Ana Luiza Rigueto é poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Uma das razões para eu me levantar é o café da manhã e tenho alguns caprichos aqui: tomar um suco forte com coisas que jogo no liquidificador, moer meu café, fazer meu ovo mexido. Como atualmente vendo minha mão de obra fazendo o que chamam “design de conversas” – basicamente escrever conversas de chatbots – e preciso estar presencialmente em um coworking às 10h, poderia ser mais objetiva nessa parte do dia. O que quase nunca me acontece. No mundo ideal, me levanto às 6h, como uma banana enquanto vou pra academia.Volto, tomo banho e um café lento desses que mencionei enquanto converso com minha família pela casa ou pela cozinha e arrumo minha marmita. Mas na realidade eu oscilo entre isso e me demorar demais na cama e só tomar banho e meu café. Ou faço tudo e me atraso. Saio de casa e ando 15 minutos até o ponto do primeiro ônibus. Depois pego o segundo, para o Humaitá, onde trabalho. E ando mais 10 minutos até o escritório.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Depende. Se eu preciso escrever algo como um trabalho acadêmico, por exemplo, sinto que a coisa começa a fluir no limite dos turnos – da passagem do meio para o final da manhã quase o almoço, do meio da tarde para o início da noite e da pré-madrugada pra madrugada. Me sento com computador, caderno para notas, livros de que gosto e que talvez precise para consulta, faço algumas leituras em voz alta, vejo entrevistas, ouço música.
Pra poema é diferente, tenho menos ritual. Geralmente só preciso ter alguma coisa na mão pra escrever. Tenho escrito bastante no celular enquanto vou ou volto de algum lugar. Escrevo muito no ônibus, andando na rua, em filas, esperando almoço ou café. Em suma, nos intervalos ou quando preciso percorrer distâncias. Mas às vezes, em casa, pego um caderno grande e bonito, uma pilha de livros e espalho onde possa ficar sozinha, à luz do dia ou do abajur. Nesse caderno, geralmente não são poemas, é minha autobiografia. Mentira, são só notas pessoais. Mas que acabam sendo um campo de elaboração e pesquisa que posso aproveitar nos poemas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Geralmente escrevo em períodos concentrados e não tenho uma meta diária de escrita. Mas esses jogos são bons. Digo, auto proposições ou uma rotina mais ou menos criada. Há uma diferença de como começo a escrever movida por uma meta e movida por uma vontade repentina, uma ideia, uma melancolia, que seja. Quando a escrita é espontânea, parece instada por uma presença, e também uma fúria. Na meta há uma insistência, talvez maior necessidade de preâmbulo, deambulação – a fúria vem no meio. Mas as duas maneiras podem ser igualmente imprevisíveis, é quando a coisa vai bem. Em suma, escrevo por períodos concentrados, nem sempre todos os dias (mas quase) e sem metas diárias.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Estou respondendo a essas perguntas no ônibus, indo encontrar um amigo de quem gosto muito, que também é poeta, e essa é uma das infinitas formas de começar. Eu poderia ficar empacada tentando encontrar o jeito ideal de balancear como, na maior parte do tempo, tenho ou não dificuldades para começar. Digo, existe um equilíbrio tenso nos começos. Mais ou menos como se levantar pela manhã. A primeira palavra que se escreve é a sola no piso. Ninguém fica pensando muito em como encostar o pé no chão. Só sabe que adiante, se tudo der certo, vai passar o café, escovar os dentes, tomar banho ir ao trabalho. Quer dizer, começar a escrever é um instante que precisa ser vencido. A pesquisa foi feita no dia anterior e no anterior e na noite de sono etc. e agora é preciso então começar. Conforme continua, essa é a passagem da pesquisa para a escrita. O que quis dizer é que é preciso uma espécie de abandono para os começos, e isso não tem a ver com fazer de qualquer modo mas aceitar o risco. Ah sim, o que você acumulou, a qualidade de suas notas, vai fazer diferença.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É cíclico ter de lidar com “travas” ou ter períodos de silêncio. Acho que quando a coisa empaca é bom aguçar a paixão, mobilizar um afeto. Nem que seja indo ler uma outra coisa, ouvir uma música muito alegre ou muito melancólica, admitir uma saudade. De modo geral, ir ao encontro de algo. Mas também lido procrastinando, sentindo medo, trabalhando, escrevendo qualquer coisa ou não escrevendo, indo pra rua de dia.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso até que eles me pareçam lisos feito uma torta coberta de ganache. Devo ler e não achar truncado ou tedioso. Deve escorregar e prender, ter sulcos. Voltar ao texto é bom. Releio algumas vezes imediatamente após escrever, no dia seguinte e semanas ou meses depois. Se o texto me incomoda ou dá preguiça depois de alguma insistência, descarto. Se em voz alta não encontro algum tipo de música, também deixo pra lá.
Mostrar pra outra pessoa é um jeito de testar o poema. Às vezes só de saber que alguém está lendo, o texto já muda pra você. Uma visão de confiança de quem conheça sua escrita serve pra te confirmar ou não te deixar passar vergonha. Até a revisão mais impessoal pode trazer insights muito bons. Nem tudo serve mas se deve escutar tudo. Comecei a ter isso depois de participar de oficinas de poesia. O experimento de acreditar nos outros e desconfiar do próprio texto é bem útil – mas deve ser temporário. Depois você que se resolva com seu poema.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho escrito pouco no computador, muito porque o trabalho já me exige ficar na frente da tela muitas horas por semana, quando posso, prefiro estar com a cara, as mãos e o tronco mais distraídos, ou variar o foco. Mas o computador é o lugar da revisão e da leitura cuidadosa. Tenho escrito muito no celular, que é um jeito de conseguir fazer isso em mais momentos do dia, e guardar. Nem sei se é bom porque às vezes fico com a sensação de não parar pra escrever em casa ou no computador, só esperar estar com o celular. Como se meu corpo agora precisasse enfrentar distrações, a minúcia dos dedos, um foco estreitado para querer escrever. Um fetiche da dificuldade, vai saber.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Sei lá. Talvez venham de insistir e recomeçar. Permanecer e ir embora. Certo movimento entre a espera e a busca. Quer dizer, da vida prática. E não tenho um conjunto de hábitos, mas acho que o estudo, as atividades do corpo e o convívio são meios de manter uma alegria necessária à criatividade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que houve um espessamento do corpo. Passagem da escassez de operar na aparência do poema para um modo de implicar o corpo no processo da escrita, que é contínuo e se relaciona com a constituição do desejo.
