Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer é professora do Departamento de Antropologia da USP e coordenadora do Núcleo de Antropologia do Direito.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu gosto de acordar sem despertador, depois de umas oito horas de sono, preferencialmente por volta das 8h, mas durmo proporcionalmente até mais tarde se vou me deitar depois da meia-noite e não tenho compromissos pela manhã.
Às vezes, quando tenho insônia e me vem à mente ideias ou lembranças que considero valiosas, ou quando desperto e me recordo de um sonho, faço registros em um caderninho ou no celular que sempre ficam ao lado da cama para, depois, surpreender-me comigo mesma.
Logo que eu me levanto, gosto de tomar uma caneca de café com leite, acompanhada de torradas com manteiga, uma fruta e cereais com iogurte, rotina que não me toma muito tempo, mas durante a qual, se estou sozinha, vou pensando, em silêncio, no que farei em seguida. Não costumo ler, ouvir música ou ver TV durante o café da manhã, embora, quando eu viaje, a trabalho ou em férias, goste de apreciar um café da manhã mais lauto e demorado, eventualmente com algum noticiário ou música ao fundo. Em casa, depois que lavo a louça do café, arrumo a cama “do meu jeito” (lençóis bem esticados e presos): acho que esse é o meu TOC. Feito isso, estou pronta para o que der e vier, exceto exercícios físicos “pesados”. Detesto academias de ginástica.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há uma hora do dia em que eu sinta que trabalhe melhor. Posso render bem pela manhã, à tarde ou à noite. O que faz a diferença é eu poder me concentrar em meu escritório-biblioteca. Como isso é mais comum no início da manhã, entre o almoço e a janta e depois das 21h, normalmente é nesses períodos que trabalho melhor. Mas eu me divido entre múltiplas tarefas que me exigem de modos diversos. Algumas podem ser feitas em curtos intervalos, como responder a e-mails e mensagens no celular. Outras, que me demandam mais tempo e concentração, como a leitura ou a escrita de um artigo ou capítulo de livro ou ainda o preparo de uma aula ou palestra, geralmente me fazem arrumar a mesa de trabalho e deixar espaços vazios ao meu redor para que, aos poucos, eu os vá preenchendo com livros e cadernos. Quando eu realmente mergulho em uma leitura ou escrita, o que gosto de fazer sentada à frente da minha mesa de trabalho, só me mexo quando o meu corpo sinaliza que fiquei tempo demais parada na mesma posição. Água, uma chaleira elétrica, chás e uma barra de chocolate estão sempre ao meu alcance.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como acumulo tarefas de docência (preparo de aulas, avaliação de provas e trabalhos, reuniões acadêmico-administrativas, orientação de estudantes de graduação, mestrado e doutorado), de pesquisa (leituras, coleta e sistematização de dados, produção de projetos e relatórios, coordenação de um núcleo de estudos) e de extensão (preparo de palestras e conferências, participação em debates, entrevistas e atividades de difusão cultural) e todas elas exigem leitura e escrita, todos os dias eu leio e escrevo, infelizmente em um ritmo mais imposto por prazos externos do que por pulsões internas. Nas raras ocasiões em que estou livre para imprimir meu próprio ritmo à escrita, costumo me concentrar por horas, durante as quais me esqueço do mundo. Quando faço curtos intervalos, realizo alguma tarefa manual e mecânica para espairecer, como lavar louça, limpar a casa ou cuidar do jardim. Se consigo escrever entre 5 e 10 páginas densas, em um dia, me sinto vitoriosa.