Anderson Pires da Silva é escritor, poeta e professor de literatura da UFJF.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim. Depois de abrir os olhos e me levantar da cama para o café da manhã, eu leio. É um hábito meu desde os dez anos. Até o final da minha adolescência, minhas leituras matinais se alternavam entre histórias em quadrinhos e a revista Bizz. Hoje, além de quadrinhos e revistas de música, leio também biografias de bandas, romances e poesia. Todas as segundas-feiras, por exemplo, quando não estou em sala de aula, faço a feira. Em outros dias, após o café da manhã, vou para Faculdade quando tenho turmas no turno da manhã (sempre tenho uma); em outros cuido das crianças porque a mãe está no trabalho e preparo minhas aulas entre 11h-12h30.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu gosto de escrever pela manhã, mas devido à correria diária acabo escrevendo à noite mesmo. Acho que a grande maioria escreve à noite, talvez sejamos seres noturnos. Não tenho um ritual específico. Conheço alguns autores que tem toda uma preparação para escrever, acendem incensos, rezam o terço, eu sou muito old school: se for escrever pela manhã, bebo duas garrafas de café e fumo um maço de cigarros; se for escrever à noite, bebo umas long necks e fumo um maço de cigarros.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo desde os meus quinze anos. Durante um período, entre dezenove e vinte e um anos, escrevia todo dia. Eu morava em Angra dos Reis, meu ritual diário era nadar na praia todas as manhãs (menos nos dias de chuva), escrevia durante toda a tarde e à noite saía para a rua. Eu havia terminado o ensino médio – na época “segundo grau do científico”. Não havia ingressado na Universidade, muito menos trabalhava, mas lia muito o tempo inteiro, publicava o que escrevia em fanzines. Essa necessidade me obrigava a escrever todos os dias. Hoje as necessidades são as mesmas, porém mais ambiciosas e, às vezes, menos divertidas. A questão da “meta diária” depende da obrigação, se estou trabalhando em um projeto de livro, com um prazo final de realização ou se estou correndo atrás de um patrocínio. Caso contrário, se não estiver inspirado por nenhuma ideia literária, me jogo no sofá e fico trocando de canais, ou…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tudo para mim começa com uma ideia. Eu gosto de maturar uma ideia ao máximo na minha imaginação. Geralmente as ideias me vêm quando estou sozinho dirigindo. Fico horas ou dias imaginando o texto, elaborando a intriga e o desenvolvimento da ação se for uma narrativa. No caso de Malditos, comecei a imaginar a narrativa a partir do capítulo final, foi um romance escrito do fim ao início. Quando se trata de narrativa, costumo pensar a espinha dorsal do enredo, o início e o final principalmente. Posso ficar por anos com uma história completa na minha memória. Nesses casos, faço algumas anotações, porém, quando começo a escrever, as notas tem a função de lembrar que não estava muito confiante em minha memória quando as fiz. Eu acabei de finalizar uma novela policial e a ideia surgiu depois de eu ler o conto A dama no lagode Chandler. Fiquei muito inspirado por esse conto e imediatamente tive uma ideia para um conto. Comecei a escrevê-lo no dia seguinte, e ao longo de dias escrevendo, já tinha 40 páginas prontas e nem havia sequer chegado à metade do enredo que imaginava. Escrevi essas quarenta páginas durante o mês de setembro de 2017, porém, devido às outras demandas interrompi o processo de composição. Em outubro de 2018 retomei a escrita do exato do ponto que havia parado – durante esse intervalo fui matutando o desenvolvimento da trama e a sua conclusão -, escrevendo todas as noites, às vezes até às cinco da manhã. Em fevereiro de 2019, terminei a primeira versão, o que inicialmente foi pensado para ser um conto terminou como uma novela, até agora com 195 páginas. E, pela primeira vez, estou fazendo um trabalho de pesquisa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Cara, procrastinação é o meu nome do meio e isso só complica a minha vida e a vida das pessoas que convivem comigo ao extremo.
Então, quando estou diante de um bloqueio criativo, aquele inferno da tela em branco, você digita uma palavra (“duro”) ou uma frase (“o palhaço amordaçado sorri”), e não vem mais nada, é uma angústia enorme. A melhor coisa a fazer é desligar o computador, mas a gente não aceita essa renúncia, e fica lá sofrendo. Eu tenho um poema – Fichamento para um trabalho sobre Jean-Paul Sartre– que foi composto a partir de um bloqueio. Queria fazer um poema problematizando a literatura engajada, e diante do branco a minha solução foi pinçar umas frases soltas do Sartre e ir dormir, sabendo que havia feito o poema e, ao mesmo, fracassado criativamente.
