Ana Maria Lopes é jornalista e escritora.
Maiakovski e Drummond contavam que tinham uma rotina rígida para escrever. Eles acordavam rigorosamente cedo e, após o café da manhã, sentavam frente a maquina de escrever. Mesmo que não houvesse inspiração para tal, escreviam. Isso sempre me impressionou muito. Não tanto por Maiakovski, que fazia poesia engajada, mas por Drummond e vários outros escritores. Essa rotina não combina comigo.
Acordo relativamente cedo, mas não saio da cama até ter visto meus e-mails, recados e checado alguns comentários das redes sociais. Só então levanto, tomo café e vou assumir alguns afazeres domésticos. Nada a ver com literatura. Talvez por escrever basicamente poemas, não tenha necessidade da rigidez disciplinar. No entanto, entre um compromisso e outro, nos lugares e situações mais inusitadas, vem à mente uma frase que posso transformar em verso. Tanto pode ser na academia, no cinema, na padaria, em uma reunião, enfim, em qualquer lugar. Carrego caderninhos na bolsa e no carro. Quando não os tenho em mãos escrevo em guardanapos, lenços de papel, notas de compras, em qualquer lugar. Mas confesso que nunca fiz um poema pela manhã.
Depois de um dia de afazeres domésticos, reuniões de literatura e eventuais compromissos culturais, volto para casa. Amiga dos seres da noite, é a hora em que libero meus anjos e demônios. Reúno as anotações feitas durante o dia, descarto algumas e me agarro a outras. E é na noite – onde o telefone não toca, onde não há demandas, a família dorme e ninguém me solicita – que escrevo. Curiosamente, a inspiração vem. Consigo ter bons achados poéticos, imagens fortes e férteis. Meus melhores poemas foram feitos durante a madrugada.
Não persigo metas nem escrevo todos os dias. Deixo que a poesia me surpreenda. Eu não a procuro. Ela é que, na maioria das vezes, me chama e me impele a escrever. Ela manda em mim.
E ela surge dos/nos momentos mais diversos. Ao ouvir uma música, ao ver uma cena de rua, ao ler uma notícia de jornal e muitas vezes levada por sentimentos pessoais.
Poesia é uma coisa curiosa. As coisas que existem no mundo e a voz do narrador é que definem a forma poética. Talvez por isso, a subjetividade seja o forte de todo poema. Cada um de nós apreende na palavra o seu aspecto pessoal, aquele que particularmente lhe interessa.
Eu escrevo apenas pelo prazer de escrever. Escrever, para mim, é a busca do entendimento do mundo e de mim própria. Clarice Lispector dizia que escrevia “como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente minha própria vida”. Assim também penso e vejo na poesia uma tábua de salvação.
Muitas e muitas vezes, a inspiração desaparece. É o que eu chamo de entressafra poética. No início isso me apavorava e eu acreditava ser uma poeta de “fim de semana”. Aos poucos fui aceitando esses momentos onde a criatividade parece adormecer. Aceito porque sei que ela volta e volta com força total. E surge uma enxurrada de poemas num arrebatamento intenso, uma sensação de pertencimento ao mundo poético. E esse momento de fertilidade é muito bom.
Os poemas brotam nas noites insones. Reviso-os pouco, mas sempre os submeto a um querido e dileto amigo, Alberto Bresciani, poeta de primeira grandeza. Como sempre redijo à mão (tenho fascinação por canetas), passo-os para o computador para enviar para ele.
Eu não me lembro de quando me reconheci escritora. Esse hábito e esse amor à escrita e à língua portuguesa veio do berço. Meu pai era cirurgião-dentista e um excelente professor de português. Recebi dele as primeiras aulas e os primeiros livros. Aos poucos, fui escrevendo e ele me orientando até que eu caminhasse com minha própria perna – ou pena.
Meu primeiro livro solo, Conversa com Verso, foi um parto doloroso. Adepta de poesia confessional, o medo da exposição me travou muito antes de colocá-lo no mundo. Risco, meu segundo livro, ainda manteve uma linha confessional, mas com menos rigor e mais liberdade de estilo. Mar Remoto, já possui uma voz narrativa diferente, uma carpintaria que leva a linguagem a outras fronteiras.
