Ana Souza é escritora e poeta potiguar, autora do zine digital “Dormia de bruços para segurar o coração”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Geralmente, eu inicio meu dia já olhando no Google Agenda qual é a primeira reunião do trabalho e separando os 30 minutos sagrados para um café da manhã gostoso. Acredito que começar comendo coisas gostosas melhora o dia rs. Como atualmente estou trabalhando de casa mesmo, minha rotina matinal é aqui dentro. Durante a quarentena, aprendi a assistir os detalhes mais pequenos que acontecem na minha casa – o jeito que a luz bate na mesa pelo pergolado, o café coando, etc. Mas antes de todo esse novo-velho mundo acontecer, eu adorava observar os fenômenos e barulhos da manhã durante o meu percurso de ônibus, um tanto demorado (moro na Zona Norte da cidade). A banalidade, a rotina e as coisas pequenas sempre foram grandes fontes de inspiração para mim.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu não tenho uma hora muito específica do dia em que a escrita necessariamente saí melhor, isso depende muito mais do quanto minha mente está aberta para que as palavras fluam. Meus dedos quase sempre estão dispostos a escrever, seja como for rs O que eu observo é que gosto muito do fim de tarde. As cores do céu e a sensação de “nem dia nem noite” abre os poros da minha cabeça e parece que fica mais fácil vomitar as palavras. E é quase sempre assim que eu escrevo, jorrando o que flui entre os meus pensamentos – criando um fluxo de consciência no próprio papel, sem nem sempre saber pra onde o poema vai. Depois, eu volto e lapido o que escrevi – mudo de ordem, troco versos, substituo palavras. Acredito que meu principal ritual para a escrita é desbloquear minha mente para as palavras passarem – é muito mais subjetivo do que concreto. Com o foco na escrita e os instrumentos necessários, eu realmente posso escrever em qualquer lugar e a qualquer hora.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo bastante todos os dias, mais em razão do meu trabalho – eu sou estudante de comunicação social e trabalho com comunicação. O que com certeza me treina bastante em relação a ficar mais familiarizada com as palavras e manter o ritmo de escrita. Porém, na hora de escrever artisticamente, às vezes é um pouco complicado desligar o fluxo de consciência objetivo (a escrita mais literal) e ligar um mais subjetivo (a escrita mais poética). Ainda que eu ache divertido e provocador passear entre os dois; acredito que é um hábito que me faz uma escritora mais versátil e íntima das palavras, o que torna bem mais fácil manuseá-las. Apesar de eu não ter uma meta diária, semanal ou mensal específica, eu me vigio para treinar meu olhar sob as coisas e minha escrita subjetiva pelo menos uma vez por semana. Nem sempre saí um poema pronto ou um texto excelente dessas tentativas, mas o importante pra mim é manter minha escrita e meu pensamento-poeta em movimento. Além disso, eu procuro sempre me manter próxima da poesia. Lendo, escutando, assistindo. A linguagem poética é sempre minha vizinha.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como eu falei um pouco nas respostas das outras perguntas, meu processo de escrita se resume principalmente em dois verbos: jorrar e lapidar. Geralmente quando vou escrever, estou em duas situações específicas 1) já pensei muito sobre o poema e agora vou passá-lo para o papel 2) eu vou começar a pensar o poema ao mesmo tempo que escrevo. Em todos esses dois casos, eu aprendi a não me colocar nenhum tipo de amarra. Eu apenas deixo o fluxo de consciência acontecer e as palavras se formarem como eu pensei inicialmente. Depois (geralmente deixo o texto/poema dormir por pelo menos 1 dia), volto pra ele e lapido como preferir. Quase sempre faço alguma mudança (nem que seja uma correção gramatical) até deixar ele na sua versão final – inclusive, às vezes é muito difícil chegar nessa versão final rs. Nesse movimento da pesquisa até à escrita, eu costumo usar muito do meu referencial. Eu sempre escrevo o mundo e os temas a partir da minha perspectiva subjetiva, acredito que esse seja meu meio de personalizar a minha escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Antes de tudo, sempre que estou nessas situações, eu lembro porque escrevo. E logo me vem à cabeça aquela frase da Clarice Lispector: “a palavra é o meu domínio sobre o mundo”. Nada flui tão bem de mim quanto à escrita. Não consigo