Quanto ao medo de não corresponder àsexpectativas, sou tranquilo em relação a isso, pois as pessoas nunca esperaram grandes coisas de mim, e isso é uma liberdade imensa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso os meus textos até o editor dizer “chega!”. O Tonho França, da Penalux, chegou ao limite de sua paciência comigo, percebi isso quando respondeu com um “ok” a uma mensagem minha no WhatsApp, a gente sabe que quando alguém responde com um “ok” é porque a situação não está “ok”. O lance era que toda vez que me enviavam uma prova do miolo do livro para a revisão final, eu mudava alguma coisa, uma palavra, uma frase ou cortava um parágrafo inteiro. E foram, sei lá, umas nove provas, até que o Tonho disse: “Anderson, por favor, para!”. Ou seja, o meu perfeccionismo estava atrasando a ida do livro para a gráfica e complicando o cronograma da editora.
Eu não costumo mostrar meu trabalho para outras pessoas, embora já tenha feito isso, quando escrevia os poemas que saíram em Trovadores elétricos, e foi perda de tempo. Eu buscava uma leitura crítica prévia, para me sentir seguro em relação ao que estava compondo, mas o resultado gerou mais insegurança. Por isso, quando alguém me procura pedindo para eu fazer uma leitura de “um livro que irá publicar”, pergunto por que está fazendo isso? É claro que há toda uma tradição na literatura de troca de cartas entre escritores, Mário de Andrade lendo os poemas originais de Drummond, Mário puto com Drummond que não aceitava suas sugestões, porque embora Drummond fosse um poeta iniciante, não estava atrás de estímulo. Queria outra coisa que o Mário sabia bem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A primeira coisa que escrevi conscientemente como “texto literário” foi um poema, eu tinha quinze anos, estava na sala vendo o Jornal Nacional, que exibia a reportagem sobre o protesto dos estudantes na Praça da Paz Celestial, China em 1989. A imagem do estudante sozinho encarando um tanque de guerra me impactou de tal forma, corri para o meu quarto, coloquei uma folha papel ofício na minha máquina de escrever Remington 25 (ainda a tenho, vou te enviar uma foto) e escrevi um poema de protesto! Por que meu texto de iniciação foi escrito àmáquina? Porque era assim que escritores escreviam. Manuel Bandeira chamava sua máquina de escrever de “manuelita”; o valor de culto hoje do texto original datilografado de On the road de Jack Keroauc. No meu caso, dois anos depois tinha cadernos e mais cadernos de poemas escritos à mão.
Mas o melhor exemplo da minha relação com a tecnologia é este: estava em uma reunião monótona de trabalho, tinha uma agenda e uma caneta Bic quatro cores, que há uma hora não anotava nada de importante. Aí, uma colega disse algo que me chamou atenção. Eu apertei o botão vermelho da caneta, rabisquei em uma página da agenda o verso “The world is a vampire” – é uma frase de uma música do Smashing pumpkins, e nem curto essa banda. Em seguida apertei o botão preto da caneta e rabisquei “my house is my lip’s wife” (in bad brazilian english). O poema havia começado, terminei em poucos minutos. Pedi licença aos colegas para ir ao banheiro. Lá dentro, li várias vezes o que havia escrito. Surgiu a ideia de filmar com o celular o movimento de leitura, filmei. Ao voltar à sala de reunião, os colegas ainda discutiam o mesmo assunto, revi a filmagem no celular, achei legal e postei no You tube. Não havia nenhuma produção, pura estética do real. Este é o link.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Caramba! Esta é uma pergunta impossível, só posso arranhar a superfície de uma inusitada resposta. Acho que, por um lado, minhas ideias vêm de uma vontade de fazer literatura, desde o início como uma condição de existência. Quando estou feliz, inseguro, eufórico, melancólico, entediado, eu escrevo. Ou a ideia vem de um autor que me inspira, ou uma música. Enfim, algo por aí.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
É engraçado responder a essa pergunta, pois poucos dias atrás me encontrei com um amigo de adolescência que há muito tempo não via. E ele me disse: “você seria um escritor bem melhor se não tivesse entrado para a Faculdade de Letras”. Antes, nos meus textos de adolescência, quando convivíamos juntos, havia muita artificialidade nas coisas que escrevia, copiava mesmo o estilo romântico-beat-maldito, mas a minha rebeldia era legítima. E o que mudou? Tudo! Eu ainda sou um rebelde, mas não sou mais um adolescente. E toda rebeldia hoje é punida. A comunidade de escritores age conforme as regras do seu tempo, progressista em política e moralista em relação aos modos de viver (principalmente dos outros, porque o esporte predileto de escritores é falar mal de outros escritores). Por isso, até por uma questão de circulação da escrita, muitos autores se esforçam para projetar uma imagem exemplar, saudável, sexualmente responsável. Eu não sou assim. Isso está refletido na minha escrita e na recepção dos meus textos na comunidade literária.
E o que diria a mim mesmo se pudesse voltar seria: “se liga, garoto, você tem uma má reputação a zelar”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Já tentei várias antes, e ainda não realizei, o projeto que gostaria de fazer é escrever uma H.Q., tenho inclusive algumas ideias, só falta alguém para desenhar.
O livro que gostaria de ler e ainda não existe? Não sei, vou procurar. Por onde começo? Em um manuscrito guardado dentro de uma garrafa, enterrado em uma ilha deserta? Me empresta o mapa.