Ana Paula Dacota é escritora, autora de “Perfume atrás da orelha” (Scriptum, 2019).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia lendo um jornal. Adoro tomar café acompanhada por um jornal impresso. Depois dou uma olhada nas notícias da internet, às vezes recebo alguns jornais em um grupo de WhatsApp, então, depois de um pouco de informação, do rolê de notícias, realizo as tarefas do meu trabalho, que é home-office. Acho que se manter atualizado é essencial para um escritor.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A hora de me dedicar à escrita é depois das 22h. Só consigo escrever à noite, pois eu preciso trabalhar, ainda não vivo o sonho de me sustentar com minha escritura, então, depois de jantar me sento pra passar a limpo as anotações que fiz ao longo do dia. Tenho um caderno só pra anotar ideias, podem ser as mais estapafúrdias. Tenho que estar bem alimentada, detesto ter que parar de escrever porque deu fome, daí ter que sair pra preparar algo; se eu vejo que a noite vai ser longa, deixo um biscoitinhos por perto, uns snacks, me mantenho hidratada, procuro estar com um jarro de água à mão, porque uma vez que eu entro em tarefa de escrita, em fluxo, só levanto pra desmaiar na cama. Não faço uso de bebidas alcóolicas para escrever, minha experiência ao escrever alcoolizada não produziu coisa boa, só material descartável. Pra alguns escritores até que funciona, mas pra mim, não.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo todos os dias. Ao longo do dia se tenho alguma ideia ou insigth fazendo alguma coisa, tomo nota. Pode ser a coisa mais idiota. Volto nela depois. Quando a gente trabalha em várias frentes, não pode confiar na memória. Já perdi várias boas inspirações achando que eu ia me lembrar depois e é horrível, a gente não pode deixar escapar. Então eu comecei a usar o bloquinho de notas do celular quando eu estava na rua, resolvendo algo, longe do meu caderno de anotações. Se me vinha algo, anotava. Pode ser uma palavra, uma frase solta, um pensamento. Se tinha uma ideia no ônibus, ou no Uber, anotava no Notes do meu telefone. Depois desenvolvia. As metas de escrita dependem de qual tipo de escrita estou me dedicando no momento. Quando é escrita acadêmica, artigos, dissertação, por exemplo, se você não colocar uma meta de tantas páginas por dia, ou parágrafos, você vai se complicar, tem dealines, etc. Quando é poema ou literatura, “coisas minhas” como eu chamo, não tem meta, e essa é a melhor parte da minha vida, escrever por prazer, sem sofrência, sem pressa. Demorei 14 anos no total escrevendo, revisando e editando o meu primeiro livro de poemas, “Perfume atrás da orelha”. O processo começou em meados de 2005, quando juntei uns escritos que eu vinha escrevendo durante minha vida toda e terminou em 2019, transformado em livro. É um tempo longo, mas foi o tempo necessário para amadurecer a minha escrita, e eu fui lapidando os poemas com muita calma enquanto exercia outras profissões e me dedicava a outros projetos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Vamos lá: cada tipo de texto tem um processo diferente. Por exemplo, eu escrevo poemas, artigos, resenhas, ensaios, crônicas e literatura infantil. Romance, eu tive a ideia para um, mas ainda não consegui iniciar. Voltando: tenho um livro infantil que há anos estava aguardando e agora vai sair em 2021, passou por várias revisões, é literatura, foi escrito devagar. Já artigo, a resenha, o ensaio, a escrita científica exige pesquisa, essa compilação, de outras fontes, outros autores, etc. O primeiro parágrafo de um artigo, por exemplo, é o mais difícil. Depois disso a escrita flui. Difícil também é concluir. A conclusão ou o final também é uma etapa que exige elaboração, assim como o início, então, o escritor tem que tomar cuidado redobrado com as portas de entrada e de saída do texto. Já o processo de escrita dos poemas, é mais ou menos assim: no meu caso, quando pulam do papel para a tela os poemas entram em outro território e o que mais me exige em um poema é criar o seu título. Há autores que não gostam de títulos para seus poemas, nem se preocupam com isso. Eu gosto de dar um “nome” para cada um, é como se eles fossem meus filhinhos, e na hora do batismo, eu faço igual um tabelião: gosto de verificar se existem livros ou poemas com o mesmo nome que eu acabei de criar, pois detesto plágio ou cair na vala do senso comum, do ordinário. Sendo uma ideia original, sigo em frente; se não for bacana e original, volto a pensar em outras saídas. Paro, deixo o poema e a cabeça descansar e volto depois neles, em algumas noites, semanas ou meses.