André Balaio é escritor e roteirista de quadrinhos e cinema, autor de Quebranto (2018, Patuá).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durmo pouco e acordo cedo, quase sempre antes das cinco. Verifico as mensagens de e-mail, whatsapp e redes sociais e dou uma olhada nas notícias. Não levo mais do que cinco minutos para descobrir que nada muito relevante aconteceu na noite anterior. Então começo a escrever. Como tenho um trabalho não literário durante o dia, o início da manhã é fundamental. Escrevo normalmente das cinco às seis e meia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor de manhã cedo. Mesmo nos fins de semana, quando poderia dormir até mais tarde, prefiro acordar cedo e escrever. O silêncio quase absoluto e a temperatura ajudam. Também pesa o fato de gostar de ler em voz alta o que escrevo e de manhã cedo minha esposa ainda dorme e assim eu não a atrapalho.
Ao longo do dia tomo notas e as envio para o meu e-mail. À noite escrevo mais um pouco e também leio. Como tenho o hábito de dormir pouco, vou para a cama tarde, entre onze e meia-noite.
Não tenho ritual de preparação para a escrita e até desconfio de quem fala que tem. Acender incensos, ouvir música, fazer meditação ou coisa parecida não me parecem boas ideias para escrever melhor. A escrita tem que ser natural e contínua, sem romantizações nem parangolés. É ligar o computador, evitar a procrastinação e trabalhar o texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Um pouco todos os dias, de manha cedo e também à noite. Minha meta é de pelo menos uma hora por dia. Muitos autores estabelecem metas de quantidade de páginas ou parágrafos. Comigo não funciona. Posso escrever uma página, um parágrafo ou ficar trabalhando apenas uma frase. Acho, porém, importante ter uma meta de tempo de dedicação.
Depois de fechar o computador ainda fico ruminando o texto. Penso nos personagens e na narrativa o tempo todo e não é raro estar preso num engarrafamento e decidir alterar a história em algum aspecto, acrescentar uma cena ou mudar o perfil de um personagem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começo a viagem sabendo aonde quero chegar, mas sem o plano de voo. Tenho apenas um fiapo de história, a espinha dorsal. Quase sempre começo a escrever sem pesquisas prévias e, à medida que desenvolvo a história, elas se tornam necessárias para dar verossimilhança aos personagens e às cenas. Os conflitos se aprofundam, os personagens se adensam, e é na tentativa de entendê-los e mostrar como chegaram àquele ponto (ou como se desenvolveram a partir dali) que a pesquisa torna-se necessária. O que parecia tão bom como ideia inicial às vezes não funciona quando escrevo e novas soluções são necessárias: os personagens mudam, as ações mudam, os cenários mudam. E vem a necessidade de pesquisar. Converso com amigos, procuro na Internet ou em livros específicos, assisto a vídeos no Youtube, recolho fotos de lugares que sirvam de referência, procuro imagens de pessoas com as quais os personagens possam parecer. Já aconteceu de receber dicas com uma advogada a respeito de fraudes de grandes latifundiários para se apossarem de terras de pequenos agricultores. Para outro conto aprendi com um amigo engenheiro agrônomo quais os plantios mais comuns em uma determinada região nordestina. Uma vez pesquisei na Internet sobre bufês de festas infantis com os mais diversos doces e salgados. Também assisti a vídeos no Youtube sobre o funcionamento de ordenhadeiras mecanizadas de fazendas de gado leiteiro. Tudo isso para tornar as histórias verossímeis, para colocar o leitor dentro delas. Considero que a pesquisa surge da necessidade da escrita, e não o contrário.
