André Cáceres é escritor e jornalista.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O despertador rompe a fina película do silêncio da manhã, irritantemente pontual, e bate aquela crise existencial que eu sempre tenho quando quero dormir mais, mas sei que um dia vou morrer e não pretendo legar para o mundo noites bem dormidas, e sim livros bem escritos – ou não tão bem assim, a gente faz o que pode. Resolvida essa questão, vomito a minha alma pastosa para abrir espaço para o café da manhã. Nos dias de calor, vou ao parque perto de casa e corro por meia hora. Quatro quilômetros contadinhos. Nos de frio, não tenho essa coragem toda não. Tomo um banho para clarear as ideias, tirar a poeira do cérebro e dar uma polida nos pensamentos. É hora de sentar em frente ao notebook para escrever. O transe dura duas horas. Então, meu dia se desfaz. Tenho de almoçar e zarpar para o jornal.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando eu apenas estudava às manhãs, tinha certeza de que a tarde era meu oásis intelectual. Quando passei a estudar de manhã e trabalhar à tarde, descobri que as noites eram o poço de criatividade que me aguardava ao fim do arco-íris. Hoje, trabalho à tarde e à noite, e as manhãs são como um anabolizante mental para meu cérebro. Quem sabe quando eu for obrigado por um regime totalitário a trabalhar dezesseis horas por dia se não vou descobrir na madrugada meu verdadeiro ápice? Afinal o sono é uma construção social. Quanto à preparação, independentemente do horário em que estiver escrevendo, faço-o sob o efeito de pesadas drogas – só que ingeridas auditivamente, filtradas pelo corpo de diferentes músicos. Ouço rock, psicodelia, jazz, samba, metal, MPB, bossa nova, a depender do meu humor e do que pretendo colocar no papel.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não consigo, infelizmente, manter meu transe necessário para escrever ficção por períodos muito longos. Não estabeleço exatamente uma meta quantitativa, mas escrevo todos os dias pelo máximo de tempo que tiver disponível de uma só vez. Como meu trabalho também consiste em escrever, acabo passando boa parte do dia treinando minha futura tendinite. No entanto, escrever para o jornal requer um nível de concentração menor. De qualquer forma, manter a atenção no meio de uma redação barulhenta com prazos curtíssimos – às vezes, de minutos – para escrever, é um exercício bom.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Assim como para essa resposta, o mais difícil é começar. Pode parecer clichê, mas o que não é clichê em um planeta com sete bilhões de seres humanos vivos e outro punhado de cadáveres que já produziram obras monumentais? Quando consigo começar um texto bem, sei que o resto vai escorregar do cérebro para os dedos que nem quiabo. A parte da pesquisa depende muito do que estou escrevendo. Para uma reportagem, ela muda de identidade e assume a pecha de “apuração”. Quando o assunto é ficção, a pesquisa é algo mais sutil, mas também muito importante, especialmente quando escrevo ficção científica. Gosto muito de ler sobre astronomia, física, biologia, cosmologia, robótica… (Química não, desculpem-me os químicos de plantão.) No entanto, a pesquisa mais importante para a ficção não está em nenhum livro ou página da internet. É preciso ouvir algo que vem de lá de dentro, bem fundo, e que não sabemos bem o que é, mas que sai com uma fúria incontrolável, incontornável, rebento que, quando percebemos, já nem é mais nosso. É do mundo a partir do momento em que passou pelos dedos. A apuração para a ficção nunca termina.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Trabalhar em redação desde os 17 anos me fez aprender a ignorar travas. Quando você tem que escrever uma matéria em cinco minutos, não pode se dar a esse luxo. Isso me ajudou muito com a escrita literária. A diferença, quando escrevo ficção, é que não tenho prazos absurdos. Divirto-me tanto escrevendo que não preciso procrastinar. É mais provável que eu tente escrever algo para procrastinar quando tiver de fazer outra coisa. No dia em que a literatura deixar de ser um prazer e se tornar uma obrigação para mim, vou preencher relatórios ou planilhas no tempo livre. Trabalhar em projetos longos é bom por um lado, porque eu gosto de ver aquela tarefa hercúlea que antes parecia irrealizável ganhando corpo paulatinamente. O grande problema é que, assim como uma pessoa não se banha no mesmo rio duas vezes, um escritor não trabalha no mesmo livro por dois dias seguidos. O medo de não corresponder às expectativas, esse sim, é um fantasma bem grande. Quando eu descobrir como contorná-lo, volto aqui sorrateiramente na calada da noite e edito essa resposta.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Com a máquina do tempo de pulso que eu comprei em suaves prestações em um sistema planetário distante – até hoje recebo cobranças intergaláticas na caixa postal –, eu pauso a realidade vigente e reviso meus escritos infinitas vezes. Ao paradoxal término desse infindável tempo, o texto continua impublicável, mas ele me vence pelo cansaço. Mostro todos os meus textos para a minha parceira de tudo Bruna Meneguetti, que também é escritora e jornalista (ela que me indicou a loja para comprar a máquina do tempo, mas usa para revisitar o passado em seus romances históricos), e faz as vezes de minha editora, leitora beta e crítica.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho alguns robôs de estimação, implantes eletrônicos no cérebro, próteses biônicas no lugar dos membros e um coração feito em impressora 3D. Confesso que sou das antigas: escrevo tudo no computador. Vou ficar triste quando precisarmos apenas piscar os olhos para gerar todo o texto de uma vez só. Gosto do barulho percussivo das teclas. Nostalgia do século XXI, esses velhos tempos que não voltam mais.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm de um soro fabricado no lado escuro da lua de Kepler-1625b, mas não conte para ninguém. Para despistar, prefiro mentir dizendo que vem das corridas no parque e dos banhos matinais. Tento ler de tudo, assistir a filmes e séries variados, jogar videogames de toda sorte e ouvir músicas que me inspirem. Talvez de uma mescla desses elementos todos possa surgir alguma ideia no canto recôndito da caixa cranial, se esgueirando para fora, para ser transposta em letras e palavras e orações subordinadas e pixels.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Hoje eu pondero muito mais sobre o que eu quero transmitir, mas paradoxalmente me deixo muito mais livre para escrever o que vier à mente. Quando comecei, tinha muito receio de parecer assim ou assado, de não agradar, de soar meio esquisitão ou algo que o valha. Hoje em dia, ao mesmo tempo em que medito mais sobre o que realmente quero dizer, deixo minha prosa fluir mais solta para onde a mente quiser voar. Mas não acho que eu tenha idade suficiente para dar algum conselho ao eu do passado que escreveu meus primeiros textos. Prometo que meu eu do futuro, já mais experiente e sabido das coisas virá lhe informar com a máquina do tempo dele a respeito dessa questão.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de fazer um livro pós-apocalíptico de pelo menos cem páginas escrito em uma única frase. Ainda não comecei, nem sei quando começarei. Gostaria de ler uma space opera que reflita o momento atual do Brasil. Não sei se não existe mesmo ou se sou eu que não conheço.