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com a escrita acadêmica é terrível, pois é algo que preciso aprimorar bastante para atender aos requisitos da academia, por exemplo, concatenar as ideias de forma clara, entrelaçando vários autores e referências, isso não é nada fácil. Nunca estou satisfeita porque é como se eu estivesse aprendendo ainda a andar. Mas me esforço. Eu aprendi a lidar com a procrastinação que envolve a escrita acadêmica da seguinte forma: eu deixo o texto descansar um tempo e volto a ele. Quando eu volto a ele eu digo a mim mesma que eu sou uma revisora e que foi outra pessoa que escreveu a versão anterior, e acaba que sempre é, pois a pessoa que eu era ontem, hoje já não é mais a mesma, evoluiu nem que seja um milímetro com o tanto de coisa que leu, assistiu e conversou. Então, considero a “eu” que escreveu o texto semana passada como outra pessoa. Só assim, me desvinculando de mim mesma, consigo reler e reescrever os parágrafos. Antes de fazer dessa forma, eu sentia tanta preguiça que não conseguia sequer reler as anotações do meu orientador, de tanto desânimo. Preciso me colocar em um outro lugar pra lidar com a frustração de aprimorar o texto que anteriormente não estava bom, é como eu lido com as versões fracassadas, que estavam fracas. Esse método foi sendo aplicado à literatura, poemas, crônicas, infantis, ou seja, ao voltar ao texto tenho que ter uma persona dentro de mim que humildemente olha para aquilo e não julga com tanta severidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nunca contei quantas vezes eu revisei meus textos, porque é um processo quase que diário, dar uma revisada em tudo, até não aguentar mais. Quando não aguento mais, por exemplo, vamos falar de poemas: quando eu já me exauri de revisar, eu encaminho para o primeiro leitor. Geralmente é algum poeta/escritor em quem confio. Ele lê e me diz se está bom ou não. Quando não me dá um retorno, nem positivo, nem negativo, isso é um mal sinal, eu já sei está ruim. E está tão ruim a ponto de nem ser digno de comentário. Aconteceu uma vez. Foi um “livro” que escrevi bebendo vinho, e o resultado foi um delírio alcóolico, uma catarse, mas inicialmente achei que talvez fosse algo interessante. Na realidade eram desabafos, e veja como é, nem todo mundo é como Bukowski, movido a álcool pra escrever. Se engana quem acha que um punhado de frases de efeito, devaneios, desabafos, delírios catárticos é poesia; pode até soar rudemente poético, talvez até tenha um público enorme pra isso, há lugar para os delirantes no mundo também. No meu caso, aprendi que deveria escrever bebendo água, lúcida e sóbria pra melhor lapidar as palavras. E com certeza colhi e venho colhendo melhores resultados depois da experiência em que não fui feliz. Nem tudo dá certo, e o erro também é um dos professores, que aliás, ninguém gosta, é muito duro. Por isso mostrar os seus escritos para alguém é importante, porque a gente se engana a respeito da gente mesmo. O primeiro leitor pode sugerir mudanças, cortes, dar um feedback mais incisivo, ou não. É muito importante colher uma segunda ou até uma terceira opinião além da sua, porque o que a voz dentro da sua cabeça diz não pode ser unânime, ela tem que aprender a ouvir outras vozes também. A partir daí, são mais revisões, até ser encaminhado para a editora. Se alguma te der o sonhado aceite, maravilha, na edição, na preparação do original, podem surgir mais sugestões, mais lapidações, e isso é um processo completamente natural, até virar o produto “livro”. Acaba que o que é do escritor é só a ideia original, a centelha que dispara todo o processo. São muitas outras mentes e mãos que se juntam pra alterar e moldar o texto, é uma criação conjunta, sempre.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Meus rascunhos são feitos sempre no papel. Tudo o que faço começa com uma caneta, uma lapiseira, um traço, no papel. Depois, tela. Muito difícil eu começar um poema diretamente na tela, talvez algumas ideias, como disse anteriormente, eu anote no bloco de notas do meu smartphone, e é só. Não é porque sou velha ou deteste tecnologia. É porque eu amo escrever à mão. Adoro manuscrever.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêem do hábito de ler, todos os dias. Eu leio muito, de tudo, tanto em português quanto em inglês, então das leituras colho palavras e as palavras são as sementes que germinam na mente e nos auxiliam a criar textos. Claro que você tem que se debruçar sobre algo, uma ideia, um tema. Ao encontrar algo a que se dedicar, a matéria bruta, a argila, o barro, já está ali, é moldar. Quem não tem um bom vocabulário, como pode se expressar sobre algo que queira transmitir ao outro? Veja como somos todos tão privilegiados hoje em dia, temos tanto acesso a tanta coisa, tantos livros, tanto material, impresso, digital, a internet. Não há desculpas para alguém deixar de ler, aliás, mesmo quem não lê livros está lendo o tempo todo coisas da mídia ou redes sociais no celular. Antigamente o homem do século XVII, XVIII lia o equivalente, em média, a um jornal do New York Times durante a sua vida inteira, que nem era tão longa, se muito, 30, 35 anos, isso quando sabia ler. Hoje uma pessoa pode ler 4 a 5 jornais diferentes por dia! Isso nos diferencia e é por isso que estamos dando saltos em termos de desenvolvimento tecnológico, a criatividade está intimamente ligada a mantermos nossos cérebros sendo alimentados. Temos além da leitura muito mais equipamentos para nos manter criativos: filmes, séries, conversas com amigos, vídeos no Youtube, músicas, dentre outros. Qualquer um pode aprender qualquer coisa hoje em dia, basta querer e acessar a internet. Tudo é fonte para despertar algo dentro de você, de uma boa conversa pode nascer uma excelente ideia, enfim, acho que as pessoas só precisam estar atentas e “pescar” algo que possa ser trabalhado por elas, aprimorado por elas, reinventado por elas, podemos subir nos “ombros de gigantes” do passado hoje com uma facilidade incrível.