Ana Luiza do Valle é doutoranda em Literatura Comparada pela USP.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
A organização da minha semana de trabalho varia muito de acordo com os projetos em que estou envolvida em cada período. Acabei de montar um cronograma para o mês de fevereiro que está em fase de testes. Na prática, eu sempre faço ajustes nesses cronogramas de acordo com as demandas que surgem ao longo do tempo. Gosto sim, de ter sempre vários projetos paralelos, nem sempre todos de escrita. No momento, equilibro escrita acadêmica, organização de publicação, mentoria, página em redes sociais, voluntariado e estudos de inglês. Uma coisa que me ajuda é pré determinar número de horas por semana dedicado a cada projeto – até para ter mais clareza sobre as prioridades. A partir desse número de horas, e considerando as divisões de tempo relacionadas à rotina da casa, tarefas domésticas etc, eu distribuo as horas pelos dias. Atualmente, uso um planner de mesa semanal que atualizo diariamente com tarefas a fazer e já feitas. No início da semana, distribuo as tarefas pelo planner, e dia a dia atualizo a programação do dia seguinte.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Acho impossível planejar tudo, mas também não gosto do outro extremo de “apenas deixar fluir”. Meu modo padrão de operar com relação a isto é planejar parcialmente, tendo consciência de que planejamentos nem sempre serão seguidos e de que é preciso com frequência “ajustar a rota”. Tenho muito mais dificuldade com a primeira linha do que com a última.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Nunca escrevi um livro inteiro sozinha, mas considerando os textos que já produzi, a resposta é: depende. Gosto de silêncio em alguns casos, de ouvir músicas muito específicas em outros casos (geralmente ouço música logo no início da escrita, a música traz ânimo, adrenalina). Acredito que o que atrapalha mais é conversa, mas tenho uma tolerância razoável, principalmente se eu já estiver imersa na escrita e se for possível usar fones de ouvido para abafar os sons externos e eventualmente ouvir música. É comum ouvir música em outros idiomas, muitas vezes em idiomas que desconheço, para que a atenção à letra não me distraia (não gosto muito de música instrumental, de modo geral). O ideal é ter uma cadeira confortável, apoio para os pés, uma mesa larga e comprida em que eu possa espalhar materiais que consulto ao longo da escrita, um suporte para o computador que protege minha cervical de ter que ficar olhando pra baixo, e teclado e mouse externos por consequência do uso de suporte para o PC (isso porque eu não uso desktop há muitos anos). Também gosto de ter uma garrafinha de água por perto e, se for possível, um difusor de óleos essenciais é excelente. É claro que é perfeitamente possível escrever sem esses aparatos: o que estou descrevendo aqui é realmente um cenário ideal, muito confortável, que mostra o contexto altamente privilegiado em que eu trabalho (mas que deveria ser um direito e não um privilégio, porque não tem nada de luxo, apenas elementos de autocuidado). Gosto também de ambientes compartilhados em que há outras pessoas concentradas em trabalhos de leitura/escrita, como bibliotecas, salas de estudo ou mesmo combinar com algum amigo de estudarmos no mesmo ambiente, ainda que os assuntos sejam absolutamente distintos. Durante a pandemia, cheguei a usar áudios de ASMR de biblioteca, que simulam o espaço da biblioteca com barulhos de digitação e outros ruídos similares, além de combinar com amigos de “estudar por zoom”: câmeras ligadas, cada um ouvindo ruídos do outro lado, com pausas para conversar a intervalos mais ou menos regulares.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Em termos de procrastinação, meu maior inimigo é provavelmente o celular. Uma decisão do final do doutorado foi desinstalar o aplicativo do Facebook e, mais recentemente, colocar um aviso de limite de tempo no Instagram. Em períodos em que preciso de um foco mais constante e em que há uma entrega para um prazo curto, uso o aplicativo Toggl para rastrear por quanto “tempo líquido” estou trabalhando em cada etapa (isto é, quanto tempo de trabalho efetivo, excluindo todas as pausas para água, banheiro, lanches, responder mensagens ou conversar com alguém que esteja no mesmo ambiente presencial ou virtual). Outra coisa que me ajuda muito é o pomodoro, que não sigo à risca, mas faço ciclos de 25 minutos de estudo com 5 minutos de pausa usando algum cronômetro online como o tomato-timer.com. Sobre travar, há várias estratégias distintas, depende da época: às vezes um bloqueio é sinal de que precisamos de descanso, às vezes exercícios físicos ajudam (gosto de tê-los como parte da rotina sempre, mas às vezes é necessária uma caminhada a mais, por exemplo), às vezes reler artigos antes de voltar a escrever resolve. Em outros casos, gravar áudios para mim mesma ou para amigas/colegas da área que possam opinar nas ideias também ajuda a oxigenar. Parar de escrever no computador e ter um tempo escrevendo no papel, rascunhando tópicos, por vezes sentada ou deitada no chão ou simplesmente mudando de ambiente também são estratégias que me atendem. Em situações muito específicas, sinto que o açúcar ajuda a ter um pico de energia, mas acho que isso é algo a se “usar” com muita parcimônia por questões de saúde.