André Capilé é poeta, doutor em Literatura, autor de “rapace” (2012), “balaio” (2014) e “MUIMBU” (2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
como durmo pouco, e não muito bem, fica difícil estabelecer rotinas mais marcadas como, por exemplo, hora de levantar. contudo, alguns hábitos têm se estabelecido — a maioria deles nada salutares: busco o óculos na cabeceira de onde deito, visto-o e tomo o telefone pra checar e-mail, mensagens, notificações; em seguida troco a fralda da minha filha. pego-a e desço pra refeição da manhã [dela]. bebo água pra lavar o hálito e poder começar a falar [um hábito construído da minha religião, o candomblé]. levo Gaia pra mãe dela e vou fumar um cigarro, enquanto respondo às demandas chegadas por meio eletrônico. volto e brinco um tempo com a menina. se pelo fim da semana, levanto os materiais para as aulas que virão na seguinte; se pelo começo, reviso o material e preparo as aulas. almoço. segue o dia com saída pro trabalho no meio da tarde. é o cenário que mais tem se repetido.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
como minha rotina é, por um lado, regulada pelas demandas da IES onde trabalho, também do cuidado com a filha, e, por outro, pela irregularidade dos humores que acompanham as relações que tenho construído nos meios que frequento, a hora do dia em que há melhor rendimento, a bem da verdade, tem se tornado a hora em que isso é possível; melhor dito: quando dá. já há algum tempo só tem dado na boca da madrugada, entre 1 e 4 da manhã: a maioria dorme, o silêncio é maior, quase ninguém vai criar assunto nessa volta do relógio. houve um período em que trabalhei numa agência de moto entrega: se dava em horários variados e escrevia intuições entre as ligações dos clientes e a gritaria com os entregadores pelo rádio; num outro serviço, em que morei numa fábrica de garrafas pet —na linha de produção e carregamento, trabalhando em turnos — aconteciana hora do lanche e volta das refeições maiores, antes da meia hora de cochilo entre os pacotes. mas escrevia, na verdade, um tanto de notas picadas. essa trajetória, dita de modo curto aqui, impossibilitou essa coisa de ritual — que eu, honestamente, acho bastante romantizada. a única coisa que faço, quando em casa, é pisar em um dicionário alto pra ajustar a coluna.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
quem, hoje, não escreve todos os dias? seja um post, um tuíte, uma minuta, um processo, uma mensagem no contatinho? todos esses textos são eventos de performance — na chave do desempenho, via clickbait; na chave do exercício de dizer e estabelecer recepções. não há juízo de valor aqui, inclusive gosto. tomemos, como exemplo, os fóruns políticos, que se realizam hoje em rede, há todo um exercício no uso da língua ali.enfim, a dinâmica da escrita tem se realizado numa frequência aterradora. ora, nem tudo é escrita de criação, não é? será, mesmo? repensaria essa solução facilitadora.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
há muita nota solta, entulho velho, mensagem de texto que acabo retomando com bastante constância. quando mais inteirado do que vai acontecendo com as motivações dessas notas, passo períodos internado montando eventos de escrita que vão acabar se tornando livros impressos. dito isto, a nota já é o começo. organizar, engordar ou enxugar é que são elas. mas é processo. como sou obcecado com nuances rítmicas e de metro, há um instante em que reorganizo os textos que chegaram, escando todos eles, e começo a perturbar ora a sintaxe, ora o conforto do ritmo. já é um processo de pesquisa, por si só. meu último livro de poemas, por exemplo, foi escrito todo partindo de uma ideia tridentina: a experiência do corpo em termos rituais da minha prática religiosa; a tradução inventiva de certos mitos advindos de África, mas perturbados como eventual notação sincrética e mixagem de origens [turnos entre bantu e nagô, pra enunciar um desses mix] e, finalmente, a organização rítmica dessa peça. foram algumas das dinâmicas de pesquisa que moveram o último livro publicado, o MUIMBU.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
não lido. faço o possível pra me manter em ação. dá certo sempre? não. mas quem liga? se não escrever mais nada, em algum momento, paciência. quanto a corresponder às expectativas, não ligo. uma amiga disse, certa vez, que eu era melhor pessoa que escritor. preferi ser um sujeito razoável no mundo. acho mais justo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
o processo é de tantas idas e vindas com a organização das notas e rascunhos que, em dado momento, estão prontos de cansado.
eu acredito, fortemente, na comunicação entre os pares. comunicação ativa, invasiva, contundente. do ajuste sugerido, da contenda das defesas das escolhas. não tenho tido tempo, razoável e hábil, pra ser esse leitor. já fui melhor nisso. mas submeto meus textos pra conversas com leitores e leitoras que julgo exigentes. já troquei e travei muitas boas leituras com sujeitos que considero amigos/amigas próximos/próximas. considero crucial, mesmo. Cresci com isso, nas duas vias: a do leitor e a do fazedor de textos. acredito, muito, numa comunidade de leitores que, por acaso, escrevem. essa gente é que empurra o negócio pra cima. fiz meus amigos, quase todos, assim: lendo-os e sendo lido por eles, sem abrir mão das crises e das falas com mais quinas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
desde que há computador em casa, escrevo direto na máquina. as notas, eventualmente, estão num bloco de notas do telefone ou gravadas em áudio.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
da observação e atenção com o movimento das vias: as faladas, as ouvidas, as lidas.
minha crença no “criativo” é uma nulidade. tenho tentado me manter exercitado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
tecnicamente realizo melhor. entendo com mais precisão a intuição, o que melhora o processo investigativo e resolução dos textos.
não diria nada. aquele sujeito fez o que podia fazer, tendo nascido numa cidade sem livrarias, com uma biblioteca pública ridícula, pobre, sem perspectiva de crescimento fora do espaço comercial ou metalúrgico da época… ele fez o que dava pra fazer. não diria nada, mesmo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
faço o que dá pra fazer. por hora é quanto basta. o livro? eles me chegam, o tempo todo, por mãos inesperadas. gostava mais que a vida justa existisse do que um livro.