É importante começar o texto mesmo que não se aproveite nada do que foi escrito a princípio. Há sempre uma enorme diferença entre o que se espera e o que vai para a tela do computador. Então, é preciso escrever com o botãozinho da autocrítica desligado. Juan Rulfo dizia que no começo escreve-se levado pelo vento até sentir que está voando e quando achar que chegou aonde queria é que começa o verdadeiro trabalho que é cortar, cortar muito. Comigo funciona parecido, embora nem sempre eu corte. Às vezes, percebo que um trecho da narrativa ficou curto demais, que carece de mais detalhes, de mais clima, então aprofundo ou estendo a cena para criar um efeito no leitor.
Trabalho o texto em partes: crio uma cena e a desenvolvo ao máximo até perceber que cheguei a um esgotamento. Depois sigo em frente e passo para outras cenas, que podem ocupar parágrafos ou até capítulos, dependendo do fôlego do texto. Quando termino o texto volto ao início. A esta altura boa parte dele já “dormiu” e consigo vê-lo com olhos diferentes de quando o escrevi. Então é hora de retrabalhá-lo, cortá-lo como fazia Rulfo ou estendê-lo para melhor atingir o efeito desejado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tento conter a ansiedade de escrever bem logo de início. Considero esta a principal ameaça para um escritor: a ansiedade de terminar o texto e mostrá-lo aos amigos ou ao editor. A ansiedade de publicar. Por outro lado, muitos escritos com bom potencial não vão à frente porque o resultado inicial não é satisfatório e falta paciência continuar o trabalho. Nestes casos é preciso deixar o texto “dormindo” um tempo para só então voltar a ele. Às vezes é preciso desconstruí-lo, virá-lo ao avesso. Então há que se ter calma e ter em mente que se está diante de um processo de desenvolvimento e tudo que se escreva a princípio ficará abaixo do esperado. Como manter a chama inicial por longo tempo? Como lidar o cansaço e o desinteresse? Buscando prazer no processo de desenvolvimento e não apenas na conclusão do livro. Uma dica é colocar certas dificuldades da narrativa como um jogo e se perguntar algo do tipo: “Como posso melhorar esta cena? O que devo fazer para tornar este personagem mais interessante para o leitor?”
Agora me vem à cabeça a conversa entre Degas e Mallarmé. Dizem que uma vez o pintor Edgar Degas tentou escrever poemas e não saiu nada. Decidiu então pedir conselhos ao amigo e grande poeta Stéphane Mallarmé. “Não me faltam ideias, Mallarmé. Eu as tenho muitas”. Mallarmé respondeu de pronto: “Mas Degas, não é com ideias que se escreve poesia. É com palavras”. É isso. Literatura se resolve escrevendo, colocando palavra depois de palavra, testando, experimentando. Não dá para ser de outra forma. O prazer tem que estar nesta procura de um resultado satisfatório. A autocrítica tem que ser suficiente para não considerar pronto algo que se pode melhorar. Mas não pode ser tanta a ponto de nos imobilizar, de fazer do ato de escrever algo impossível.
Escrita é artesanato e só chegamos à forma final depois de amoldar o barro diversas vezes. Em alguns casos não ficamos felizes ao tirarmos o objeto do forno e é preciso quebrá-lo para começar tudo de novo.
