Ana Luiza do Valle é doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na FFLCH/USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em geral, tento inserir na parte da manhã atividades burocráticas ou que não estão ligadas ao trabalho – como cuidados com a casa ou comigo mesma (aí entram os exercícios físicos ou cozinhar, por exemplo). O ideal é que eu tenha uma distribuição clara de tarefas ao longo da semana, mas a verdade é que a rotina de cada dia pode diferir muito da dos outros. Isso muda de semestre para semestre, conforme eu tenha ou não algum projeto de extensão, disciplinas, estágio, compromissos regulares no campus. Tento ter uma visão macro de todas as tarefas da semana no início do semestre e distribuí-las de forma a equilibrar, dentro do possível, atividades domésticas, pessoais, burocráticas e acadêmicas. É claro que esse planejamento nunca é seguido à risca, mas a tentativa é, por exemplo, de manter sempre uma atividade física no mesmo horário duas ou três vezes na semana pela manhã, seguida de um tempo para responder e-mails, fazer algo no banco, preencher algum formulário, fazer inscrição em evento, escrever relatórios que são mais burocráticos/pragmáticos etc. Nos dias sem atividade física matinal, o que funciona bem é ter, na noite anterior, um horário limite em mente para chegar até determinada biblioteca e trabalhar de lá. Trabalhar em casa pela manhã em atividades de escrita raramente funciona para mim (pode funcionar na casa de um amigo ou na biblioteca, mas ainda assim a manhã não é meu horário mais fértil).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Depende do tipo de trabalho. De manhã, funciono bem para atividades burocráticas como as que descrevi na primeira resposta (e-mails, formulários, inscrições etc). Também consigo usar as manhãs para leitura, embora prefira o período da tarde. Para a escrita em si, com certeza o período ideal é o da noite – e quando preciso escrever algo com prazo limitado, por vezes me organizo para acordar mais tarde e assim ficar acordada até mais tarde sem tanto prejuízo às horas de sono. Como nem sempre as noites disponíveis são suficientes para a escrita que se precisa entregar, o período da tarde também pode ser utilizado para escrever – o mais difícil, com certeza, são as manhãs – razão pela qual as ocupo com outras tarefas – salvo quando já estou escrevendo há alguns dias. Nesse último caso, após dormir depois de escrever bastante, pode ser que eu acorde motivada a finalizar o texto. No entanto, com relação a prazos muito curtos ou muitos dias de improdutividade, prefiro passar a madrugada escrevendo e dormir com o dever cumprido do que acordar muito cedo para escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados e tento criar metas de leitura diárias – que variam de acordo com as outras atividades a realizar no mesmo dia, com o grau de dificuldade do texto e com o interesse dele para o meu trabalho. Há textos que demandam uma tarde inteira para cinco ou dez páginas, enquanto outros permitem uma leitura mais fluida, de dezenas de páginas de uma só vez. As leituras mais rápidas podem ocorrer quando o texto é de fácil apreensão, ou quando não se espera da leitura o desenvolvimento de um raciocínio específico ou a compreensão de uma teoria complexa, e sim uma noção geral de contexto, por exemplo. Leituras de obras literárias, que são meu objeto de estudo, também podem variar entre análises minuciosas frase-a-frase ou uma leitura ou mesmo releitura geral apenas para retomar o contato e possibilitar novas ideias e percepções a respeito daquela obra ou autor.
O importante sobre as metas – de leitura ou de escrita – é que elas sejam de fato viáveis. A depender de como forem minhas tarefas e prazos, posso passar meses antes de escrever uma linha, e escrever um artigo de quinze ou vinte páginas em dois ou três dias. Para textos maiores, capítulos da tese etc, o processo é um pouco diferente, mas, no meu caso, sempre há um período largo de leitura e anotações que precede qualquer movimento de criação.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sou bastante analógica com as leituras e anotações, mas na hora de escrever, prefiro ir direto ao computador salvo raríssimas exceções em que tenho algum bloqueio forte e volto ao papel para tentar criar mapas mentais e organizar ideias. Tenho muitos cadernos em que tento organizar as leituras de forma a facilitar não só a busca por informações ali anotadas no futuro quanto o peso que preciso carregar quando trabalho fora de casa. Assim, posso ter um caderno para o estágio docente, outro para as disciplinas, outro para o referencial teórico da tese e um quarto para anotações sobre os meus objetos de estudo específicos. O caderno do referencial teórico me acompanha desde o processo seletivo e a primeira escrita de pré-projeto – ideias iniciais valiosas estão ali e são resgatadas e reelaboradas de tempos em tempos. Por vezes, dois ou mais desses temas podem se agrupar num mesmo caderno para evitar que eu carregue tanto peso quando trabalhar fora de casa – que é o que prefiro.
