André Balbo é escritor, autor de “Agora posso acreditar em unicórnios” (Reformatório, 2021).

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Tem uns anos que desdobro uma penca de atividades profissionais: seleção e edição de textos pra Lavoura, leituras críticas e pareceres literários, freelas de edição e revisão, preparação de cursos que no Word são lindaços, aulas de redação e literatura pré-vestibular, análise das rodadas do Campeonato Italiano. Por aí vai e volta dum jeito que seria preciso organizar o trabalho a cada semana, tem vez que a cada três dias, daí que achei sempre melhor adotar a visionária lição de Borges, o nadador: “tá na água, é pra se molhar”. Não organizo nada porque não dá pra ficar seco. Sobre misturar projetos: sim, sempre bolando dois mil e trinta e cinco ao mesmo tempo, menos quando se trata de escrever ficção. Nunca escrevo nem dois contos duma vez: sou cultor inflexível da monogamia, em matéria de escrita e de bebida: Campari.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Cada projeto com suas calças e, como não tem mais bobo na literatura, vou responder pondo pra jogo meu próximo livro de contos: Agora posso acreditar em unicórnios – apelidado de Unicórnios pelos fãs, que são dois até o momento –, que está em pré-venda.
Dele, só não planejei o nascimento. Estava viciado n’A tempestade, que eu conhecia na tradução da Bárbara Heliodora. Saudosa. Belo dia choveu pra caralho em São Paulo, eu tinha tomado umas na noite anterior e meu segundo nome é Sebastian – tudo tem a ver com a peça –, daí eu tirei a manhã seguinte pra ler na tradução da Beatriz Viégas-Faria. E foi nela que deparei com a frase “agora posso acreditar em unicórnios”, achei fodida, puta som, puta ritmo, parecia “Gente humilde”, tentei cantar a frase no lugar de “tem certos dias em que eu penso em minha gente”, caiu perfeito, fiz a escanção das duas e pimba: dodecassílabas, com tônicas nas posições 4, 8 e 12, tal do verso romântico, ou trímetro peônico, dá pra acreditar? Só por isso já merecia um livro.
Mas é mentira, isso tudo eu só descobri depois, a verdade é que eu tenho uma brincadeira – 12 a cada 10 escritores têm a mesma – que consiste em pegar frases e adicionar “& outros contos”; se soar bem, é título de livro contemporâneo. Fiz o teste com “agora posso acreditar em unicórnios” e deu certo. Nasceu assim: como uma idiotice. E acaba aí a palhaçada, porque disso pra frente é sem tempo pra papo inspiratório, que lampejo não resiste a dois minutos de planejamento.
Dá bem mais tesão planejar o livro do que escrever, até porque no planejamento a gente é genial, altas agudezas e virtudes estéticas, daí na hora h do dia d escreve coisas como “Era um sábado de sol” e cai na real de que it’s a long way to the top if you wanna Oceanos. Mas é a condição pra fazer parar em pé um livro de contos. Desconfio com vesguice de tudo que se apresenta decorrente de pura inspiração, e dou dois motivos, pra falar de forma grosseira: a poética do conto é um exercício de forma, e de nada adianta “deixar fluir” as histórias, por “melhores” que sejam, sem lidar com o problema do como narrar; e um livro de contos não é mera coletânea de contos, como grande parte do que a gente ainda publica todos os anos, pois requer unidade e amarramento entre os textos em termos de projeto estético, temática, linguagem etc.
Sobre o que foi mais difícil de escrever, começo ou final, já tem tanto tempo da primeira versão do livro que não lembro, caducou. Mas dá pra contar que em geral as primeiras frases que escrevi pros contos acabaram se tornando fechamento e não abertura – famosa escrita Moonwalker.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Não sigo rotina e ambiente é o de menos, se bem que tem poucas coisas mais estimulantes pro ato da escrita do que uma parede limpa na frente dos olhos – dizem que Dante escreveu A divina comédia num loft sem móveis que alugou na QuintoAndar, mas até aí dizem tanta coisa.
Não preciso de silêncio, não o literal, mas cai muito bem algum tipo de alienação calculada e acho até que, se combinar direitinho de ligar uma britadeira ininterrupta na vizinhança, todo mundo escreve. Tendo a preferir música: dá pra colocar um Iron Maiden ou uma Lady Gaga estalando nos fones e vidrar na tela do notebook madrugada adentro. Os exemplos foram ruins porque citei a maior banda em atividade e a maior artista do século XXI, daí acabaria perdendo o fôlego, batendo cabeça, misturando “Fear of the dark” com “Dance in the dark”. Já sei: uma música ruim de alguma banda brasileira – daquelas que a gente conhece bem, assim não fica atento à letra –, que aí podemos até cantar junto no automático, imitando o timbre do vocalista e tal. É legal porque sempre rola aquele momento sincrônico, mágico, em que você ouve a mesma palavra ou expressão que está escrevendo ou acabou de escrever e pensa eita porra, como a vez que eu escrevi “a noite inteira” enquanto o Dinho Ouro Preto cantava a mesma coisa. Foi du caralho!
