Ana Maria Rodrigues Oliveira é licenciada em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Atualmente, o início do dia para mim, permanece ligado ao infantário onde trabalho há cerca de dez anos. Tal situação laboral implica levantar-me por vezes pelas seis e trinta da manhã e dependendo dos horários rotativos em prática, chegar a casa pelas oito horas da noite. Este panorama é exaustivo e retira tempo e disponibilidade mental para escrever. Apesar disso é na escrita que continuo afirmando a criatividade, tal como na pintura que faço como passatempo.
Trabalhar com crianças é, no entanto, estimulante em termos de postura perante a vida, uma vez que a sua espontaneidade e inocência são sempre excelentes vibrações em termos de afirmação pela vida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Por incrível que possa parecer, as horas mais intensas para utilizar caneta e papel, acontecem durante o período de almoço, na pausa entre a dedicação plena às crianças. Este principiar de um poema, exige o que se tiver mais disponível para fazer um registo em termos de temática a desenvolver. É uma fuga vertiginosa do espaço-tempo atual.
Aprendi a desligar-me do quotidiano muito cedo. Já em criança saltava para dentro de vivências em que criava enredos manipulando entidades e energias. O resultado era considerado fruto do imaginário, que tinha quase sempre uma posição de estranheza em relação ao imediato das rotinas diárias.
O poema é normalmente elaborado por inteiro não tendo a preocupação da perfeição da escrita pois ela surge como um vómito incontido e incontrolável. Posteriormente no final do dia e já no computador, revejo e retiro ou acrescento algo mais à composição poética.
Neste contexto, cada poema acontece como uma viagem ao tempo incerto, abrupto, feito de probabilidades e frestas de possibilidades.
A construção literária serve de ponte entre o lado visível e invisível misturando ambas, qual águia obtendo perspectivas singulares, do seu alto voo pelas ravinas e penhascos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho períodos intensos em que escrevo todos os dias. Mas também já me aconteceu que ao ler outros poetas, é de tal forma o reconhecimento destes, que sinto a necessidade de me afastar temporariamente da poesia, pois perceciono uma contaminação de tal forma entranhada, que tudo o que me surge no âmago aparece salpicado dessa energia absorvida de outros escritores.
Não me imponho qualquer meta de escrita diária. Não tenho que escrever uma quantidade de páginas por obrigação. Tal seria extremamente ridículo e prejudicial na minha situação, uma vez que escrever sempre foi para mim um ato extremo de afirmação da liberdade.
Em jovem inventava contos que datilografava diretamente na máquina de escrever. Estávamos na década de setenta. Tinha um espírito irrequieto e necessitava de contrariar o tédio de uma existência super-protegida. Falar sozinha imaginando personagens a dialogar era um dos passatempos prediletos. Cedo tive acesso aos livros de adultos, com os quais me extasiava. Enredos que estimulavam ainda mais a minha imaginação. Não me recordo de gostar de livros para crianças que considerava monótonos e sem graça. Apenas as histórias do meu avô materno sobre génios e monstros me seduziam.
A poesia surgiu muito subtil na adolescência tal como o desenho, como formas de me refugiar num mundo só meu, uma vez que constatava o enorme paradoxo subjacente à existência humana.
Cedo considerei que acumular objetos pessoais pode ser um veneno difícil de digerir. Tenho horror à acumulação. Fui escrevendo um diário desde os treze anos até aos dezoito, onde aprendi a descrever os meus passos físicos e mentais. Seis anos de escrita intensiva neste período que normalmente é problemático para qualquer jovem, premiou-me com alguma disciplina, capacidade de abstração, espírito crítico e autónomo, evitando os grupos, que considerava ditadores, fosse em que contexto fosse.
Num dia de limpezas mais profundas ao meu quarto, despejei gavetas recheadas de cadernos onde escrevia e acrescentei a resma de folhas de desenhos que ia criando. Preparei uma fogueira no quintal da casa onde vivíamos, por entre as diversas árvores de fruto e vegetais e no mais sentido batimento cardíaco de libertação e desapego, peguei fogo a todos os papéis, inclusivamente livros artesanais que eu própria tinha datilografado e paginado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo de escrita não tem qualquer tipo de stresse. Se sinto que o momento não me dá abertura ao portal de criatividade, simplesmente oriento-me em termos de atividade para outros desafios.
Enquanto me dediquei à filosofia com crianças, num projeto que liderei durante três anos, fui construindo histórias curtas para crianças com idades entre os quatro e os cinco anos, com o objetivo de lhes proporcionar o desenvolvimento da capacidade de questionar, argumentar e criticar. Estas histórias ainda estão reunidas no blogue.
Em termos de pesquisa para a escrita, por vezes reúno uma série de conceitos, como se fossem dados e seguidamente dou-lhes um acionamento caótico de tal forma que posteriormente, ao empreender a exploração conceptual, através da desconstrução, proporcione um encadeamento ou um elo de ligação entre eles. O meu blogue contém alguns poemas originados desta forma. Penso que é sempre um processo dirigido ao mundo quântico, onde a língua aparece limitada e diminuta perante a complexidade da teia energética da invisibilidade. O meu blogue de poesia destaca algumas ideias filosóficas sobre esta problemática.