A procrastinação às vezes vem da decepção momentânea em relação ao que esperávamos. Vivemos tempos de excesso de informação disponível a apenas um clique. Debates em redes sociais, links compartilhados por amigos, grupos de whatsapp, tudo é motivo para desviar a atenção. A necessidade de escrever tem que ser maior do que a tentação. É preciso foco. Tem que se colocar um limite, separar um tempo para escrever. Escrever requer displina mesmo, dizer a si mesmo “ok, fiquei até agora lendo sites de notícias e postando no Facebook mas de agora até tal hora vou escrever sem parar” e fazer isto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Infinitas vezes. É uma obsessão. Nunca sinto que os textos estão prontos. Por isso não gosto de relê-los quando publicados, porque sempre acho o que melhorar. Já aconteceu de revisar insistentemente um conto chamado “O lado de lá” mesmo depois deste ter sido premiado nacionalmente. Foi preciso que minha esposa me alertasse para o absurdo. Naymme, aliás, é quem primeiro lê o que escrevo. Ela é uma ótima leitora, com uma bagagem literária e uma percepção estética admiráveis. Mostro também a alguns amigos escritores com quem me reúno pelo menos uma vez por mês para lermos e conversamos sobre literatura. Acho importante ter leitores “beta” que se sintam livres para criticar. São uma ótima vacina contra a autoindulgência.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Antes ainda anotava alguma coisa em papel, mas hoje em dia nem isso. Começo escrevendo no notebook e se tiver alguma ideia no meio da rua escrevo no aplicativo de notas do celular e mando para meu e-mail. Dia desses estava preso num engarrafamento e pensei em criar um novo parágrafo de abertura para um conto. Queria trabalhar o ritmo das frases, fazê-las com métrica definida como num poema. Então gravei um áudio no celular apenas com o ritmo, como quem canta uma música sem letra. Em casa usei o que havia gravado como referência para o texto. Funcionou.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
De muitos lugares: histórias que me contam, notícias de jornal, posts de Facebook (dou prints em vários), lembranças de infância, livros, peças, filmes, fotos, obras de arte. Se alguém me diz que está em bloqueio criativo, sugiro procurar no Google reproduções de pinturas para descrevê-las e contar o que aconteceu antes e depois do momento retratado no quadro. Quadros de Goya, Edvard Munch ou Edward Hopper contêm inúmeras possibilidades de ideias para a narrativa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar?
Muitas coisas mudaram. Antes eu não tinha uma rotina, não escrevia todo dia. Precisei criar essa rotina. Também sou menos ansioso: às vezes terminava o texto de forma abrupta, sem desenvolvê-lo com cuidado; hoje procuro o prazer de trabalhar com calma, reescrevo mais, detalho mais, estendo o tempo da ação quando percebo que isso melhora a narrativa. Valorizo mais a forma, que é como deve ser. Os detalhes, aliás, se tornaram um ponto importante, assim como a preocupação em em evitar lugares-comuns, a buscar de palavras que não sejam óbvias.
Se pudesse voltar, teria lido mais e melhor, teria escrito mais e estudado mais também. O estudo é importante. Participar de cursos de escrita criativa e de oficinas literárias abriu a minha cabeça, me tornou melhor leitor e escritor. A leitura antecede a escrita. Só se escreve bem quando se lê bem. Não falo apenas em ler bons livros, mas lê-los com atenção aos detalhes, com olhar crítico. Também diria a mim mesmo para ter paciência com a escrita e não parar. Comecei a escrever muito novo e tive um hiato na juventude, fiquei anos sem escrever uma linha sequer. Provavelmente me faltaram paciência e maturidade. A urgência juvenil por bons resultados com pouco esforço me fizeram achar que escrever não era para mim, mesmo que eu gostasse tanto. Hoje é o que eu tenho de mais precioso. É o que move a minha vida.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho três projetos ainda por começar: um romance, um livro de contos e uma história em quadrinhos. O romance será sobre uma cantora pop, do estrelato à decadência, em que a história é contada pelos fãs. O livro de contos terá como cenário uma mesma cidade imaginária com geografia própria e lugares inventados. Todos os personagens dos contos serão criados a partir da geografia da cidade. Ou seja, antes de inventar os personagens e suas histórias quero criar o espaço físico para descobrir depois quem os habita e como se dá a sua interação com os outros personagens e com o lugar. Por fim, na área de quadrinhos pretendo criar uma graphic novel de ficção científica em um futuro distópico baseada na música de uma banda de Rock pernambucana dos anos 70.
Com relação ao livro que gostaria de ler e ainda não existe, talvez ele já exista, esquecido em alguma biblioteca velha ou em algum sebo, e seja preciso encontrá-lo. Se não o achar precisarei escrevê-lo. É isso que nós fazemos: escrevemos os livros que gostaríamos de ler e ainda não existem.