Anchella Monte é poeta e escritora, autora de “A Trama da Aranha” e “Haicais Imperfeitos”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma rotina matinal. Meu dia começa muito cedo, e isso há anos, hábito adquirido pelos 37 anos trabalhando como professora de Língua Poetuguesa. Mesmo em feriados, indo dormir pela madrugada em ocasiões de festas, o relógio interior manda que me levante, o que costuma acontecer entre 5h30 e 6h. Depois vem a sequência de preparar o café (que costumo tomar sozinha, porque os demais ainda dormem) e ir cuidar do jardim. Tenho um jardim grande e todo dia passo pelo menos uma hora a molhar as plantas, tirar folhas secas, eliminar pragas e ver a festa dos pássaros. Há muito movimento em um jardim. E depois vêm as mais diversas atividades, de cuidados com a casa a trabalho com revisões (depois de aposentada).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã costumo estar com a mente mais ativa. Porém não tenho uma disciplina no que diz respeito a escrever, nem quanto ao horário nem quanto à frequência. Há tempos em que escrevo direto, uma ideia alimentando outra, uma inquietação que me dita poemas e meio que desequilibra o meu dia, porque fico ansiosa para estar diante do computador e as outras atividades ficam desinteressantes e pesadas. Depois não tenho vontade de escrever por um tempo. Sou disciplinada com muitas coisas, mas nem um pouco com a escrita. Se há um ritual é tão somente ficar diante de uma tela iluminada, sentindo uma satisfação imensa pela “folha” em branco estar se transformando, porque ali estou com palavras que vão criando forma e texto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como disse na pergunta anterior, não escrevo todos os dias e somente às vezes ocorre em períodos concentrados. Recentemente, diante das incertezas causadas pela pandemia, que nos obrigaram a pensar na morte de forma mais constante, como algo muito próximo e muito possível, senti uma imensa vontade de escrever histórias infantis. Era um projeto antigo, quando minha neta mais velha, hoje com dezessete anos, ainda era uma menina bem pequena. Na época, escrevi a primeira historinha, a qual levava seu nome – Clara. As histórias seriam batizadas com os nomes das crianças da família, cada uma delas protagonista de um enredo ficcional, não baseado “na vida real”. Ou seja, os nomes dos contos seriam uma fonte inspiradora inicial, apenas isso. E assim fiz. Em menos de dois meses, escrevi as 21 narrativas, em livro já na gráfica, intitulado “Histórias de Crianças”. Não pensei que conseguiria publicá-lo nem tão cedo, pois livros infantis são caros, demandam ilustrações, cores, e eu não teria como custear o meu. Mas então amigos me incentivaram a buscar os recursos da Lei Aldir Blanc. Achei complicado o edital, parecia que tudo estava escrito em mandarim! Então Ivan Jr. (da Offset Gráfica e Editora) e Aluísio Azevedo (Unilivreira) assumiram o projeto, inscreveram meu livro e fomos contemplados. Histórias de Crianças findou sendo meu único livro concebido como projeto. E durante a criação das histórias infantis realmente escrevi todos os dias, quase sempre pela manhã. Mas foi uma exceção. Escrevo com muita liberdade.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como escrevo principalmente poesia, pesquisa não é uma preocupação. A escrita é que muitas vezes me leva para a pesquisa. Vou citar dois exemplos de poemas que estão em dois livros diferentes. Em “Temas Roubados” há o poema “A menina que cantava para dentro”, apresentando Dona Militana, romanceira de prodigiosa memória que passou a vida ocultando a poesia musical que a habitava porque, segundo seu pai, moça “direita” não podia cantar. Poema já no papel, procurei artigos de jornal que falavam sobre ela, descoberta pelo pesquisador e poeta Deífilo Gurgel. Assim também procedi com os poemas “Relíquia” e “Também Luzia”, do livro “Entre Tempos”, nos quais Santa Luzia aparece como a mulher corajosa que morreu em sofrimento por defender suas ideias e não voltar atrás nas decisões. Primeiro os poemas, depois a pesquisa para ter certeza de que não estava cometendo equívocos quanto às histórias (embora com diferentes versões, os pontos principais se assemelham) presentes no meu texto. Isso ocorreu em muitos poemas, e continua sendo assim. Então não é difícil começar. Escrevo somente quando estou com poemas em mim.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não me preocupo, de verdade. Há períodos em que não escrevo nada, mas acho isso normal. Acredito estar armazenando ideias e sentimentos. Como não sou “profissional” da escrita, raro ter projetos (exceção ao “Histórias de Crianças”, como relatei). Meus livros não surgiram concebidos como livros, eu estava escrevendo poemas, depois reunidos. Mesmo o meu último trabalho, lançado em 2020, o “Haicais Imperfeitos”, reúne tercetos escritos em anos diferentes. Resultam de uma paixão por haicais, tão somente. Talvez seja uma falha minha, a falta de “unidade temática”. Mas é como me sinto à vontade. Às vezes os poemas acontecem numa sequência que estabelece uma relação entre eles, como é o caso da primeira parte de “Temas Roubados”. Esse roubo diz