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Nos últimos tempos, creio que o que me deu mais trabalho foi um projeto de pós doutorado para um processo seletivo. Eu tive muito pouco tempo para aprender um volume muito grande de metodologias e conteúdos complexos e, em paralelo, organizar minhas ideias sob a forma de uma proposta concreta e detalhada de pesquisa. O resultado ficou acima do que eu esperava e foi aprovado numa fase de pré seleção por uma pessoa que admiro profissionalmente e que tem uma carreira já consolidada na área, então esse é também o trabalho de que mais me orgulho.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Eu não sou uma escritora que escolhe temas para livros, com o foco na escrita em si. Sou uma pesquisadora que escreve artigos, capítulos de livros e projetos de pesquisa a fim de produzir e divulgar conhecimento de diversas formas. Creio que os processos, nesses dois casos (escritora x pesquisadora) são distintos, porque atendem a objetivos distintos. Não sei bem se é a isto que você define como ter “uma leitora ideal em mente”, mas faço o exercício de pensar em quem é o público alvo daquele trabalho e tento mantê-lo adequado em termos de vocabulário, ritmo, referências e tom ao que imagino ser esse público (um projeto para uma banca é diferente de um artigo para uma revista da área, que é diferente de um artigo para uma revista interdisciplinar etc).
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Eu preciso de leitores o tempo todo. Interlocução é vital para o meu trabalho. A única situação em que eu não compartilho rascunhos é se houver alguma restrição por motivos de confidencialidade de dados ou algo do tipo. O meu processo de escrita se beneficia muito de conversas com amigos, tanto da área da Letras quanto de outras áreas, e é comum que eu peça a muitas pessoas para ler e opinar em um mesmo parágrafo antes de me dar por satisfeita com ele. As primeiras pessoas a ler meus manuscritos normalmente são amigos muito próximos que têm uma bagagem acadêmica, muita generosidade para dispor de algum tempo para ler e rigor sem pudores para fazer as críticas necessárias.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Mais uma vez, sinto vontade de diferenciar o meu caso do caso de alguém que é “escritora” como carreira. Eu não decidi que iria me dedicar “à escrita” e sim que iria me dedicar “à pesquisa”, que é algo que se relaciona com a escrita, mas com certeza é um percurso muito distinto do de quem se forma escritor. Decidi que me dedicaria à pesquisa em algum momento durante o mestrado, mas isso envolveu muitos fatores para além da escrita. Sinceramente, não consigo pensar em algo que eu gostaria de ter ouvido e não ouvi. Penso que fui muito privilegiada com uma grande rede de apoio (que também trabalhei para construir e manter, para além do que “simplesmente recebi” em função do meu contexto de origem). Talvez minha principal dica a quem está começando uma carreira de pesquisa seja (não sei se vale para uma carreira como escritora, mas imagino que sim, porque vale para a vida em geral): construa sua rede de apoio. Pessoas nas quais você confia, cujo trabalho e postura profissional você admira e com as quais pode contar tanto em termos de disponibilidade quanto de sinceridade para estimularem você a crescer sem ter receio de fazer as críticas necessárias, e fazendo elogios quando forem pertinentes.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Penso que meu estilo ainda está em construção e que isso, ao menos no meu caso, envolve também os conteúdos com os quais venho tendo contato. Repensar nossas referências em termos estruturais – de uma sociedade que reconhece o trabalho de homens brancos europeus como parâmetro epistemológico e formal – é algo que leva tempo e dá trabalho. A tentativa de não reproduzir preconceitos estruturais certamente é o que me dá mais trabalho – mas também é o que me leva para mais perto dos meus valores, de colocar em prática uma postura ética em que acredito muito. Mais uma vez, entendo que a escrita acadêmica é um nicho específico, diferente de uma carreira de escritora. No entanto, penso que ler estilos de textos variados – inclusive literários – é fundamental para construir um estilo próprio, mapear referências etc.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Posso indicar três?
Dois acadêmicos: Was the cat in the hat black? Philip Nel
Somos mesmo todos censores? Perry Nodelman
Um literário, de contos: Ela queria amar, mas estava armada, da Liliane Prata.