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Se eu pudesse voltar no tempo eu diria: “Acredite em si mesma, você é uma escritora”. Eu deixei para investir na escrita e na faculdade de Letras quando já era mais madura, porque lá atrás, quando eu era mais nova, aos vinte e poucos anos, escrever era apenas um hobby. Para minha família era um passatempo, a arte nunca foi bem vista e eu sou a primeira pessoa a me tornar uma escritora publicada no meio deles. Eu mesma não me levava a sério. Só fui me dedicar à literatura quando cheguei em uma encruzilhada. Eu ensinava para menores aprendizes em ONG’s, e como instrutora, os adolescentes nos viam como verdadeiros orientadores de carreira (na época não existia o termo “coaching”, nossa, detesto essa palavra!), mas se fosse hoje, creio que seríamos definidos como coachs, enfim, e eu sempre dizia para eles: “Busquem encontrar uma profissão onde você vai usar o seu talento, que é aquilo que você faz com mais facilidade, com tranquilidade. O que te difere dos demais? Se você é bom em matemática, busque alguma profissão ligada às engenharias, etc”, coisas desse tipo. Aquela insegurança na hora de prestar vestibular, etc. Mas ao olhar para mim mesma, eu vi que eu não estava fazendo o que eu estava dizendo para eles fazerem. Eu gostava de escrever, escrevia um blog na época e fui até convidada para ser a blogueira da Instituição onde eu estava trabalhando. Eu tinha me formado em Economia. Estava dando aulas de conteúdos financeiros e administrativos para os aprendizes, tinha passado uma década trabalhando com consultorias envolta em números e eu vi que não era aquilo que eu queria fazer para o resto da minha vida, na verdade eu trabalhava fazendo coisas que eu detestava, e comecei a dar aulas em ONG’s para fugir um pouco, como uma saída de emergência. Então conheci uma instrutora que me falou do curso de Letras no CEFET, eu pesquisei e vi que era hora de recomeçar e aplicar em mim o que eu dizia para os meus alunos: investir o tempo naquilo que você gosta ou tem facilidade em fazer, acreditar em si mesmo, desenvolver e aprimorar o seu talento. E então eu encarei, comecei outra carreira, fui estudar, conhecer o mercado editorial, trabalhei em uma pequena editora-livraria, porque é preciso viver na pele o que os eles vivem, sempre tive comigo que o conhecimento acadêmico é importante, mas tem que viver a prática também, e assim fui me desenvolvendo e continuo nesse processo, acho que nunca vai terminar, porque são tantas coisas interessantes, são tantos campos interligados, tudo ligado ao livro, à Letras, à edição, à leitura, ao ensino de outras línguas me encanta. Fora as artes plásticas, outro campo que estou em permanente contato. A minha grande dificuldade é encontrar um foco em meio a isso tudo, porque quero fazer tantas coisas que acabo me dispersando, então, eu preciso me concentrar e eleger uma, duas ou três prioridades, no máximo. Sou daquelas que lê 5 ou 6 livros ao mesmo tempo, e daí falam sobre déficit de atenção, mas no meu caso, eu estou é em débito comigo mesma, em relação ao tempo que deixei de investir, então, veja, nem assisto TV mais, não há tempo a perder com noticiários, novelas, filmes repetidos, isso tudo é uma grande perda de tempo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O livro que eu gostaria de ler e ainda não existe em língua portuguesa é “A arte de amar”, da autora Michalina Wislocka. É uma autora polonesa que dedicou sua vida ao feminismo, à busca do orgasmo feminino, à luta de conscientização das mulheres sobre métodos anticonceptivos ou para ajudá-las a conceber filhos. Uma pesquisadora que teve seus projetos barrados por causa do machismo e que para publicar esse livro durante o regime comunista, na década de 1970, lutou pra caramba, só conseguiu por meio do apoio de outras mulheres, esposas de altos funcionários do escalão comunista, pacientes, que precisaram convencer os homens que davam as cartas. É uma história linda e comovente, é um absurdo que não exista uma tradução em nosso idioma desse livro ainda. Assisti ao filme biográfico dela e fiquei abismada. Poderia ler em inglês, é o que tem até o momento, talvez até leia, mas só depois que finalizar meu mestrado. Mas é um livro que existe. Então não sei se respondi à segunda pergunta direito. A primeira pergunta é mais difícil ainda de responder, pois como disse antes, são tantos projetos que me encantam, que me acenam, que é difícil focalizar. Acho que depois do mestrado vou me dedicar à escritura do meu primeiro romance, é o que desejo fazer.