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Eu tenho uma baita birra com essa palavra: “procrastinação”. A começar porque me parece coisa de norte-americano e os caras nem urna eletrônica têm. Chatice minha, talvez, mas literatura é também sobre escarafunchar palavras, né? E essa aí é um coringa do mundo corporativo usado para lamentar perda de produtividade – outra palavra de Boston. A gente na literatura já bebe um monte de ideia e palavra da sociologia, da psicanálise, da política, da biologia, nos livros do Jacques Fux tem até derivada de 2º grau, mas beber do meu amigo Eric analista júnior do Itaú já é demais. “Sério, eu procrastino muuuito”, ele me disse outro dia, como se confessasse um fetiche envolvendo doce de leite, uma casa de campo e acrobatas belgas de cinta-liga.
Dito isso, não tenho nada parecido enquanto escritor, até porque já tenho outros montes de trabalhos não-criativos pra ficar enrolando. Sobre as travas da escrita, meu problema é na reescrita e especialmente depois da primeira leitura crítica: quando a pancada vem forte, dou uma travada e tendo a não salvar o conto, corto pra fora do livro. Aconteceu com alguns contos da primeira versão do Unicórnios – o Lucas Verzola, meu sócio e primeiro leitor, chegou a dizer sobre um deles: “Tá tentando imitar a Carol Rodrigues, filho da puta? Tentou errado”. Nada uma como uma leitura crítica sem massagem, que é bom pra aprender a suportar o tranco quando vier uma crítica posterior negativa, essa coisa que faz o escritor contemporâneo jurar que está sendo perseguido.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Do Unicórnios, talvez um conto chamado “A estrutura do ovo” tenha sido o mais trabalhoso. É um dos poucos contos que ganharam a história antes da forma, já que em geral eu não ligo muito pra história e mais pro efeito, pra atmosfera. A história em si é surreal: numa lanchonete faltam ovos e pra consegui-los o personagem precisa interagir com um cavalo branco enjaulado na cozinha. E o surreal para por aí, porque a narrativa é super burocrática. A dificuldade desse conto nasceu da ideia de metonimizar a atmosfera burocrática na própria linguagem. Não faria muito sentido, por exemplo, narrar uma história cheia de trâmites e processos emulando a experiência de linguagem do Marcelino Freire, tá me ouvindo bem? A linguagem dele, por assim dizer, desburocratiza.
Mas faria sentido emular o Murilo Rubião – inclusive, foi um conto dele que serviu de mapa pro meu. E como fazer isso de forma propositiva e não só copiadora? Copiando, concluí. Só que de um jeito diferente: pra esse conto, eu reli a obra completa do Rubião e, em vez de procurar boas frases de efeito, bons aforismos, boas metáforas, como fazemos quando queremos copiar, grifei centenas de palavras, frases e construções das mais burocráticas, estudando suas sintaxes, subordinações, coordenações, essas coisas que não sei de verdade o que são. Construí o primeiro esboço do meu conto copiando pro Excel fragmentos do texto rubiânico – coisas como “aconteceu-me que”, “todavia, enquanto ponderava”, “ela afastou-se demoradamente”, tudo o que há de menos literário. Então tem aí uma metalinguagem feita na miúda: pra escrever um texto sobre burocracia eu precisei criar uma porra duma planilha compilando palavras e expressões e indicando páginas, conto de origem etc. Foi um trabalho panaca, não criativo, o famoso escrever sem escrever sobre o qual o Leonardo Villa-Forte escreveu um livro inteiro.
Não me orgulho de nenhum texto de ficção, se bem que tem um e outro que na honesta acho bem engraçados, e fazer graça talvez valha algum orgulho, porque é raro rir lendo, né? É que também vai do humor: eu gargalho com umas coisas tenebrosas da Veronica Stigger. Mas fiquei pensando: pouco antes de morrer, a Clarice Lispector entrevistou a Lygia Fagundes Telles e perguntou algo como “você concorda que a arte é uma busca?”, e a Lygia deitou na resposta, disse sim, a arte é uma busca, e a marca constante dessa busca é a insatisfação; na hora em que um artista botar a coroa de louros na cabeça e disser “estou satisfeito”, nessa hora mesmo ele morreu como artista, ou já estava morto antes. É, pensando melhor, as coisas que escrevi não têm graça nenhuma.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
É muito muito raro eu escolher temas, é antes o contrário, e é claro que não estou falando num sentido idealizado. Falo mesmo duma perseguição, um mau-olhado estranho e constante, quase ósseo, aquele tipo de coisa que resta mesmo deixar pra algum crítico versado em psicanálise, não sei. Essa é uma brisa que ainda estou construindo. Mas posso dizer que quando escrevo não estou preocupado com temas que não sejam necessariamente filtrados pela literatura. Não é uma escolha: eu enxergo o mundo, a vida, as paixões, as bobagens duma terça-feira morna através da lente literária.
