Que me possibilitam perceber outras perspectivas e direções, para que eu não me limite ao que já conheço. Meu maior ritual de preparação para a escrita é abrir espaço, seja caminhando, seja lendo, seja escutando uma pessoa ou mesmo um silêncio.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo um pouco todo dia, mas quando estou me dedicando a alguma criação mais extensa, que exige uma dose maior de fôlego, é fundamental eu me concentrar durante horas e dias até perder a noção da divisão do tempo em horas e dias. Não tenho uma meta diária, mas tenho um compromisso que se reafirma a cada segundo, a cada dia, a cada mês, a cada ano. É um compromisso com a vida e a escrita ao mesmo tempo, porque elas estão entrelaçadas no meu caminho. Esse compromisso se desdobra de várias maneiras… Na vida e na escrita: viver as várias camadas da experiência de estar aqui, neste tempo, neste corpo. Na vida e na escrita: me relacionar com cada palavra como um organismo vivo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é errático: tem poemas que nascem de repente, prontos, outros depois de meses ainda estão sem uma liga para a mistura das palavras. O tempo e a escuta são indispensáveis. Tempo para escutar e escutar e escutar cada palavra e suas reverberações no corpo. O querido poeta Ricardo Aleixo, que considero ao mesmo tempo um mestre e um irmão, me ensinou a sempre ler os textos em voz alta como um gesto de atenção ao ritmo e a outras inúmeras forças do poema – e esse gesto é parte fundamental do meu processo hoje.
Quando aprendi a ler, eu que sou filho de nordestinos que nasceram no sertão da Bahia e estudaram poucos anos na escola, minha mãe celebrou esse meu saber com toda a alegria e pedia para eu ler para os vizinhos e familiares, em voz alta, qualquer papel que estivesse ao alcance da mão. Foi numa oficina com o Ricardo, contando essa história, que percebi: as palavras escritas já se infiltraram em mim com um chamado para que se tornassem voz em direção às pessoas.
Percebi que, na minha prática, sustentar a escrita ao longo do tempo é o mais desafiador, principalmente quando a intenção é escrever uma série de poemas ou um texto mais longo. Pois sustentar a escrita ao longo do tempo demanda uma retomada constante do sentido daquela escrita. Sinto que só consigo sustentar esse sentido se minha escrita continua permeável ao tempo presente, ao espanto, à raridade que é o instante. Nunca me esqueço de um poema do Solano Trindade em que ele diz que ia falar sobre as mãos da amada mas soube que a polícia espancou um companheiro e o poema não saiu. Às vezes nem o poema sai porque o espanto e a indignação tomam conta de nós e esse é o poema.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Um dia acampei em frente a um cacto aqui na sala de casa. Era visível que a flor num braço do cacto estava prestes a se abrir. Queria flagrar o exato segundo de abertura. O que mais me impressionou? Nada no botão da flor se assemelhava a movimentos afobados e precipitados para desabrochar antes do tempo necessário de maturação. Nada no cacto sinalizava uma vontade de ser elogiado ou medo de críticas. Aquela flor viria no tempo que era para vir, sem mais nem menos um segundo. Demoraria o tempo que precisasse para se compor. E ver a vida daquele cacto me causou uma forte impressão, como se aquela cena carimbasse algo em mim. É possível que o cacto estivesse urgindo o nascimento da flor, todo o corpo dele tinha relação com aquele ato… Sem afobação, aquele cacto estava me perguntando: “meu corpo está todo envolvido com o ato da criação, e o seu?” Essa cena me faz refletir sobre como me relaciono com o processo de criação, o quanto me entrego e a bobagem que é forçar o nascimento de um poema.
E não posso deixar de dizer: cada poema que escrevo é uma criação coletiva. Meus poemas só existem por causa de tudo que aprendi com meus pais, dona Josefa e seu José, anos e anos se dedicando de mil maneiras na criação de condições básicas para eu estudar e sonhar. Meus poemas só existem por causa das políticas públicas que foram portas possíveis de abrir, como o ProUni. Meus poemas só existem por causa de tantos parentes que vieram antes de mim… Cada poema é um ato coletivo. E passei a perceber isso com mais atenção em conversas com o poeta Ricardo Aleixo, a quem agradeço infinitamente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Milhares de vezes. A revisão é minha maneira de conviver com aquelas palavras até me tornar o mais íntimo possível delas. Seja lendo em voz alta para eu mesmo ouvir, ou para outras pessoas, seja lendo enquanto caminho pela casa, seja deixando elas descansarem uns dias e depois voltando a conviver com elas como num encontro pela primeira vez.
