Anchieta Mendes é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sempre com o pensamento em ideias novas, desde cedo. Muitas vezes essas ideias vêm de sonhos ou de algo lido na noite anterior. Entre cinco e meia a oito horas faço anotações no note, em cadernos, pedaços de papéis, e por fim rabisco alguma coisa. Tenho vários desses rabiscos, e consigo acumulá-los nesse emaranhado de acessórios. Parece absurdo, mas consigo desassociá-los para alguns sepultar, e outros, a todo custo, ressuscitá-los. Por tais caminhos consigo ir, embora busco atalhos nos mestres, aqueles clássicos, como os contemporâneos. Depois das oito horas, o sol já muito alto e o mundo, lá fora com seus guizos, me chama para a realidade nua. Levanto-me da cadeira sem forças, como quem não consegue e viajo para outras paragens em que me reservam a luta pela sobrevivência.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Parte manhã, parte noite. Aquele intervalo de cinco e meia às oito horas é dos rabiscos, há um essencial ao qual me apego para dar forma. A esse tempo me concedo com as vontades possíveis para organizar as ideias, não importa um conto ou um romance. No período da manhã, com a cabeça teoricamente fria, inicio a jornada solitária, e à noite complemento ou melhoro o feito no período anterior.
Tenho um jeito peculiar de iniciar os trabalhos, em todos os princípios, a ficar parado diante da página em branco por uns bons dez minutos. O olhar fixo na tela, enquanto os braços parados, sem tocar em nada, esperam. Preciso que a mesa esteja limpa, sem materiais ao lado, e se possível com os meus livros nas minhas costas, como quem recebe impulsos de tantos ali já lidos ou por vir a ser.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Prefiro escrever em períodos concentrados, quando percebo que a história pede e implora. Há momentos terríveis em que luto contra o tempo, mesmo sabendo que não há cobranças. O enredo, quando desce ou sobe a ladeira, impulsiona a periodicidade. Tento me afugentar, o gosto e a vontade, quando sobressaem, me puxam de volta.
Não coloco metas, mas o subconsciente pede, e traço um antes e depois, relendo, relendo. Nos dias de hoje, infelizmente, pede-se para não se prolongar tanto. Fora isso, escrevo pelo menos uma lauda por dia, embora esse “dia” não seja tão rotineiro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Antecipado na primeira pergunta, complemento o meu processo lendo os meus escritores favoritos. Não que os imite, mas juro que uma palavra aqui e ali peço emprestado de forma sutil para abrilhantar o meu texto. Quando a ideia vem, a partir de jornais, de histórias reais, de conversas com os parentes e amigos já tanto vividos, muitas vezes a história já está formada. Anotações e anotações, cadernos e outros meios, encho-me da ideia e, muitas vezes deixo de lado, a olhar, ensimesmado, como se algo esteja errado ou a faltar. Acredito que não é fácil mesmo começar. Falam, nos cursos de escrita criativa, de que o começo tudo importa, chama a atenção, impacta, abre as portas, deixa o leitor abismado e crente de que vai revirar as outras páginas.
Dependendo do tema, da alma da história, a pesquisa tem que existir, e sempre a levo em paralelo. Costumo buscar nas fontes o caminho, mas nunca deixo me levar por ele na sua totalidade. Os outros passos vêm de muita imaginação, e doutras vezes, esqueço a pesquisa, por exatos detalhes em que os personagens me tomam da mão e a escrita flui.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não é fácil. Se todo o enredo está na mente, começo e fim, o meio endoidece. Por mais que planos, rabiscos e pesquisas, acontece o esperado: o branco, o diálogo que não vem, a dobra da esquina que não tem como fazê-lo. Este é o momento da trégua, do copo d’água, do filme que espera no aplicativo e das conversas com os amigos. A fuga desesperada para não se entregar ao buraco negro, para mim, é necessária, para que tudo não vá para a lixeira por aquelas horas loucas tantas dedicadas ao trabalho.
