Ana Paula Campos é escritora e pesquisadora.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de rotina. Acredito que pessoas que têm uma agenda cheia funcionam melhor com organização. É meu caso. Como eu tenho uma filha de 12 anos que é deficiente auditiva e está no 7º ano, preciso organizar minha vida com a dela. Então, dormimos cedo para levantar cedo. Ela tem atendimento pela manhã no centro de reabilitação para surdos (SUVAG) e eu acompanho. Nos dias que não tem, estudamos juntas as matérias da escola. À tarde, quando ela está tendo aula online, eu trabalho nas minhas atividades escolares, já que sou professora da Rede Pública de Natal. Planejo atividades remotas, envio para as crianças, tiro dúvidas, preencho formulários e participo de reuniões e formações. À noite é o momento que reservo para fazer cursos ligados ao movimento negro e tudo relacionado à minha vida enquanto militante negra., além da leitura de livros. Nos finais de semana procuramos fazer atividades em família como jogar ou ver filmes juntos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu nem posso dizer que tenho um horário que trabalho melhor. Acredito que mães que trabalham não podem se dá a esse luxo. O que acontece na verdade é que faço minhas atividades de acordo com a disponibilidade de tempo que tenho. Mas de fato o momento que mais gosto de escrever é durante à noite quando todes já foram dormir. Passo o dia amadurecendo uma ideia e quando paro, sento em um local confortável e me ponho a escrever. Nada muito ritualístico. É na verdade bem prático. Eu sei que só terei aquele momento para escrever então preciso aproveitar. Como escrever para mim é um processo de cura, acaba sendo terapêutico poder reservar algumas horas só para mim e minhas emoções.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como eu sou colunista no Jornal Potiguar Notícias, preciso entregar o texto no prazo para a publicação que acontece às segundas-feiras. Então, as crônicas do jornal eu escrevo toda quarta-feira. Reservei esse dia para isso. Sou ansiosa e não gosto da ideia de deixar nada para última hora. E quem tem filhes não pode contar com a sorte (risos). Já a escrita de contos não tem dia certo. Costumo fazer pequenas anotações nos blocos de nota do celular que sempre está à mão, e quando sinto que a história está pronta para sair, sento à noite e escrevo. Já cheguei a escrever dois contos em uma mesma noite. Esse foi o máximo que consegui. Como vinha escrevendo textos de muita dor e denúncias raciais, não era uma escrita fácil. Eu acabava revivendo várias dores do passado e duas narrativas era meu limite. Mas já aconteceu de iniciar, rascunhar, refazer e acabar desistindo. Não era a hora ainda. Respeito meu tempo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita das crônicas é mais tranquila. Eu geralmente acompanho algum acontecimento midiático e registro minha opinião sobre o fato, ou descrevo algo que se passou comigo e vejo como necessária a divulgação na forma de denúncia. Algumas vezes faço análises teóricas sobre assuntos ligados à negritude e ao racismo a partir das leituras dos intelectuais negros que venho fazendo. É uma forma de educar e fomentar o debate de questões que foram historicamente silenciadas na academia. Como a crônica é um texto curto e com linguagem acessível, aproveito para alcançar mais pessoas. Já a escrita dos contos é diferente. Eu vou fazendo pequenas anotações em blocos de notas no celular, como falei anteriormente, e depois organizo na forma de conto. A mistura entre conseguir abordar a temática, seguir a técnica do conto e o controlar o emocional exige um pouco mais. Mas geralmente quando eu sento para escrever, a história flui de uma única vez. É como se a narrativa estivesse pronta para sair só aguardando o momento certo. Como se a voz de várias mulheres com quem convivi e que existiram dentro de mim, quisessem falar por si. Eu respeito, honro e escrevo. Em relação à pesquisa, isso é uma prática necessária. Como meus contos e crônicas são uma escrita de manifesto, combativas, eu preciso ter a responsabilidade de aprofundar nas leituras, não apenas de textos teóricos, mas também de obras literárias escritas por pessoas negras para produzir um conteúdo aprofundado, fugindo dos debates raros das redes sociais. É muita responsabilidade, sobretudo quando se é a primeira, e até agora única, colunista negra do RN.