Anderson Vichinkeski Teixeira é doutor em direito pela Universidade de Florença (Itália) e professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começam de acordo com a necessidade de cada dia. Sempre com uma refeição rápida e leve. Inevitavelmente, acordo entre 6 e 8 horas da manhã. Família, filho pequeno, compromissos cambiantes e viagens rápidas tornam “rotina” para mim algo complicado de definir. Desde que me recordo, as manhãs são sempre momentos burocráticos e enfadonhos do dia. Este é um dos principais motivos pelos quais gosto tanto de lecionar na graduação pela manhã: contrariar minha natureza e transformar um período do dia que, talvez até mesmo fisiologicamente, me é desconfortável, em um momento estimulante e de interação intelectual com os alunos que estão no início do Direito.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Definitivamente, depois que consigo um bom nível de silêncio e concentração. Madrugadas são sempre excelentes. Iniciar por volta das 23hs e concluir à noite por volta das 3-5hs da manhã pode ser altamente produtivo para mim. Há sim um ritual para a escrita. O roteiro do que será feito precisa estar preparado. Sentar com apenas um inquietante cursor piscando na tela do editor de textos pode ser dramático. É realmente recomendável já ter um projeto para a pesquisa ou apenas um roteiro do que será feito. Um roteiro detalhado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Impossível definir isso com um regra geral. Pelo menos, no meu caso. Muitas vezes preciso escrever sobre algo amplamente substanciado por informações, dados, estudos, jurisprudências, legislações etc. já previamente selecionados. Nestes casos, é fácil seguir o roteiro pensado e colocar tudo no papel. 20-30 páginas podem surgir em menos de 10 horas de escrita. Todavia, quando o tema é árido, as fontes são escassas e/ou o problema teórico de fundo é de elevado grau de abstração, soa-me sempre prudente dividir por argumentos os textos. Um dia para cada parte. Sem pretensões de quebrar recordes em termos de velocidade na produção textual.
Há uma outra questão importante: para escrever, é preciso ler. Não existe texto acadêmico sólido em argumentação construído sem base de leitura. O tempo para leituras muitas vezes ocupa semanas sem nenhum tipo de produção textual. Por isso, separar também os momentos para leitura é fundamental.
Uma dificuldade grande que me ocorre está nas coautorias. Muitas e muitas vezes surgem oportunidades de escrever com colegas, alunos ou com pesquisadores que atuaram comigo em dado projeto. A padronização mesmo do estilo redacional é um ponto fundamental para mim. Nada mais lamentável do que ler um texto escrito com rupturas temáticas ou estilos redacionais distintos. As coautorias ensejam preocupações muito distintas das que temos em textos de autoria solo. Ademais, a coautoria demonstra que o pesquisador possui capacidade de se envolver e produzir com alguém além de si mesmo. Em casos de alunos, é ainda mais significativo, pois o próprio processo de escrita é um momento importante para desenvolver junto ao aluno/coautor metodologias de pesquisa e técnicas de produção textual que serão úteis para o seu futuro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começar não me costuma ser o problema. O ponto fulcral é mesmo definir quando já há material suficiente na pesquisa para passar à fase da escrita. Um texto sem fundamento adequado corre o risco de virar mera exortação de uma ideia. Argumento e exortação estão distantes por um abismo. O pesquisador no meio jurídico, em especial quando trata de temas relacionados ao Direito Constitucional e à Política, deve estar mais do que atento aos perigos de incorrer em exortações de ideias desprovidas de fundamento científico.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Pessoalmente, não sinto nenhuma trava na escrita. Desde 8 ou 9 anos de idade tenho memórias de já escrever pequenos contos com facilidade. Recomendo sempre que quem tem esse sentimento de trava ou bloqueio tente se focar na estruturação de um roteiro: pensar parte por parte, parágrafo por parágrafo, o quê deve ser escrito, quais dados referidos, quais autores citados, em quais momentos.
Quanto às expectativas, qualquer pessoa que já escreveu um texto gerará algum nível de expectativa para o segundo texto. As diversas bases de dados virtuais tornam imprevisíveis os rumos que um texto pode ganhar. Pensar na expectativa que o potencial leitor pode ter em relação a um novo texto do autor é tarefa tão inútil quanto improdutiva. O autor/pesquisador deve ter como foco os problemas de pesquisa que pretende enfrentar, os modos que dispõe para expor suas hipóteses, quais hipóteses em si são viáveis etc. Pergunta possível de um leitor igualmente possível a este texto de minha entrevista: “Mas como faço quando tenho prazos?” Nossa vida tem prazo – apenas não sabemos quando vencerá. Nossa comida tem prazo de validade. Tudo tem prazo. Aceitar o prazo como um fato da vida é como aceitar que em momento do dia haverá Sol e em outro Lua. Tão somente isso. Dividir nosso tempo em prazos, em turnos de 4-6 hs, tornará nossa vida muito mais fácil. “Mas o que faço com minha(meu) esposa(o) que precisa da minha atenção? Com meus pais? Com meu cachorro? Com a rotina do meu filho?” Basta ter uma boa gestão do tempo. Não se preocupar com os minutos, mas com os momentos em si e como eles nos ocupam em horas e em turnos. Determinar em quais turnos sou mais produtivo e em quais turnos posso estar focado em produzir. Casar turno mais adequado fisiologicamente com turno disponível em relação a demais compromissos é a meta ideal para a mais eficiente e criativa produção textual.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sempre três vezes. Todos. No mínimo. Dependendo do caso, da natureza do texto e de quem publicará, existem profissionais que fazem mais revisões, o que reduz minha preocupação nesse sentido. Leio então uma vez depois de revisado.
