Ana Suy é psicanalista, professora universitária e pesquisadora, autora de “A corda que sai do útero”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Cada dia é um dia. Tenho uma filha pequena, de 2anos e 9meses e tenho os meus trabalhos com a pesquisa, a universidade e a clínica para cuidar. Não tenho rotina fixa e gosto muito disso. O que se repete, toda manhã, é que para mim não tem vida possível antes de tomar café – e me refiro ao líquido, mesmo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Até o momento, me reconheço melhor produzindo à noite. Pensei que isso fosse mudar com a maternidade, porque é preciso dormir mais cedo e acordar mais cedo para acompanhar o ritmo de um bebê ou de uma criança pequena. Mas não. Sigo sendo uma pessoa noturna.
Há dois tipos de escrita presentes em minha vida e elas não acontecem do mesmo jeito, então devo me referir aqui a uma e a outra, constantemente.
Para a escrita poética não tenho ritual algum. Escrevo em qualquer lugar, porque o texto me invade. Não escrevo por gosto, mas por uma espécie de necessidade.
Para a escrita acadêmica antes eu tinha muitas condições. Precisava de silêncio e de muitas horas de estudo que antecedessem à escrita. Muitas mesmo. Fica 12, 14, 17 horas escrevendo, com mínimas pausas, geralmente orquestradas pelo meu marido, para comer, falar alguma banalidade, ir ao banheiro etc. E no outro dia recomeçava. Sentia como se, caso eu me envolvesse com alguma atividade para além da escrita, não poderia retornar a ela. Mas quando se tem um bebê não se é mais dono do seu tempo. E quando se tem uma criança pequena em casa, em plena pandemia, com os adultos trabalhando em casa, a castração força à reinvenção. Hoje eu escrevo em qualquer intervalo, mas precisa ser no computador, é melhor se tiver café e se eu não estiver no mesmo ambiente em que a minha filha.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho um imenso prazer na escrita, então evito intoxicá-lo com obrigações superegoicas. Ter meta de escrita, para mim, seria desastroso. Então me limito a cumprir prazos. Quase sempre escrevo ali, no limiar do prazo. Quando tenho muito tempo para revisar, tenho tempo demais para destituir meu trabalho. É melhor quando PRECISO enviar. O tempo faz uma gentileza à castração.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu faço notas ao ler, mas não as retomo ao escrever. Acabo lendo tudo ou quase tudo (os grifos, especialmente) na hora de escrever. Então, tenho uma escrita acadêmica extremamente lenta, porque preciso estar relendo as coisas para poder escrever. Para mim, a escrita é uma consequência da leitura. Escrevo porque leio.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Dá-lhe castração! Escrever é um furo no narcisismo. Publicar é um rombo no narcisismo. Então é disso que se trata, de perder narcisismo, essencialmente. Escrevo para mim. Escrevo por necessidade, como eu já disse, é o meu modo de viver a vida, escrevendo. Publico porque me interessa fazer laços com as pessoas. Acho maravilhoso ter notícias do que as pessoas leem daquilo que escrevo. Lacan nos ensina que a relação sexual não existe. Barthes nos ensina que o leitor, ao ler, escreve um novo texto. E eu adoro encontrar com os textos que os leitores escrevem a partir do que leem daquilo que escrevo. Esses mal-entendidos na comunicação, esses furos na linguagem sobre os quais fazemos laços, são coisas que me encantam profundamente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Isso varia muito. Mas de maneira geral, eu não mostro para ninguém o que escrevo. Publico do jeito que escrevi, mesmo. Por muitos anos, mais de oito, publiquei textos semanais em um coletivo chamado confraria dos trouxas. Raramente eu publicava sem que ninguém lesse e comentasse comigo o que escrevi. Nos últimos anos da minha participação, já não mostrava para ninguém. Tenho uma clareza cada vez maior de que eu escrevo para mim. Compartilho porque gosto de saber o que os outros leem a partir do que escrevi, mas escrevo porque preciso escrever e não para ser lida. Isso me encoraja bastante. Se eu escrevesse para ser lida eu certamente não teria publicado nada do que já escrevi. Não acho que as minhas ideias tenham alguma coisa de diferente da ideia da maior parte das pessoas. Eu gosto de escrever e sou um pouco ousada, é só isso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
De novo, tenho duas respostas.
Na escrita poética eu escrevo em qualquer lugar. Mesmo. No computador, no guardanapo, no caderno, tanto faz. Claustrofobia, para mim, seria não ter onde ou como escrever. Preciso ter sempre algo à mão. Mas como acontece de estarmos quase sempre com o celular por perto, acontece de eu escrever no celular, com mais frequência. Tenho vários “grupos” de whatsapp comigo mesma, apenas. Geralmente é ali que eu escrevo.
Na escrita acadêmica eu escrevo no computador. E se por acaso escrevo uma ideia que me passou rapidamente à cabeça no celular ou no papel, para não perdê-la, quando vou transportar a escrita acadêmica para o computador, não encontro serventia. Preciso de muita concentração e disciplina para a escrita acadêmica.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm da vida. Não só a minha vida, mas do que penso ser a vida dos outros. Nesses tempos de pandemia eu sinto muitas saudades de sentar em um café, no transporte público, em um restaurante e ficar exercitando, sozinha, minha fantasia acerca da vida do outro. Recentemente descobri que os jovens chamam isso de fanfic. Sou uma fanfiqueira, por natureza. Adoro olhar uma pessoa estranha e imaginar sua vida, suas dores, seus segredos, seus amores. Escrever, para mim, é um modo de viver várias vidas, é um modo de engambelar a castração, que nos permite viver apenas uma.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu sempre escrevi para mim, e não para ser lida. Mas cada vez mais eu tenho clareza disso, do prazer que tenho por escrever e por compartilhar o que escrevo para as raras pessoas que me leem. Eu tenho muito mais leitores do que jáimaginei um dia na vida poder ter. Mas é engraçado isso, porque eu não me sinto lida. Na verdade publicar um texto é se livrar dele, é dizer para o outro, olha, é seu, tome como preferir. Então, se escrever é uma necessidade, publicar é uma libertação. Acho que eu era muito mais tímida antes, mais identificada ao que escrevia. Cada vez mais me separo do que escrevo.
Quanto à segunda parte da pergunta é difícil responder… até porque eu não sei dizer quando comecei a escrever meus primeiros textos – mas acho que foi antes de ser alfabetizada. Me lembro de quando criança bem pequena ficar sentada, em silêncio, inventando histórias na minha cabeça. Aprender a escrever foi uma libertação, um modo de me conectar a alguns outros. Acho que eu não teria nada a dizer para mim mesma, que eu já não soubesse naquele tempo. O máximo que eu diria é algo como “é isso aí”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tem uma coisa que eu gostaria muito de fazer na vida, que é escrever um romance. E publicá-lo! Compõe a minha fantasia tirar férias, um tempo de reclusão para escrever em um outro país, onde se fale uma língua estrangeira, onde eu seja uma estranha. E que eu esteja sozinha, substancialmente sozinha. Mas o que é estar sozinha, né? Estamos sempre sozinhos, mesmo que com os outros. É preciso estar sozinha para escrever. Eu pude ser sozinha desde muito cedo, embora nunca tenha sofrido disso.