Tem um poema da querida escritora Conceição Evaristo que sempre está presente nas minhas oficinas de poesia e começa assim: “Quando eu morder / a palavra, / por favor, / não me apressem, / quero mascar, / rasgar entre os dentes / a pele, os ossos, o tutano / do verbo…”. Morder as palavras repetidamente até chegar ao tutano é o meu desejo quando reviso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo muito à mão, pois sinto que com meu caderno e minha caneta entro num estado de presença e concentração que não alcanço tão imediatamente no computador. Mas também há textos que nascem direto no computador. Outros nascem direto na voz, como um poema longo que escrevi enquanto caminhei por um dia inteiro, ao longo de doze horas, num ato que aconteceu dias antes do início da quarentena em São Paulo. Enquanto eu caminhava, falava os versos e gravava tudo com o celular, para depois transcrever.
Mas também experimento a relação com a tecnologia de outras maneiras: uma vez, junto com a Serena Labate, artista, educadora e amada companheira, imprimimos um livro numa impressora alugada, foram sete dias escutando o barulho das páginas sendo tomadas por palavras e ilustrações e o som do livro nascendo dia após dia é uma memória que trouxe ainda mais significado para aquela criação. Faço com a Serena também o projeto do “jornal das miudezas”, um jornal impresso com uma nova edição a cada três meses, numa contínua experimentação dessa tecnologia que é a mídia impressa (para saber mais sobre o jornal, entre aqui www.sorverversos.com).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Olha, essa pergunta é boa, mas não tenho resposta, eu mesmo gostaria de perguntar para cada uma das ideias: de onde você vem? Mesmo sem origem precisa, sei que muitas ideias vêm da mistura de tudo que vivo e leio no mundo. E não se lê apenas livros. Dá pra ler pessoas, chãos, músicas, cicatrizes, desperdícios, memórias. Entre meus hábitos está essa observação obsessiva das linhas e entrelinhas ao meu redor, em mim, e a constante fazeção de perguntas.
Perguntas desarmam nossas certezas e abrem espaço. Precisamos mais e mais de perguntas que transformem em pó especialmente aquelas certezas que nos afastam, certezas sólidas como as pedras absurdas que a prefeitura de São Paulo instalou debaixo de viadutos para barrar a ocupação de pessoas em situação de rua – na última notícia que li, diziam que as pedras estavam sendo retiradas, mas não dá para esquecer a hostilidade na decisão de fincar pedras no concreto, uma ao lado da outra, para expulsar alguém… fica a pergunta: o que colhe quem planta pedras na cidade?
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Antes eu podava muitas palavras e sensações antes do texto sair do corpo e se tornar escrita… Ou mesmo me encantava tanto com uma ideia ou um encontro de palavras que o deslumbramento se tornava fumaça no olhar, me fazia perder o ponto da massa do texto… Não que isso não aconteça hoje, mas pouco a pouco fui entendendo que cada criação tem seu tempo e seu terreno. Tem o tempo de ferver a água e o tempo de ferver as palavras num poema, que nunca é o mesmo. Tem dia que o terreno está árido e nublado e nada vai nascer. Tem dia que desabou uma chuva e prolifera palavra. Isso sem contar que há dias em que o terreno está absurdo e árido e mesmo assim nasce um poema… e há dias de sol e água em que as palavras murcham.
Se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos, diria para o André o seguinte: continue, continue, continue, escute, escute, escute.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Em vez de pensar num projeto que ainda não começou, prefiro dedicar todas as energias nas escritas que estão vivas agora, sobre as quais prefiro não falar muito, pois os poemas estão me chamando aqui, me cochicharam que em vez de ficar falando sobre eles eu tenho é que estar com eles…
E sobre a outra parte da pergunta, gostaria de ler um livro que seja tão revelador do mundo nas suas palavras que me faça largá-lo como quem solta um pássaro e em seguida seu voo é impetuoso. Que suas páginas sejam como uma ponte para o que acontece agora e ainda não percebo. Um livro que me faça largá-lo na primeira página, no primeiro verso, que seja furioso e fulminante no seu chamado para perceber o agora. Um livro como um raio. “Se um raio se vestir de livro”, assim seria o livro que gostaria de ler.