imaginar nada que seja mais puramente eu do que um poema ou texto que escrevi. Então, costumo sempre me relembrar: escrevo porque escrevo. É isso que sei e quero fazer. É através da escrita que eu sou mais do que eu sou. Quando reforço esses pensamentos dentro de mim, meus dedos já coçam de querer escrever. Eu procuro meus referenciais, minhas inspirações, meu olhar sobre aquilo (caso seja algum tema específico), e mãos à obra. Escrevo desde que me entendo por gente e se tem uma coisa que aprendi em todos esses anos é que a única maneira de escrever é, de fato, escrevendo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Pra mim, é até fácil começar a escrever. Difícil é terminar, rs. Eu sempre fui a que escrevi demais, então ainda é um desafio ser sucinta (embora tenha melhorado bastante desde que comecei a trabalhar profissionalmente com escrita). Achar a versão final dos meus poemas, olhar e pensar “é aqui que acaba” sempre é um passo difícil. Acredito que até por isso para mim seja muito natural mostrar as versões do meu trabalho para as pessoas mais próximas a mim (que me conhecem profundamente) antes de publicá-los. Eu quero ouvir a opinião delas e saber se elas sentem esse fim no que escrevi. Se a coisa realmente se encerra ou se fica algo aberto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha escrita realmente flui em qualquer lugar, espaço ou material, rs. O que geralmente acontece é que pra mim é mais fácil as palavras acompanharem meu fluxo de consciência em meios tecnológicos, já que digito mais rápido do que escrevo manualmente. Mas isso não é, de forma alguma, limitante. Realmente acho que o poema acontece na minha cabeça e depois se imprime no papel ou na tela ou em qualquer lugar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas principais ideias vêm do cotidiano. Acredito que isso seja até uma “ideologia” de escrita, mas nesse sentido eu vou com Manoel de Barros e defendo bastante a poesia da banalidade. Procuro quase sempre escrever sobre as coisas que me rodeiam – um ônibus lotado, pássaros voando entre os fios elétricos, brecha de luz em cima da cama, gosto de café com leite, etc. Para mim, é nesse lugares que eu encontro a poesia. E acredito que isso seja até um certo privilégio, porque pra mim é fácil se manter criativa. O único hábito que realmente preciso cultivar é treinar o meu olhar para encontrar essas belezas miúdas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A principal coisa que mudou no meu processo de escrita durante esses anos foi a minha auto-compreensão de entender que nem sempre o poema nasce pronto. Aliás, quase nunca É preciso lapidá-lo para que ele chegue em sua melhor versão. Antigamente, eu sempre escrevia com a mentalidade de que o poema era pra ser do jeito que ela saiu da minha mente e foi para o papel. Qualquer coisa que eu alterasse, eu estaria criando outro poema; traindo a mim mesma, de certa forma rs. Com o passar dos anos, fui entendendo que não é nada disso. E se pudesse falar algo para minha versão antiga, diria que, como diz Djonga, talento é esforço, não se trata de dom. Nenhuma criação literária cai do céu direto na nossa mente e saí pelos dedos. É preciso processo, reflexão, revisão e treinamento. Inclusive, é por isso que acredito que qualquer um pode ser um escritor. É fácil se tornar íntimo das palavras até se um hábito manuseá-las; elas são ótimas companhias. O único segredo é trazê-las para perto.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
No momento, estou no processo de produzir meu primeiro livreto/zine. E para uma geminiana, é muito complicado realizar essa seleção rs. Porém, no meio do processo, encontrei muitos escritos de teor político de diferentes anos; gosto bastante de escrever sobre política ressignificando a beleza, o poder e coletividade que essa palavra carrega. E isso me deu a ideia de em breve criar um outro livreto/zine focado nessa temática. Seria algo muito especial pessoalmente para mim, porque acredito bastante que a palavra também é instrumento de luta. E ainda em relação à processos criativos, eu gostaria muito de um dia poder ler um livro que falasse de tema com um pegada menos “coach”, e mais subjetiva e provocativa. Que falasse sobre fluxos de consciência, intimidade com as palavras, olhar sob o mundo e tudo aquilo que nos faz ver na poesia muito mais do que uma categoria de escrita; mas sim um modo de ser e estar no mundo, enquanto pessoa.