Não uso a literatura (a ficção) como instrumento pra mudar o mundo, não tenho nenhuma pretensão de abraçar a realidade, seus problemas sociais, seus dilemas imediatos; escrevo ficção e não política, filosofia, sociologia, psicologia, história. Gosto de beber de muitas áreas e de seus assuntos, mas não é uma busca ativa, e sim por acreditar que muitas dessas referências podem ter valor literário.
Não mantenho um leitor ideal enquanto escrevo, por um motivo batido: não escrevo em função de expectativas abstratas e alheias. Tampouco escrevo pra ser compreendido, transmitir uma mensagem, tocar as pessoas, tomar cuidado com leitores, ou qualquer uma dessas coisas que fazem até alguns autores consagrados abrirem mão das possibilidades literárias e linguísticas em prol duma certa eficiência de comunicação. Mas talvez eu mude de ideia, nunca se sabe, tem até gente que estuda os tipos de livros que ganham prêmios e editais pra depois decidir o que vão escrever, talvez aí um bom tipo de leitor ideal: o jurado de prêmio.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Hoje tenho uma união literária estável com o Lucas, meu sócio, e trocamos textos até antes mesmo de serem rascunho: frases, parágrafos, sumários são objeto de olhar e leitura mútua a qualquer tempo. O ápice é a leitura crítica, serviço que prestamos de forma autônoma, ou conjunta pela Lavoura, e que fazemos também pros nossos próprios originais. É um processo duro porque o tom que adotamos pra esse tipo de troca é porrada, dizendo “esse parágrafo está uma merda”, “trecho muito preguiçoso, ficou porco”, “este conto é ruim, acho difícil salvar” etc. Acho que começou meio na brincadeira, mas se tornou pra gente uma questão política bem séria, porque o coleguismo do meio literário, no macro e nas relações individuais, não só é repulsivo como também é uma desgraça pra quem está preocupado em escrever melhor. Do Unicórnios, que também foi lido pela Carol Rodrigues, cortei fora um conto que ela felizmente criticou, mesmo com o texto já fechado, e ainda bem. E sem romantismo: receber bem críticas qualificadas não é uma virtude, é só questão de não ser trouxa.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Lembro: tinha trancado a faculdade de direito e no meio do ano fui fazer um trainee na Folha, e aí eu não exatamente decidi, antes percebi que toda minha semana já era dedicada à fase imediatamente anterior à escrita: a leitura. Gostaria de ter ouvido duas coisas quando comecei: 1- aproveite isso que você já faz na vida e replique na literatura: não se leve muito a sério; e 2- em algum momento você vai querer publicar seu primeiro livro, não publique.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Eu não sei se desenvolvi um estilo próprio, até tenho minhas suspeitas, mas acho cabonito falar do meu texto nesse sentido, ou citar opiniões de terceiros envolvidos no meu trabalho como se isso garantisse distanciamento. Fico numa torcida sincera pra ver a opinião de leitores e críticos, em especial a daqueles que já me conhecem e poderão analisar os termos da minha mudança do último livro pro atual.
Influência é um papo foda porque deixa a gente pelado, obrigado a se ler e a se justificar, sem falar que fica difícil escapar dos mesmos nomes da tradição. Dá vontade de falar em Woolf e Mansfield, que influenciaram demais o Unicórnios e que continuam me influenciando, mas vou dar a famosa fugida da pergunta e não citar um nome, em vez disso forjar um time contemporâneo que hoje me atordoa, atormenta e fascina: Mariana Enriquez, Samanta Schweblin, Guadalupe Nettel, Marcílio França Castro, Gustavo Pacheco, Carol Rodrigues, Veronica Stigger. Foda-se, vou citar um nome entre todos: Mariana Enriquez.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Foda-se outra vez, vou repetir nome: As coisas que perdemos no fogo, livro de contos da Mariana Enriquez. O conto “O menino sujo” é a melhor leitura da minha vida e só perde pra “O menino sujo”, da mesma autora. Atualizando a famigerada sentença de FHC: esqueçam o que escrevi nas perguntas passadas, porque a única coisa que importa é ler Mariana Enriquez. Leiam. Leiam sem medo de ser feliz, é claro, que nem por um Jabuti eu ia deixar a última referência dessa entrevista ser a um tucano.