Senti a necessidade da escrita prematuramente. As questões filosóficas surgiram a partir deste exercício mental, espalhando textos em múltiplos cadernos que fui acumulando durante a adolescência. “O que estou aqui a fazer neste mundo?” Foi uma das questões que precocemente me surgiram com naturalidade. A velha estranheza de mim e dos outros, a problemática do tempo também chegou a ser tema de discussão em grupos de liceu que frequentava. Deste modo a questão da existência humana e suas incongruências foram precocemente temas de reflexão.
A licenciatura em Filosofia neste contexto surgiu como premência incontornável. Na época depositava na Filosofia toda a esperança de encontrar respostas para as dúvidas que me invadiam.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sobre a questão da procrastinação, é com alguma tranquilidade que encaro este simples processo. A minha vida financeira não depende da escrita. Não me considero ao seu serviço. Como tal existe apenas um fluir linguístico que me acompanha ao longo da minha existência como acontecer efémero. Tenho escrito alguns ensaios sobre outros escritores, que estão publicados em algumas revistas online, tanto portuguesas como brasileiras. Admito que gostaria de ter mais tempo disponível para continuar este tipo de pesquisa, mas infelizmente o trabalho no infantário deixa-me sem disponibilidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão de textos geralmente sucede duas ou três vezes antes de publicar. Depois de publicar admito no entanto, que ao ler de novo, me apetece alterar uma ou outra passagem. Geralmente tento desprender-me dessa vontade de fazer alterações.
Infelizmente nunca dou a ler os meus textos antes de os publicar, o que é sempre um risco pois sou uma pessoa muito aérea e distraída e já tenho detectado erros quando vou mais tarde analisar a escrita mais friamente.
Penso que o sentir é comum quando damos por nós a não encontrar palavras que expressem as emoções interiores. Gera-se uma apetência indomável de inventar novas palavras e diferentes registos da língua, o que se compreende que para os mais conservadores seja inadmissível. A verdade é que a língua nunca foi estática. É um processo evolutivo e dinâmico e à medida que a ciência e a tecnologia nos vão bonificando com novos conhecimentos, também aceitamos com eles novos termos. Assim, porque não criar outras palavras para sentires singulares? Neste contexto, entende-se porque um texto nunca estará pronto. Há sempre a probabilidade de ser alterado havendo sempre algo que permanece por escrever.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Em 2008 comecei a publicar alguns textos meus diretamente do computador para as redes sociais da altura, onde também se incluíam os blogues. Quem escrevia trocava impressões e criticávamo-nos mutuamente. Foi um período rico e intenso que me ofereceu enorme prazer e também alguns desafios. O meu primeiro blogue deu origem à minha estreia na edição de um livro. Este, ficou com o título “Grito de liberdade” e corresponde a um tempo de completa afirmação feminina.
Atualmente disponho de menos disponibilidade para passar horas ao computador. O meu dia a dia é passado fora de casa, cumprindo horários complicados de gerir, pelo que me acompanha sempre caneta e papel para que possa eventualmente fazer um registo de um acontecer do quotidiano que provoque qualquer tipo de relâmpago, que possa dar origem à criação de um poema.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As minhas ideias provêm da inquietude, do espanto e da estranheza, que sempre estiveram presentes, mesmo quando contemplava a natureza e as posturas das pessoas em termos éticos, tal como o lado trágico da vida.
Muito antes de entrar em contacto com a Filosofia no liceu e depois na faculdade, já discutia entre colegas a questão do espaço e do tempo num fascínio próprio de quem veio ao mundo e descobre que o que há para conhecer e desbravar é muito mais do que aquilo que vemos.
Sentia um deslumbramento pelo oculto, invisível, campos eletromagnéticos e o mundo atómico.
A licenciatura em Filosofia, aconteceu naturalmente, depositando nela de forma ingénua, a esperança de obter respostas para as minhas dúvidas e questões existenciais. Logo no primeiro ano de faculdade descobri que nunca iria ter respostas definitivas.
Os anos que dediquei ao lecionar, desenvolveram e mantiveram em mim uma certa capacidade de organização mental e durante um tempo funcionou como um rastilho que daria sentido à minha vida.
Infelizmente a crise económica e financeira que ocorria em Portugal nessa altura, provoca o encerramento dos colégios privados onde exercia a docência, o que veio a direcionar-me para o projeto de filosofia com crianças que teve o seu término há uns anos.
Sofri naturalmente influências de alguns filósofos como os pré-socráticos, Sócrates, Platão, Nietzsche e Sartre entre outros.