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O mais difícil para mim é começar a redigir um texto, especialmente se já acumulei muitas notas e ideias que, todavia, estão esparsas e assistemáticas. Como sou antropóloga e a maioria das pesquisas que realizo envolve coletar dados em interação com pessoas e/ou documentos, tenho muita facilidade para registrar o que observo, o que as pessoas fazem e as conversas que ouço ou tenho com elas. Faço isso em cadernos de campo, com rapidez e detalhamento, organizando cronologicamente os dados e, por vezes, entremeando-os com desenhos. O desafio é justamente começar a transformar esses registros em um paper, um artigo, um relatório ou um (capítulo de) livro. Apesar de eu sempre ter um projeto que guia a minha coleta de dados, o trabalho de campo costuma alterá-lo, de modo que retomar o projeto e os dados envolve a recriação de todo um conjunto. Costumo deslanchar na escrita somente depois de ler e reler minhas notas, pensar no que vi e vivi até descobrir um modo de reorganizá-las a partir de temas, o que, por vezes, me leva a fazer esquemas e fichamentos. Usando a metáfora da tecelagem, quando sinto que o material da pesquisa não é mais um amontado de lã bruta, que ela já se transformou em fios e tenho uma urdidura, então começo a tecer a trama em busca de um tecido que jamais sei, antecipadamente, como será.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido mal, com angústia e uma boa dose de sofrimento. Os prazos costumam ser tanto meus inimigos quanto meus amigos. Eles me ajudam a estabelecer limites, metas, a me organizar, mas justamente porque me pressionam. Como encaro a escrita como um artesanato, não consigo desenvolvê-la mecanicamente. Se estou escrevendo e me interrompo ou me interrompem, o retorno ao ponto em que estava não se dá automaticamente, pois sinto a escrita, ao mesmo tempo, como um meio e um fim: escrever me faz pensar e isso me leva a escrever e a pensar e assim sucessivamente. Certas interrupções, por vezes, acabam sendo produtivas, pois me permitem, ao voltar ao texto, passar com facilidade pelo que antes parecia ser um obstáculo. O problema é que nem sempre o que penso facilmente eu transcrevo e o que escrevo reconheço como um bom registro do que estava pensando. Há um equilíbrio entre o pensar e o escrever que não se estabelece, necessariamente, de modo uniforme e contínuo. Como sou bastante exigente comigo mesma, tanto no que diz respeito ao conteúdo quanto à forma, não raramente um detalhe me faz perder o ritmo, o fluxo, e nele fico por um certo tempo estagnada.
Quando mais jovem, menos experiente e menos autoconfiante, corresponder às expectativas alheias me mobilizava bastante. Hoje em dia, são as minhas próprias expectativas que me desafiam (e elas costumam ser grandes).
Quanto a longos projetos, eu diria que talvez nenhum seja mais longo do que a própria carreira acadêmica em uma universidade pública: desde o ingresso até a aposentadoria há um continuum de exigências, demandas, etapas e cobranças que implicam planejamentos semanais, semestrais, anuais, quadrienais. Como docente e pesquisadora, sempre tenho que atualizar meu currículo, o que me permite ver cada projeto como parte desse conjunto maior que é a carreira construída a longo prazo. Pensar nisso tanto me anima, pois constato que já fiz muito ao longo dos meus 32 anos de trabalho, quanto me desanima, pois em um país como o Brasil atual, docentes e pesquisadoras(es) do campo das Humanidades são, em geral, mal reconhecidas(os) e desrespeitadas(os).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso meus textos inúmeras vezes (fiz isto com estas respostas, por exemplo), pois tenho o hábito, não sei se ótimo ou péssimo (talvez os dois) de voltar frequentemente aos parágrafos anteriores, a medida que avanço, para conferir se as ideias e argumentos estão fluindo bem. Isso significa que, quando chego aos últimos parágrafos, praticamente releio todo o texto várias vezes e, não fosse a necessidade de terminá-lo, não o julgaria jamais pronto, pois sempre é possível reposicionar uma vírgula, mudar um tempo verbal, encontrar uma palavra mais adequada, incluir ou excluir uma frase ou parágrafo. Uma estratégia que adoto (se tenho tempo) é: quando chego a uma versão que julgo completa e satisfatória do que me propus a escrever, “abandono” o texto por pelo menos um dia. Depois, com um certo distanciamento, releio-o e, se sinto que ele fluiu, encerro o processo ou, pelo menos, a fase de submissão do texto à publicação, pois, na área acadêmica, após submetidos, especialmente a revistas, os textos costumam passar pelo crivo de pareceristas que podem sugerir ajustes, caso em que todo o processo é retomado.