Diria assim: já pode parar de fingir que não é com você, querida.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um livro de receitas muito simples e sem sentido prático. Um livro anti-receitas, com sentido prático, cheio de complexidade.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Em geral, surge algo de um exercício ou leitura. É um descontínuo: ir com o desejo até um ponto, que dá em outro, que precisa ser melhor cuidado, revisto, mensurado. E a coisa vai se ramificando ou condensando. Até que não avança mais. Mas geralmente não formulo um projeto, surge uma coisa que se liga a outras ou desencadeia um projeto primário que provavelmente vai se transformar no meio.
Sem dúvida escrever a última frase é o mais difícil. Finalizar parece que carrega uma responsabilidade maior. Imagina, já teve todo um desenrolar, uma história. É tipo uma relação. Vai terminar de qualquer jeito? Não dá. Vai terminar com chave de ouro, pompa? Também não, não precisa tanto. A última frase tem alguma coisa de corte lacaniano.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Quando não há nada urgente, tenho preferido deixar a manhã para coisas com tempo longo, tipo café da manhã, atividades físicas, distrações na TV ou no Twitter, alguma leitura. E depois do almoço vou ao computador ver os e-mails, ler teoria, pesquisar e resolver os compromissos com prazos. Nesse tempo também tenho me organizado para fazer exercícios de escrita, usando ou não algum disparador, um comando ou proposição.
Prefiro ter coisas simultâneas a fazer, que é quando preciso me organizar melhor e aproveito mais o tempo. Sou menos metódica do que gostaria, mas tentando melhorar.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Tem uma energia no fazer de certos médicos, professores, garçons, cozinheiros. Por exemplo, a maneira como se atentam aos sintomas do paciente, a disposição de ensinar sempre e melhor a seus alunos, a hospitalidade em gestos necessários ao balcão com clientes, a preocupação ao manejar os ingredientes da comida. Uma presença muito simples e precisa. Alguma hora eu entendi que quando eu ia escrever um poema, um ensaio, editar um texto, e me colocava a trabalhar nessas coisas, um estado discreto de interesse só acontecia (penso que talvez isso seja uma das definições possíveis para amor). E acho que ter isso em algum lugar da vida é uma boa motivação.
Foi com desconforto que atravessei a formação em Jornalismo. Achava que “gostar de escrever” justificava estar ali, só que alguma coisa não batia. Devia ser a parte de descrever e repetir os fatos. Saí gostando tanto de escrever sobre fatos que meu trabalho de conclusão de curso foi um videopoema. No ano seguinte, 2018, comecei a fazer oficina de poesia, sem nenhuma grande pretensão, só não sabia mais pra onde ir mesmo. E me vi muito interessada por aquilo que acontecia quando eu escrevia, lia os outros e com os outros, conversava sobre aquilo. Vi que a escrita era um trabalho mesmo, as pessoas faziam valendo. Aí depois de um tempo só achei que eu preferia fazer aquilo às outras coisas que eu já tinha feito antes.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Nunca parei pra pensar nisso. Mas existe um sentido pelo ritmo que procuro cavar. E certas coisas que eu ia gostando de fazer, meio sem consciência. Fui me apropriando de algumas, as que pareciam valer, e descartando as que eram só escora. Acabei chegando a alguns lugares, que não sei se eu chamaria de estilo próprio.
Não diria que houve uma autora que influenciou mais que outras. Sei citar algumas que me causaram impacto forte no primeiro contato. Lá atrás teve a Matilde Campilho. Uma época eu só ia pra rua, viajar, fazer qualquer coisa, com o Jóquei na mão. Parecia que alguma coisa ali me ajudava a recuperar uma vitalidade, a saber que as coisas podiam existir de outro jeito. E acho que isso de alguma maneira ficou. Uma vontade de animar o mundo. Depois fiquei muito tempo sem ler poesia contemporânea. A Virgínia Woolf me deixou perplexa com o Mrs Dolloway, aquela continuidade meio distraída. E depois que comecei a ler sobretudo poesia contemporânea lusófona, teve a Annita Costa Malufe, que me deixou muito impressionada com a maneira de ligar palavra a palavra e criar um ritmo muito preciso. A Ana Martins Marques com uma clareza lírica que gera surpresas, inversões de que gosto muito. Tem também a Adília Lopes, de quem me sinto íntima e nem é esse o nome da mulher. Tem ali um cotidiano deslocado, umas ambivalências, um deboche discreto. E tem a Anne Carson, que é canadense, me deixa sem palavras.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
“Autobiografia do Vermelho”, da Anne Carson, que é um livro híbrido, tem entrevista, poema, ensaio. É lindo, lindo. Dela também recomendo a tradução de Antígona, que é uma tradução experimental, muito muito potente. A Antígona “autônoma”, “autárquica”, “autodidata”, segundo Creonte, e que não nasceu para o ódio. E o terceiro, um do Giorgio Agamben, chamado “A aventura”, que é muito sobre desejo e coragem.