Fugir, é necessário, mas não para tão longe. O filme, a leitura, as conversas são possíveis para um detalhe ser descoberto. E ele vem e salva a situação. O recomeço acho esplêndido, e não importa se o projeto seja curto ou longo. Porque recomeçar é divino, embora árduo, porque nele pode haver a glória de se chegar ao fim ou a tantos fins.
Quando o projeto vem, de mansinho ou de súbito, não penso nas expectativas e amadureci bastante para que a ansiedade não atrapalhe o todo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quantas vezes preciso e sei, a cada vista, sempre há algo a mudar. No livro que terminei há meses, Dos escombros às memórias e alucinações, foi assim. Foi preciso mudar, quando me veio a necessidade de dar à personagem o controle de tudo. Não só bastava as memórias de uma casa com seus aspectos rotineiros, mas a pujança da imaginação, como ponto culminante da trama. Os conflitos familiares, tão já publicados, mas do ponto de vista mostrado, foi necessário alternar entre o simples ao inesperado. Mudei totalmente a temática, utilizando os mesmos personagens e causei um fim inesperado. Li dezenas de vezes e, como tantos escritores sabem, cansa.
É necessário, acredito, mostrar para alguém. Costumo fazê-lo para ouvir outras opiniões e elas ajudam muito. A retirada de um texto, a melhoria de outro, principalmente daqueles que estão há muito na estrada.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Lembro-me da vontade enorme de ter um notebook somente para esse fim: escrever. Venho da máquina de escrever, do retrocesso, da fita a enroscar, perder a cor e a rebobinagem. Não era ruim porque o cansaço dava a sensação de suor, de gosto pelo desenvolvimento da história, e a obrigação exata de ler o texto incansavelmente.
Mas hoje uso todas as formas: notebook, tablet, celular, notepad e até um software que me ajuda a classificar todas as tramas, os personagens, as pesquisas.
O primeiro passo é um caderno e depois todo o desenvolvimento nos formatos já citados.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm, principalmente, das pessoas. São elas a razão principal. Seja por meio de uma história contada pelo mais simples homem do campo; de um familiar, do vizinho. São elas numa esquina, no bar, no ônibus, nas praças. Por todos os lados sopra toda e qualquer ideia para um conto, um romance, uma anotação.
A primeira pessoa a me puxar pela mão para esse caminho foi minha avó. Dela nasceu a inspiração para o meu primeiro conto publicado numa antologia: Aposentadoria. E não tem como fugir de que a inspiração são essas pessoas, nossos familiares, etc.
Meu hábito principal é ler, e depois vem filmes, e, principalmente, manchetes de jornais. Não me aprofundo nas notícias, mas basta-me a manchete e a vontade de transformar o mote em projeto de escrita. Tantos escritores fazem isso. Lembro-me bem de Erico Verissimo, quando escreveu Incidente em Antares (1971), quando viu numa revista a fotografia de doze caixões enfileirados na frente de um cemitério devido à deflagração de uma greve dos coveiros. Bastou isso para escrever o seu último romance de forma extraordinária.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa mudou. Eu diria a forma de ver o texto e os caminhos melhores traçados. Mas algo ficou e é verdade: o final. Não que são todos iguais, claro, mas o seu formato, a ruptura de uma ideia e a clarividência de que “algo ficou no ar”.
O processo melhorou do ponto de vista disciplinar, enquanto meios, e o direcionamento dos fatos, as lógicas, os cuidados e a lapidação sempre.
Se fosse o caso de voltar àquela escrita, seria para comparação. Nada melhor do que olhar para trás, com a assertiva de não continuar com os erros, com a inexperiência plausível, com as ansiedades, com as sensações incontroláveis de sucesso.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Dentre alguns, destaco a de uma senhora de 80 anos que descobre o amor por outra pessoa, sem se importar com a ilusão, mesmo a viver com o marido sempre a sonhar com o exército, levando consigo, cotidianamente, uma carta que a sua mulher escondeu por muito tempo.
Difícil escolha porque os livros estão aí aos montes e sempre tem temáticas de todos os tipos, independente se bons ou ruins. Mas gostaria de ler de Gabriel Garcia Marquez, “Em agosto nos vemos”… Se ele existe na sua totalidade, apresentem para mim.