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quem tem filhes e uma outra profissão além de escritora, não pode se dar ao luxo de procrastinar. Então as crônicas para o jornal eu nem tenho como não escrever. Apesar de saber que conto com a compreensão da equipe do jornal caso algum dia eu não consiga produzir o texto. Eles são sempre muito compreensivos. Em relação à escrita dos contos eu não estabeleço uma meta. Eu sinto a necessidade de dar vida às vozes negras e apenas escrevo. A narrativa vem. Não gosto da ideia de produção em massa. Não fico preocupada com uma escala industrial. Estou mais comprometida com a qualidade dos meus textos e a necessidade que eles impõem de virem para o papel. Honro com minha ancestralidade. Ela dita o ritmo. Já o medo de não corresponder às expectativas é algo que ronda todas as mulheres, sobretudo negras. Fomos ensinadas que este não é o nosso lugar, então, escrever e publicar é sempre um desafio muito grande. Nossa capacidade intelectual foi colocada à prova durante séculos, inclusive com o racismo científico e por mais que saibamos da nossa capacidade e competência, não temer é uma tarefa bem difícil. Mas isso não me amordaça. Muitas ancestrais deram a vida para que nossas vozes fossem ouvidas. As nossas narrativas já foram contadas tempo demais pela boca do outro. Mulheres negras ainda são apenas 6% do número de publicações. Precisamos e devemos escrever. Escrever é um ato político.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Justamente por causa dessa insegurança que assola mulheres negras por questões históricas, sociais e psicológicas, meus livros passaram por quatro revisões além da editora. Também mostrei meus escritos para alguns intelectuais que confio e ouvi atenta cada sugestão. Segurei o máximo que pude o envio para a Editora CJA, que fará a publicação de dois livros meus, mas nós, pessoas negras, não temos o direito de não seguir à diante. Precisamos buscar alternativas, então faço diversos cursos de escrita com escritores negres que respeito e aos poucos a confiança vem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou leão com ascendente em aquário, então lido muito bem com fama e tecnologia (risos), mas sempre prefiro escrever meus rascunhos à mão. Como meu pensamento é ligado em 220W, saio rascunhando, puxando seta, colocando asterisco e só depois organizo o texto no computador. É luta!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Das minhas mais velhas e mais velhos. Com elas/es aprendo tudo. Leio e releio obras de diferentes escritores e busco inspiração. Quero ser um pouco de cada um deles. Sigo aprendendo. Mas infelizmente a inspiração para a minha escrita também surge do racismo cotidiano. São episódios que exigem de nós uma denúncia e uma manifestação escrita, afinal, estamos diante de uma disputa de narrativas. Mas nem tudo são dores. As vivências em espaços como os terreiros de candomblé e jurema, além de nos fortalecer espiritualmente e culturalmente, nos dão fôlego e ideias para várias histórias interessantes. Como estou entrando em uma nova fase de escrita, essa experiencia junto aos meus irmãos, irmãs e babalorixá, tem sido muito potente.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu tenho muito respeito por mim. Acredito que passamos por fases que estão ligadas ao nosso amadurecimento, não apenas técnico, mas também enquanto ser humano. Quando leio minhas primeiras crônicas, gosto de umas e sinto que faltou aprofundamento em outras, mas era o que eu sabia na época, tanto que refiz várias para o livro Crônicas para acordar a casa grande que será lançado em breve. Acho que venho ganhando segurança e estou ficando cada vez mais afrontosa (risos). Quanto aos contos penso que talvez minha fase de denuncias tenha cumprido seu papel. Sinto que falei de todas as dores que haviam em mim, concluindo meu processo de cura através da escrita. Hoje sinto desejo de falar de outras coisas, afinal, pessoas negras não falam só sobre racismo e temos um futuro. É sobre isso que quero escrever agora. Sobre amores, prazeres, nossas culturas e filosofias. Se eu pudesse dizer alguma coisa para mim mesma seria: “que bom que aceitou o desafio de ser a primeira. Você abriu as portas para as outras que virão. Parabéns!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho feito muita pesquisa para escrever um livro de literatura infantil afrocentrado. Temos várias obras incríveis escritas por mãos negras, mas infelizmente ainda tem muito livro que insiste na narrativa da escravidão perpétua do povo africano. Isso é cruel e desumano, além de colaborar para o projeto de colonização do pensamento ocidental. Estou me organizado para lançar um livro que reforce nossa história de poder e potência. Uma narrativa que valorize nossos valores civilizatórios, nossas culturas, filosofias e espiritualidade. Não consigo pensar em um livro que ainda não exista. Nosso povo preto tem escrito, desde obras de denúncia, até livros que ressignificam estereótipos impostos pelo racismo. Também existem obras afrofuturistas que nos dão a possibilidade de um futuro, e em um país onde morre um jovem negro a cada 23 minutos isso é pura revolução. Então não sei. Acho que estamos ocupando todos os espaços na literatura e isso é um marco histórico.