A leitura é totalmente parte do processo de escrita, talvez a parte mais importante. Procuro identificar os temas sobre os quais preciso ler antes de começar a escrever, anoto no caderno sempre as datas das leituras (isso ajuda muito a reencontrar as notas depois) e a referência bibliográfica completa de cada texto lido antes das notas sobre ele (isso ajuda quando você já está exausta ao final da escrita e ainda precisa pensar em ABNT). Minhas anotações são, essencialmente, cópias de trechos do texto e ideias que tenho a partir deles ou correlações que fiz com leituras prévias, anotações e aprendizados de aula ou com meu objeto de estudo. Por vezes, na hora de começar a escrever – por exemplo, um trabalho de aproveitamento de disciplina – releio todas as anotações do semestre destacando com um marcador ou marcando com um post-it os trechos que serão úteis para aquele artigo, que esclarecem determinado conceito etc. Quando finalmente li vários textos, reli anotações, marquei correlações, a escrita costuma fluir de forma tranquila. O desafio dessa etapa é criar uma estrutura para o texto – a partir de que gancho vou iniciar meu argumento? Quais daqueles teóricos provavelmente vou citar? Quais trechos das obras literárias servirão de base para as análises propostas? Pensando em perguntas como essas, crio uma estrutura em tópicos que orienta a escrita – mas não a limita, então pode ser modificada ou mesmo descartada ao longo do processo. Geralmente, após a escrita dos primeiros parágrafos ou páginas, percebo que falta a leitura ou o aprofundamento sobre algum tema que eu não tinha me dado conta de que seria (tão) importante. Nesse caso, volto aos cadernos, aos textos, repito o processo de anotar e destacar o que será mais útil e retomo a escrita.
Questões práticas: comprei um suporte para o computador ficar mais alto, com um teclado e mouse à parte, tenho uma cadeira que não permite que coloque os pés no chão enquanto estou sentada, então uso uma caixa como apoio para os pés, mantendo a coluna mais ereta. Tudo isso por indicação do fisioterapeuta após várias dores por escrever em posições desconfortáveis. Também aproveito os momentos muito intensos e longos de escrita para manter minha hidratação: água e chás sempre ao lado do computador, o corpo agradece. O ideal seria fazer pausas a cada duas ou três horas para comer e alongar pelo menos uns cinco minutos – nem sempre consigo cumprir isso, mas quando consigo, sinto que ajuda muito também. Para os trabalhos de longas horas de escrita, é interessante fazer um exercício físico leve antes – como uma caminhada – que ajuda a manter a disposição, e é legal comer algo com açúcar em alguns momentos do processo, como um bombom, um doce pequeno etc (dá um pico de energia que pode ser muito proveitoso. Mas com moderação, porque do mesmo jeito que a energia sobe, ela baixa depois de algum tempo).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Penso que os maiores inimigos da escrita são a ansiedade e a culpa por não ter escrito, lido ou pesquisado o suficiente no tempo previsto. Para tentar combater, penso que é muito importante se manter conectada a uma rede de suporte – e é bem legal ter nela tanto amigos que são acadêmicos e enfrentam os mesmos dilemas que você, quanto os que não são e vão adorar falar sobre outros assuntos. Para evitar a procrastinação, me ajuda muito estar em ambientes propícios à concentração como uma biblioteca ou a casa de um amigo que também está trabalhando na sua tese. Combinados internos ou com amigos também ajudam a controlar, por exemplo, o excesso de tempo nas redes sociais – “posso usar o Facebook por dez minutos depois que eu cumprir uma hora de leitura” pode ser um combinado interno simples que ajuda. Muita gente usa o método pomodoro, de fazer ciclos de 25 minutos com intervalos de 5 minutos e depois de determinado tempo, fazer pausas maiores que servirão para refeições etc. Gosto desse método e de pequenos combinados inspirados nele. Marcar hora para começar a escrever – e nesse momento colocar o celular em modo avião – funciona em muitas situações para mim. Mas, quando a trava não é só sobre procrastinação e sim sobre uma dificuldade de concatenar ideias, minhas saídas são outras: às vezes é mais fácil falar do que escrever, então ligo para um colega da área (ou não!) e converso sobre o tema, ou simplesmente gravo um áudio no WhatsApp que me ajuda a organizar internamente as ideias e, de quebra, possibilita intervenções e contribuições dos colegas com quem compartilho. Por vezes, tento usar novas formas de organizar as ideias, criando mapas mentais no chão ou na parede com post-its ou cartolinas, ou escrevendo em lugares diferentes, como na grama de um parque, para inspirar (mas, como essas opções dão trabalho, gastam material, tempo, deslocamento etc, elas são usadas em situações de emergência, quando já tentei todas as anteriores).
