Anderson Lucarezi é poeta e tradutor, autor de “Réquiem” (2012) e “Constelário” (2016).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Por conta da minha atividade profissional como professor, sou acordado pelo despertador, o que não costuma ser muito agradável. Com o passar das horas, no entanto, vou tratando de melhorar meu ânimo. O silêncio da manhã, por exemplo, já melhora um pouco meu humor. Conforme o dia se desenrola, vou atendendo às demandas da minha profissão, mas a escrita poética se faz presente o tempo todo, em maior ou em menor medida, na minha cabeça.
Minha rotina matinal, portanto, é levantar, me aprontar para o trabalho, começar minhas atividades e, sempre que possível, elaborar mentalmente e, às vezes, por meio de breves notas, meus projetos textuais, que incluem poemas, traduções e textos críticos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Consigo me dedicar com mais qualidade à escritura poética nas horas mais silenciosas. Viver em São Paulo passa por ter de lidar com muito ruído, o que me atrapalha durante o processo de escrita. Apesar de eu morar na parte mais tranquila da minha rua, o barulho típico do centro da cidade sempre acaba entrando pela janela. Às vezes, em pleno século XXI, parece que estou numa vila medieval onde se ouve o bater do martelo do ferreiro ou o pregoar da carroça do morango durante boa parte do dia. Essa paisagem sonora acaba sendo substância para a escrita, mas conviver com ela cotidianamente é difícil.
Assim sendo, de maneira geral, dedico-me à escrita de manhã cedo ou à noite, depois que o burgo baixa o tom. Por conta das demandas profissionais, não costumo ter, no intervalo entre esses períodos, muito tempo para escrever no papel ou na tela, mas a elaboração mental de projetos e de textos está sempre acontecendo, mesmo nesses momentos; às vezes ela se explicita como linha cruzada, atravessando uma aula ou uma reunião.
Com relação a rituais de preparação, não os pratico, ao menos não no sentido mágico. Não acendo vela ou incenso, não medito, não tomo nenhuma bebida estimulante. Simplesmente abro meu computador e trabalho.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A escrita, para mim, é algo cotidiano. Trabalho, no decorrer da semana, com diferentes tipos de texto, incluindo o poético. De acordo com o papel social que assumo, a natureza dos textos varia. Às vezes escrevo como professor; às vezes, como criador de poemas. Em outras ocasiões, como tradutor ou crítico. Essa variedade de atividades escriturais acaba fazendo com que eu escreva praticamente todos os dias.
Creio que para algumas dessas práticas de escrita seja possível pensar em meta. No caso específico da escritura poética, no entanto, ao menos para mim, acho difícil. Não funciona, no meu caso, sentar em frente ao computador e dizer para mim mesmo que tenho de escrever determinado número de palavras, versos, linhas ou páginas. Acho que a escrita de poesia se dá por outras vias, muito mais indiretas, fragmentárias. Às vezes a pessoa pode passar o dia ensaiando escrever e, no fim, só registrar um apontamento de uma linha. Talvez aquela breve anotação seja preciosa para o trabalho que ela estiver elaborando. Quanto da suposta meta ela bateu com uma linha?
Acho mais interessante pensar em meta de leitura, que é, para mim, um grau de escrita. Ao ler, a pessoa que lida com a escritura acaba também escrevendo, num sentido amplo de elaboração verbal, que se dá também na mente e não só no papel ou na tela. Essa leitura-escrita, que inclui relacionar o que se lê com ideias e pré-projetos, seria uma espécie de planejamento de escrita, que já é, portanto, parte do processo escritural.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Às vezes faço anotações em cadernetas, mas na maioria das vezes escrevo diretamente no computador. Salvo arquivos cujos nomes são os títulos dos poemas. A cada mudança que faço, acrescento, antes de fechar o arquivo, uma numeração entre colchetes. Por exemplo, [1], [2], [3]. Cada poema fica salvo em uma pasta exclusiva onde essas versões vão sendo colocadas. Quando chego na suposta versão final, não apago as outras. Acho interessante reler o processo depois, analisar como cheguei a tais resultados.
Em alguns casos há pesquisa. No momento, por exemplo, estou elaborando um projeto de livro que dialoga com cinema e fotografia. Tenho lido sobre o assunto, feito anotações, mas isso já é escrita. Conforme vou lendo e anotando, os poemas vão surgindo, aos pedaços. A leitura é atravessada pela escrita e vice-versa. Não ocorre, para mim, uma criação de poemas após a reunião de apontamentos. As coisas são simultâneas, pois o processo é contínuo. De acordo com essa lógica, começar não é difícil, pois para quem pratica escritura com paixão, tudo que acontece na vida é experienciado por meio de olhar que se pergunta como transformar aquilo em texto, e essa pergunta já é um começo, já é, em algum grau, escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É comum haver, em alguma etapa do processo escritural, algum bloqueio, alguma incerteza, algum descrédito.