respeito a minha motivação para escrever ter partido da leitura de poemas de outros poetas, não simplesmente como epígrafe, mas porque havia em minha vivência uma identificação com o tema, uma narrativa que dialogava com a do autor escolhido. Sobre medo de não corresponder às expectativas, não tenho medo, mas me sinto responsável com a qualidade do que escrevo. Aí bate uma insegurança, apesar do longo tempo de escrita, porque não sei de fato se escrevo bem. Mas sei que há tanta gente que escreve maravilhosamente, inclusive em nossas terras potiguares, por isso penso, diante desses autores que me encantam: quando crescer, quero escrever assim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reescrevo bastante. Procuro a concisão, nem sempre alcançada. Alguns poemas reescrevo muitas vezes, não sei quantas. E embora professora de Língua Portuguesa e revisora, passo sempre para outra pessoa a tarefa de revisar meus livros antes de serem diagramados. Difícil o autor perceber certos erros que comete, talvez até por hábitos adquiridos ao longo da vida ou pela proximidade emocional com o que escreve. Além da revisão, costumo mostrar os poemas para leitores próximos, da família ou amigos, o que já me fez tirar alguns textos ou decidir por manter outros que me causavam dúvida sobre se mereciam seguir em frente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quem não escreveu poemas em mesa de bar? Estacionou o carro no acostamento para anotar um pensamento antes que a memória apagasse? Ou interrompeu uma conversa subitamente e correu para registrar um verso? Fiz e faço isso frequentemente. No livro “Entre Tempos” há o poema “Laranjas” que me surgiu enquanto estava num barzinho, escutando um cantor que admiro e interpretava no momento uma canção de amor, sem relação alguma com meu pai. Mas algo me fez tê-lo diante de mim, descascando laranja com a perícia que me deixava encantada quando menina. O poema foi praticamente pronto para um guardanapo. Quase nada mudei ao digitá-lo no dia seguinte. Porém prefiro escrever no computador. Com os recursos que possui, apago, mudo de lugar, reescrevo os versos com a rapidez e as muitas ideias que vão surgindo (uso, na verdade, como uma mágica máquina de escrever). Acho mais lúdico que a caneta. A minha filha mais nova, Juliana, recebeu menção honrosa num concurso de poesia da UFRN com o poema “Mãe e Filha”, no qual ela fala sobre nós duas: ela, a jovem que gosta de escrever no papel; e eu, a mais velha, adepta do computador. Versos finais do poema de Juliana: “[…]mundo moderno/ ela digita/ com o tempo sempre corrido/ ela se habita em seus versos./ Eu sigo os seus passos/ de maneira mais primitiva./ Gosto de calos nos dedos/ gosto da letra feia no papel./ Somos mãe e filha./ Ela é jovem/ eu sou antiga.” Quanto a outras tecnologias, principalmente no que tange a blogs, sites, lives, podcasts, assisto/escuto, mas não gosto. Ler na tela só vale para textos curtos. Artigos e livros só funcionam para mim em impressos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm do dia a dia, das vivências de ordem pessoal e familiar (tempo e memória), mas também do que leio, escuto, vejo e está posto em nosso contexto. Meus temas são bem variados, tenho também uma ligação muito forte com a natureza. Matérias de jornal e histórias contadas por amigos também costumam virar poesia. Escrevi o poema “A árvore que chovia” baseado num fenômeno que aconteceu na cidade de Mossoró, num dia de muito sol e nenhuma chuva, mas da copa de uma árvore frondosa começou a cair uma chuvinha fina. “O carneiro” partiu do relato de uma amiga sobre o animal sacrificado para um churrasco, na casa de praia de seu irmão. Em tudo há poesia, muitas vezes triste.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A maturidade traz muitas mudanças. Só estátuas não mudam, acho natural que a experiência traga também novas exigências. Como autora, sou antes de tudo leitora, e a leitura contínua faz com que você conheça um universo sem fim de textos fortes, vitais, emocionantes. No meu caso, penso mais no que escrevo, descarto muitos textos e reescrevo os que salvo – mas dificilmente me dou por satisfeita. Se eu pudesse voltar às primeiras publicações, deixaria menos poemas nos livros. Da maioria ainda gosto, porém de outros não.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não estou com um “projeto” em mente, mas com poemas novos em processo de maturação. Sem pressa. Esse período de pandemia com certeza vai criar matéria-prima para todos os escritores, experiência triste e inédita para as pessoas deste tempo. O confinamento e a dor das perdas estarão em poemas e romances, mesmo que não como registro histórico, mas como uma marca na alma. Os poemas que estou escrevendo dizem respeito a essas tatuagens que a vida imprime com muita intensidade, cor e sangue. Todos os livros que gostaria de ler já existem, agora ou no futuro. Sei que de uma forma ou de outra terei acesso a eles. A criatividade e a capacidade de transformar as palavras em arte atravessa o tempo e o espaço, e como leitora estou sempre a procurar os bons autores e sei que bons livros sempre hão de chegar, surpreendentes.