Com relação a projetos longos, o foco são as metas pequenas e realizáveis, mesmo que às vezes elas pareçam fáceis demais. A sensação de meta cumprida ajuda a ter ânimo para aumentar um pouco a próxima, ou simplesmente ultrapassar a meta sem precisar pensar muito nesse mecanismo. Se tenho vários artigos a escrever ou estou pensando na organização da tese como um todo, listas me ajudam a organizar os tópicos que preciso cobrir e as leituras que preciso fazer a respeito. Crio um cronograma de leituras de longo prazo e tento dividi-lo em metas menores ao longo do tempo e focar nelas. Por vezes, as leituras levam a outros caminhos e alteram o plano inicial: tudo bem! A ideia não é ter um roteiro rígido, mas algo que ajude as ideias a saírem do papel e a pesquisa a ficar consistente e bem-feita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quantas vezes eu reviso depende muito de quanto tempo antes do prazo eu termino e do quão satisfeita eu estou com cada trecho. Releio muito o texto durante o processo da escrita, avaliando se preciso amarrar melhor um parágrafo, incluir alguma referência, aprimorar a linguagem ou a concatenação das frases etc. Ao final, gosto de fazer pelo menos duas leituras: uma logo que acabo e uma depois de alguns dias ou pelo menos horas sem abrir o arquivo. Isto porque reler o texto com um olhar fresco e, de preferência, descansado, pode trazer muitas melhorias a ele. Gosto muito de mostrar os trabalhos, desde o início do processo, para outras pessoas: adoro quando amigos – da área ou não, a depender do propósito do texto e da minha ansiedade no momento – têm disponibilidade para ler, fazer comentários, sugerir leituras. E gosto igualmente de ser leitora dos meus colegas, faço isso com muito prazer, então considero a troca equilibrada e saudável. Nem sempre alguém da rede tem tempo de ler tudo antes que eu publique ou entregue, mas ler um parágrafo, conversar sobre ele ao telefone ou num áudio de WhatsApp muitas vezes é mais do que suficiente para me ajudar a desbloquear uma ideia ou simplesmente ficar mais segura com o artigo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como comentei em perguntas anteriores, sou analógica na leitura e tecnológica na escrita. Bom, “tecnológica” não é bem a palavra, pois não uso nada rebuscado, aplicativos específicos. Só o bom e velho editor de texto mesmo. À mão em vários cadernos ficam as notas de leitura, que podem se converter em arquivos no computador se eu sentir necessidade de organizá-las antes de começar a escrever (esse último caso é mais para quando eu acabei de ler mas ainda não tenho clareza de como será a espinha dorsal do texto. Então ganho tempo transcrevendo os trechos e notas para o computador, porque é uma forma de relê-los e manter o processo ativo sem tanto cansaço mental, já que é uma tarefa mecânica). Tentei usar fichamentos eletrônicos, já me sugeriram aplicativos, mas gosto mesmo é dos meus cadernos, post-its, canetas e marcadores.