Do primeiro ao terceiro livro, passando por várias antologias, e-books e publicações em blogs, eu senti uma diferença profunda na minha escrita. Talvez fruto do amadurecimento, das vivências e influências de leituras. Hoje, ao ler Alberto Bresciani, Angèlica Torres Lima, Ana Martins Marques, Eucanaã Ferraz, Ronaldo Costa Fernandes, Margarida Patriota, Adriane Garcia, Matilde Campilho – para falar apenas de alguns poetas contemporâneos – sinto que tenho muito caminho a trilhar. Mas vou seguindo.
Quanto a projetos atuais, a “menina dos olhos” é o Selo Editorial Maria Cobogó. É um coletivo que congrega sete escritoras de Brasília que tem por objetivo dar visibilidade à literatura de qualidade feita no Distrito Federal. Lançando inicialmente sete livros, o selo e um site, pretendemos ultrapassar os muros que isolam os escritores do nosso DF. Queremos que poetas, romancistas, escritores de contos e crônicas de nosso quadrado sejam expostos nas grandes livrarias e circulem no eixo Rio-São Paulo e em todas as regiões do país. Vamos lutar por isso.
Outro projeto, que demandou uma pesquisa extensa, é um romance histórico sobre as mulheres na Guerra do Paraguai. Durante essa pesquisa consegui retirar da literatura sobre a Grande Guerra um elenco de mulheres fantásticas que participaram desse que foi um dos episódios mais sangrentos da América do Sul.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Um novo projeto exige pesquisa. Como pesquisa não acaba, delimito o tempo histórico e separo todo o material. Há uma ideia inicial sobre o quê escrever, mas o exercício da escrita é curioso e simplesmente fascinante; os rumos se alteram, os personagens parecem ganhar vida própria e o desfecho acaba sendo completamente diferente do que se imaginou. Comento sobre isso porque estou vivendo a aventura de escrever meu primeiro romance. Saí da minha zona de conforto, que é a poesia, para me dedicar a escrever um romance histórico sobre as mulheres na Guerra do Paraguai.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Quando eu só escrevia poemas, o processo criativo era diferente. Deixava a inspiração reger meus horários. E para isso não havia horários ou disciplina. Já na escrita do romance, tento ser mais objetiva e determino um ritmo de trabalho mais rígido. Começo a escrever no meio da manhã até às 14 horas. Muitas vezes retomo a escrita do meio ao fim da tarde. Mesmo assim, esses horários não são metas fechadas. Atendo os apelos da vida – família, amigos, trabalho com o Coletivo Editorial Maria Cobogó – etc. Projetos andam juntos e dificilmente um atrapalha o outro. Edito um blog do Coletivo : www.mariacobogo.com.br com textos semanais e estou participando, junto com a jornalista Marcia Zarur, de um projeto chamado Mestres Cobogós. Paralelamente, o Maria Cobogó nos leva à feiras literárias (FLIP, FLIPOÇOS, MULHERIO DAS LETRAS, etc), a editar novos nomes da literatura brasiliense e a participar de rodas de literatura e clubes de leitura.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Escrevo para existir. Não consigo imaginar minha vida sem a escrita. Por meio dela exerço muitos papeis. Exponho minhas dores, amores, angústias existenciais e, ao mesmo tempo reforço a tese de que a literatura é meio de resistência, de combate às trevas, de denúncia. É um elemento transformador também. Amplia horizontes, molda personalidades, mexe com as emoções.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
No início tudo era indefinido. Escrevia como queria ou sentia. Aos poucos fui elaborando mais os pensamentos e os poemas pareciam estar entrando em ordem. Depois veio a descoberta das várias vozes que existiam em mim. Tentativas, erros e acertos foram definindo minha literatura hoje. Mas acredito que ela não é estanque. Está sempre em mutação e isso é o me mais me instiga a escrever – a descoberta do que há por vir. Quanto a referências, Clarice Lispector sempre esteve na ponta. Ana Cristina César, Sophia de Mello Breyner Andresen, Wislava Szymborska, Ana Martins Marques, Matilde Campilho e, lá atrás, Anna Nogueira Batista, avó de meu marido e que foi uma pioneira nos 1800 ao se revelar poeta e a criar um jornal – O Pão – dentro de um movimento literário chamado “Padaria Espiritual”.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
O Apanhador no Campo de Centeio – J.D.Salinger ( criou um dos personagens icônicos do século XX).
Fundamentos de Ventilação e Apnéia – Alberto Bresciani ( subverte a escrita e cria imagens fantásticas com grandes achados literários).
Carta a D. Uma História de Amor – André Gorz (Tentar dizer o que mais gosto neste livro é difícil. O livro todo é belíssimo e comovente).