Costumo apresentar o texto a colegas somente depois de realmente prontos. No entanto, não é com frequência que encaminho a colegas textos meus antes de estarem publicados.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Natural, em absoluto. Produzo sempre no notebook. Rascunhos à mão me são úteis, de modo singular, para a elaboração do roteiro, para a definição dos tópicos ou mesmo dos itens/capítulos de um novo texto. Mais do que isso não me são úteis. A produção textual faço em notebook sempre – nas condições ergonômicas e ambientais que me aparentarem favoráveis para o momento.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como juspublicista, enraizado no Direito Constitucional Comparado, mas com origens na Filosofia do Direito Internacional, há o mundo real para me ofertar, gratuita e – devo reconhecer… – forçosamente, cada vez mais problemas e, na maior parte dos casos, ideias de encaminhamentos possíveis para esses problemas. Não há dia em que eu não lamento não ter tempo de me dedicar a dado assunto… Como referi, o uso criativo da produção textual depende muito de leitura. Não sei como seria possível escrever sem antes ter lido sobre o assunto. Lido muito antes. Portanto, dois hábitos me mantêm criativo: (1) ler sobre os assuntos que pesquiso e (2) sentir o mundo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
A insegurança sobre qual a melhor forma de escrever, de estruturar um texto e até de quais referenciais teóricos para a abordagem de certo problema não sinto mais. Sinto que aquela compulsão – típica da juventude – de ter que escrever tudo logo, em uma noite inteira acordado, não me acomete mais. Consigo recuperar a mesma linha de raciocínio porque deixo pegadas para a encontrar no dia seguinte! A pouca experiência em produção textual no meio acadêmico faz o autor/pesquisador perder tempo demais com angústias sobre como escrever, enquanto que, de fato, o importante é começar por um roteiro-base para o futuro texto. Depois, basta sentar e escrever! Não existe mistério nisso. A escrita deve seguir um percurso natural previamente estabelecido em um projeto para a pesquisa.
A resposta para a pergunta sobre o que eu diria a mim mesmo quando da elaboração da tese doutoral é digna de uma sessão de psicanálise. Fui orientado por Danilo Zolo, um dos mais expressivos autores do pensamento filosófico justinternacionalista no século XX; quando ainda lecionava, era uma personalidade provocativa, inquientante e desafiadora para seus orientandos. A ele devo muito do que sou do ponto de vista acadêmico e inclusive humano. A relação de orientação pressupõe poder dizer o que é necessário. Hoje tento seguir esse exemplo e sempre dizer aos meus orientandos, sobretudo doutorandos, o que realmente entendo necessário. Quanto à tese que escrevi, meu problema de pesquisa foi posto exclusivamente por mim e de modo cruel (para mim…. que deveria responder ao problema posto…): é possível um novo fundamento jusfilosófico para as relações internacionais? Hoje eu diria ser insano pesquisar sobre isso em uma tese doutoral. O Professor Zolo pensava o mesmo. A relação de orientação foi desafiadora a ambos. Fui fazer um estágio doutoral com o Professor Yves-Charles Zarka, em Paris, após concluir o segundo ano do doutorado. Zarka e Zolo possuem um dissenso profundo sobre Carl Schmitt, um dos autores que influenciaram na elaboração de minha tese. Todo o percurso foi conturbado porque o problema de pesquisa era perturbador para uma tese de doutorado. Ao final, a proposta apresentada por mim foi bem aceita de um modo geral. Eu apenas não recomendaria a alguém se propor um problema de pesquisa em demasiado desafiador e contrastante com o estado da arte acerca daquele tema. Confesso que não mudaria minha escolha, mas mudaria o modo como psicologicamente enfrentei a questão toda. Seria menos ansioso em encontrar as respostas naquele momento. O grande problema é que somente com o tempo sabemos que (ou se) encontraremos as respostas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Seguindo nessa linha de saber que (ou se) encontraremos as respostas para os problemas que colocamos, ainda não pude me dedicar para uma das questões que me soam mais cruciais hoje: é possível encontrar um princípio ordenador da política, enquanto teoria política abrangente (no sentido que em inglês possui a expressão comprehensive theory), que não esteja partindo ou da ideia de liberdade ou da ideia de igualdade? Embora eu não seja filósofo político, esta questão me é inquietante porque possui direta relação com o Direito e, sobretudo, com o fenômeno constitucional. As insuficiências das teorias e das respostas práticas ofertadas pelas teorias abrangentes que partem de um princípio ordenador ou liberal ou igualitário são cada vez mais flagrantes e precisam de respostas que parecem ainda não encontradas, nem sequer localizáveis em lugar algum. O princípio de solidariedade, na medida em que adapta a ideia de fraternidade ao século XXI, é tido por muitos como uma alternativa, mas não passa em rápidos e suaves testes de consistência teórica, mormente em termos de universalidade dos postulados. Sem dúvida alguma, eu gostaria muito de ler ou de escrever algo sobre um novo princípio ordenador para a ordem política – mas a realidade da vida e do próprio evoluir do saber me diz que este meu desejo é tão inalcançável quanto uma kantiana paz perpétua…