Eu procuro me manter em estado de criação, no qual, conforme você vai produzindo, mais ideias e mais textos surgem. Para chegar a tal estado, tenho que pensar em arte e na relação entre arte e vida praticamente o tempo todo, e isso é o que tento fazer sempre. Cultivar esse estado requer exposição à vida de forma ampla, incluindo uma atenta observação das coisas que acontecem dentro de casa, na rua, na cidade, no país e no mundo. Outro elemento que preciso para me manter em estado de criação é a leitura, e não só de poesia ou literatura, pois o mergulho em outros tipos de texto, de arte e de referências ajuda a abrir a mente.
Acho que a questão das expectativas sempre atravessa o caminho de um escritor, ao menos em algum momento. Procuro me livrar disso sempre que percebo algum sinal, já que atender a expectativas pode fazer de um trabalho escritural algo previsível.
Com relação a ansiedade referente a projetos longos, posso dizer que não tenho esse problema. Gosto de despender bastante tempo nos projetos, portanto não sofro.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes. Conforme disse anteriormente, vou salvando versões. Há textos que passam por mais de dez versões antes de chegarem àquela que considero “final”. Na verdade, nunca sabemos qual será a versão final. Às vezes vejo autores com mais tempo de estrada lançando livros de poesia reunida e “revista”. Acho digno e até, de certa forma, instigante.
Acredito que uma parte do processo de chegar a uma versão mais elaborada do texto é mostrar o escrito a alguns leitores escolhidos. Mostro meus poemas não publicados a poucas pessoas. Em alguns casos, a pessoas que não são do meio poético-literário, o que pode gerar uma opinião interessante, não viciada.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Na quase totalidade das vezes, escrevo no computador. Acho que a escolha do suporte pode influenciar o processo de escrita. O ritmo corpóreo de criação manuscrita não é exatamente o mesmo da criação digitada. Isso pode ser uma matéria interessante para a teoria literária. Sei que os estudos de crítica genética se debruçam sobre a origem manuscrita dos textos, mas a gênese digitada no computador ou na tela provavelmente é um tópico recente que ainda pode ser esmiuçado.
Há, ainda, outro aspecto tecnológico que acho importante abordar. Lidar com as redes sociais e com a divulgação do trabalho é algo necessário nos dias atuais, mas acredito que é preciso ter em mente que tais plataformas são empresas e que somos, todos, produtos à venda para anunciantes. Lembrar disso é fundamental para evitar o pastiche do marketing pessoal, que é, infelizmente, algo que vejo com frequência. Como todos sabem, conforme mais nos expomos, mais dados o sistema adquire e mais mapeados nós somos. Expor toda essa estrutura, desnudá-la, desmontá-la por meio da escrita é algo que me interessa muito ultimamente. Acho que a ironia e o humor podem ser armas eficazes para, em vez de óleo, colocar um pouco de pedra nessas engrenagens.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm de todos os lados. Conforme vivo a vida, a matéria poética vai surgindo. Um episódio que costumo citar é o da criação do poema “Grau Zero”, do meu primeiro livro, “Réquiem”. Na época, vivia ao lado de uma praça bastante arborizada e frequentada por pássaros. Certo dia, acordei com o canto do bem-te-vi. Ainda meio tomado pelo sono, notei algo um tanto quanto óbvio: o pássaro não dizia aquelas palavras. Não havia texto no canto do pássaro. A partir dessa apreensão, escrevi um poema que decompõe o canto do bem-te-vi, mostrando como a linguagem é uma convenção.
As ideias para poemas surgem assim: às vezes por acaso, às vezes por estudo e pesquisa. Quanto mais me exponho à vida, quanto mais estudo e pesquiso, mais escrevo poesia, mais tempo permaneço no estado de criação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Com o passar do tempo, minha vontade de escrever foi aumentando. Quando comecei, achava balela essa conversa de escritor que não consegue viver sem escrever. Hoje me sinto exatamente assim. Talvez isso passe algum dia, mas isso é o que sinto agora.
Às vezes penso que se eu pudesse voltar no tempo e falar comigo, talvez me dissesse para eu não publicar uns três ou quatro poemas do meu primeiro livro. Por outro lado, em outros momentos concluo que foram um registro de uma época, do meu conceito de poesia naquele período. Quando leio o livro, ainda gosto do resultado geral.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Penso, às vezes, em encarar alguma experiência narrativa, mas que não seja uma prosa “patinação no gelo”, que não seja apenas “contar uma história”. Gostaria de fazer algo em que o ritmo fosse o protagonista. Cheguei, em alguns momentos, a escrever contos, mas não quis publicá-los, pois eram mais uma forma de lidar com os meandros da prosa, com seus desafios e possibilidades. Gostei desse corpo a corpo com a narrativa, principalmente com a liberdade de ser “apenas” uma experiência.
Além disso, quero me dedicar mais à tradução. Estou preparando um livro com traduções para poemas do poeta norte-americano Hart Crane, autor que estudei no mestrado, mas, além disso, gostaria de traduzir outros autores de língua inglesa.