Uso mais a tecnologia como apoio: já usei o aplicativo DeskTime para me policiar sobre quanto tempo passava em redes sociais e quanto tempo escrevendo, por exemplo. Uso muito o Facebook para pedir textos que não encontro sozinha ou perguntar se algum amigo está disponível para conversar sobre determinado tema de pesquisa (e as pessoas da minha rede são super responsivas, é uma troca maravilhosa). Leio muitos textos online (anotando no caderno ao lado do computador) e uso áudios no WhatsApp com muita muita frequência como organizadores de ideias.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Pergunta difícil! Não sei bem se existe uma fórmula ou segredo, mas pensando nos meus hábitos, gosto de manter sempre em diálogo com vários pesquisadores e várias teorias, se possível de áreas diferentes do conhecimento e também de sempre ler alguma literatura que não tem nada a ver com a minha pesquisa. Se estiver muito sem tempo, posso ler esses livros só enquanto estou no metrô, por exemplo (quando também é um momento legal para ouvir podcasts que discutem atualidades e em que podemos exercitar nossa capacidade de análise, de percepção sobre argumentação, construção de hipóteses etc). Minha tentativa é ler pelo menos um livro “de descanso” por mês (e ele não precisa ser tão de descanso assim, só precisa não ter relação com a tese). Às vezes consigo, às vezes não, raramente ultrapasso essa meta, mas estou confortável com ela (ah, ela não inclui os livros infantis muito curtos, que são muitos, pois uso em trabalho voluntário). Penso que é legal incluir passeios diversificados nos períodos de descanso, como idas a museus, filmes variados, rodas de conversa, esportes, natureza – vai depender muito das possibilidades que a região de cada pessoa oferece.
Acho importante cuidar da saúde e se dar momentos de descanso e de autocuidado que realmente não tenham relação com a tese, além de ficar de olho na alimentação, hidratação e postura durante o período de trabalho. No mínimo, um dia de folga da pesquisa por semana. Se possível, dois dias inteiros e mais um turno é o que eu acho ideal. Para quem tem alguma religião ou algum ritual de meditação ou algo espiritual, incluir um tempo para isso na rotina é importante pois ajuda a cuidar de algo que é da sua essência e manter o equilíbrio e a noção de rotina. Por fim, contato com crianças, que no meu caso é em família e no trabalho voluntário, me parece algo essencial para manter a criatividade acesa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que o principal é que eu tomei consciência do processo, de como eu funciono e de que certas coisas que parecem aliados serão inimigos e vice-versa. Parar de brigar com o vício em redes sociais e começar a usá-las a meu favor, por exemplo, foi essencial (seja fazendo perguntas em grupos da faculdade, pedindo PDFs, pedindo ajuda para debater um tema ou traduzir um termo ou gravando áudios no WhatsApp enquanto caminho na rua). Ainda estou na escrita da tese, mas se eu pudesse voltar à escrita da dissertação e da monografia diria: “Ana, separa um tempo pra se cuidar, isso não é desperdício de tempo, é investimento e é saúde! Saúde vem sempre primeiro. Não toma esse energético porque ele vai atacar a sua labirintite, compra logo um apoio pra esse computador, que a sua cervical agradece, coloca uma garrafinha de água na mesa. Para pra dormir quando o corpo pedir arrego. Cuida de você”. Tenho um amigo que diz que o corpo da gente é como máquina e que precisamos também deixar a máquina esfriar quando ela superaquece: então, às vezes, dar uma pausa, comer um chocolate, dormir vinte minutinhos, fazer uma refeição com calma, fazer uma caminhada, assistir um seriado, brincar com o cachorro, ligar pra um amigo ou uma combinação de duas ou três dessas coisas é tudo que o corpo precisa pra voltar a te dar energia para escrever lindas páginas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho mais projetos que comecei e não consegui continuar do que que queria fazer e não comecei. Geralmente, eu começo as coisas. E acho que vale a pena, mesmo às vezes quebrando a cara e não indo pra frente. Nessa linha, gostaria de retomar meu grupo de estudos sobre infância e política, meu grupo de estudos sobre exposições e tirar do papel um projeto que comecei com uma amiga, de um curso de extensão sobre museus, literatura e redação para professores de ensino básico. Na linha do que eu realmente não comecei, estão cursos e oficinas sobre os temas que estudo – tenho mais insegurança quanto a montar cursos do que rodas de conversa ou grupos de estudo. Ah, também gostaria de ter um projeto dedicado a estudos de literatura infantil e de literatura sobre a infância ou sob perspectiva infantil – que nem sempre é voltada a crianças. E gostaria de incluir mais pautas de militância social no meu trabalho de forma geral.
Um livro que eu gostaria de ler e não existe? É tão difícil apontar que um livro não existe, na vastidão de possibilidades das livrarias, bibliotecas e internet! Eu gostaria muito de ler um livro que trabalhasse mitologia comparada, aproximando estruturas de pensamento, crenças e explicações sobre o mundo entre alguma(s) mitologia(s) de povo(s) brasileiro(s) e de outros povos (como os egípcios, os indígenas norte-americanos ou incas, maias, astecas etc).