Procuro manter um espírito aberto e atento, sempre que me é possível, ao que se escreve, vindo das mais variadas áreas da ciência e da literatura. Sou capaz de me refugiar na biblioteca mais próxima do local de trabalho, a meio do dia e escrevinhar frases soltas que acionam em mim, posteriormente outros voos para novas perspectivas.
Também tem acontecido que me surgem ritmos e sonoridades durante o sono, que transporto de imediato para um registo rápido assim que me levanto pela manhã. Tenho poemas que foram criados e escritos em sonhos. O que subsiste através do teclado não será uma cópia fiel do sentir onírico, mas corresponde à descrição possível perante a reminiscência ténue que permanece em mim, quando se dá o salto para o suposto mundo real.
Continuo com curiosidade sobre as pessoas e suas discrepâncias, medos e vaidades, o que resulta em metáforas que se vão expandindo ao longo da minha escrita. A sociedade humana com os seus mecanismos de ataque e fuga, exploração e corrupção também servem de mote à poesia. São, no entanto, as vozes da natureza e do planeta, o respirar das florestas, o cântico dos ribeiros que me seduz.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O meu processo de escrita foi mudando ao longo dos anos. Os primeiros poemas colocavam o eu em primeiro plano. Eram construídos sobre sentimentos de sofrimento, perda, desilusão, contemplação sonhadora e romântica da própria natureza. Deixei há alguns anos de escrever assim. Exceto no meu segundo livro de poesia, “Espírito Guerreiro” com edição de autor, que faz a apologia à vida, dirigida para alguém que perdeu o sentido da mesma. É um estímulo à luta, à ação, mesmo quando se perde tudo o que mais se ama. É um abraço de aconchego para todos os que sentem que têm de reconstruir as suas vidas por outras vias que não aquelas a que se sentiam anteriormente amarrados.
Uma parte da minha escrita de há dez anos corresponde a um sentir com o qual já deixei de me identificar. A minha forma de escrever foi-se gradualmente modificando e será bastante improvável voltar a ela. Mantenho um espírito livre e em rebelião interior constante.
Não será difícil compreender que o diário de rotina da infância, se transforma na poesia, sendo que o intuito permanece o mesmo. Dar sentido ao que provavelmente não terá sentido algum, que é a nossa existência tal como a conhecemos.
Os poemas foram surgindo como forma de revelia, combate à insanidade, à neura, à desilusão, à falta de confiança nas pessoas que me foram sendo apresentadas como bichos de egoísmo e teatralidades, limitadas pela não aceitação do medo invasivo que a todos destrói se não o abraçarmos.
A escrita permaneceu, sendo a única energia lúcida e crítica, que se manteve ao longo de metamorfoses imensas, de rupturas amargas e bélicas, de perdas inevitáveis, que farão parte da vivência de qualquer ser humano.
A poesia nasce como paliativo para a dor gigantesca, de pertencer a um mundo de homens que se assassinam, se servem uns dos outros como instrumentos descartáveis.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Os projetos que tenho atualmente estão relacionados com a edição em livro, de todos os meus poemas que fui acumulando nos últimos dez anos. Fiz já um trabalho de separação temática que originaram várias páginas no facebook. Cada página com um título próprio corresponde a um possível livro: “Luz efémera” e “Para lá da pele”, reúnem poemas mais introspetivos. “Estilhaços no Caminho” e “Ao encontro da Terra”, são respetivamente, poemas cuja temática versa sobre a problemática da sociedade humana e a natureza. O “Espírito Guerreiro”, já editado em livro, adoraria voltar a senti-lo em papel.
Teria certamente prazer em ler um livro que focasse uma orientação humana, num novo rumo, onde a exploração indigna desaparecesse. Para tal teríamos que fazer uma limpeza às estantes e às mentes. Seria um livro que fizesse a apologia dos povos indígenas, da vida, do planeta, denunciando os jogos financeiros que escondem a escravidão humana.
Vão surgindo alguns poetas e artistas contemporâneos que se dedicam a esta denúncia. Muitos poemas meus estão nesta vertente. Um livro decididamente contra o poder, a massificação e as verdades absolutas.
Estamos a construir no planeta Terra, um ninho de podridão. Uma forma simples de o denunciar entre outras é através da poesia. Nunca a poesia esteve tão próxima da ciência e a ciência nunca deu tanto amparo à poesia.
Ao poeta cabe a função de rasgar cortinas, ver por entre o nevoeiro cerrado, desbravar carreiros, construir ligações, denunciar apatias de multidões hipnotizadas pelo deslumbrar contemporâneo dos ícones tecnológicos.
Refrear a avalanche de desrespeito pelo humano e pelo mundo, em nome de um desenvolvimento industrial capitalista, cego à real dignidade das criaturas que povoam o planeta.
A poesia metamorfoseia-se neste contexto, num ritual inevitável, com asas de acesso à energia invisível, mas densamente sentida, quem sabe adquirindo o poder sagrado de transformar o mundo conhecido e desconhecido produzindo centelhas de desafios, experimentando num autêntico regozijo e vida plena.