Além dessa exigência de submeter textos a pareceristas, também mostro alguns, ainda em produção ou recém-concluídos, aos membros do grupo de estudos que coordeno na USP: o NADIR – Núcleo de Antropologia do Direito. Nos reunimos quinzenalmente para, além de discutir textos de terceiros, colocar em debate os nossos próprios, o que, sem dúvida, é muito enriquecedor. Quem redige um texto é sempre o seu pior revisor, ao passo que novos olhares costumam perceber desde erros banais de digitação até questões relativas à estrutura lógica e conceitual do texto. É preciso ter abertura para ouvir e, depois, incorporar o que contribui para o aprimoramento da proposta.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto muito de escrever em cadernos e blocos usando lápis e/ou canetas, inclusive de diversas cores. Gosto da minha letra, de como fica o desenho de uma página repleta de palavras e, inclusive, gosto de desenhar figuras: flechas, flores estilizadas, formas geométricas, pessoas e objetos. Hoje em dia, contudo, só uso lápis, caneta e papel quando realizo trabalho de campo, participo de reuniões e acompanho palestras, o que muitos(as) colegas fazem no celular ou em um iPad. Porém artigos, capítulos ou mesmo livros escrevo-os diretamente no computador. Por sinal, também leio muitos textos no computador, utilizando as ferramentas que os aplicativos oferecem para grifá-los e neles inserir comentários, o que também faço quando redijo. Continuo comprando e adorando ler livros e revistas em papel, mas também os leio digitalizados, sem problema algum. Acho fantástica, por exemplo, a possibilidade de escrever e ler um texto com hiperlinks que permitem acessar imagens, sons, outros textos, fazendo saltos, avanços e retornos. Aprecio as novas e as antigas tecnologias da leitura/escrita, pois acho que elas oferecem recursos diversos que estimulam o ato criativo de ler/escrever de distintas formas: vale explorá-las e permitir que convivam.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de leituras, filmes, documentários, conversas, aulas e palestras que dou e assisto, de dúvidas e perguntas formuladas por estudantes e colegas, de sensações corpóreas (visuais, sonoras, olfativas, táteis, gustativas), de visitas a museus, caminhadas, enfim, o mundo me enche de ideias. Mas o que eu mais cultivo para me manter criativa, pois é o que mais me atiça, é viajar e fotografar. Sempre amei viajar, conhecer lugares e pessoas através das lentes de uma máquina fotográfica (hoje em dia, uso mais o celular, por praticidade). Flanar, tanto por lugares familiares e próximos quanto desconhecidos e distantes, me instiga e me faz ter insights. Todavia, diferentemente de quando eu era jovem, campista, mochileira, atualmente gosto de viajar com um certo conforto: ter privacidade, uma boa cama para descansar, um banho quente em um banheiro bem limpo, alimentar-me bem. Isso implica gastos e, infelizmente, não tenho condições de viajar assim com a frequência que eu gostaria. Resultado: exploro bastante minha própria casa, rua, bairro, cidade, locais próximos e fotografo tudo o que me chama a atenção: objetos em cima da minha mesa de trabalho, um pôr-do-sol nos fundos de casa, árvores e flores da rua, grafites, portas, janelas e a arquitetura da cidade. Geralmente, tiro fotos quando saio para caminhar, ao entardecer, pois sempre observo algo que me interessa, mesmo em paisagens conhecidas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Apesar de eu ainda me policiar bastante ao escrever e ser muito auto exigente, hoje em dia, superadas as travas iniciais e, por vezes, algumas que se apresentam pelo caminho, eu deixo as ideias fluírem mais livremente do que antes, sem me preocupar demais com, logo de cara, obter um resultado que eu julgue bom. Como eu sei que, a partir de uma certa altura, quando o texto estiver ganhando corpo, eu farei incontáveis releituras, tenho consciência que de nada adiantará eu me policiar demais no começo. É isso que eu me diria se pudesse voltar às épocas em que escrevi minha dissertação de mestrado (quando estava na faixa dos vinte anos de idade) e minha tese de doutorado (na faixa dos trinta): deixe o fluxo da escrita se aproximar ao máximo do ritmo com que as ideias vêm à mente, sem se preocupar com essa ou aquela palavra, com se esse ou aquele parágrafo ficará em determinada posição ou se uma sequência de parágrafos formará um subitem, item ou capítulo. O importante é deixar os fios virarem um tecido. Depois a gente pode cortá-lo, recortá-lo, dobrá-lo e costurá-lo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever um ou mais romances. Tenho um, em mente, desde que tinha 15-16 anos. É uma história que se passa dentro de outra (sem mais detalhes, para não estragar o suspense…). Também tenho o projeto de, quando me aposentar, ter uma papelaria-sebo-casa-de-chá. Já tenho até um nome para ela e gostaria, eu mesma, de trabalhar com papel reciclado e montar agendas, cadernos, marcadores de livros, calendários etc. Imagino que eu me divertiria com todas as fases desse processo criativo, da compra dos materiais à finalização dos produtos, passando pela contabilidade e, especialmente, tendo a oportunidade de observar o entra-e-sai dos mais variados tipos de clientes.
Há um livro que eu gostaria de ler e não sei se existe. Ele versaria sobre formas de vida muitíssimo distintas de tudo o que imaginamos: nada de seres com algum tipo de cabeça, corpo e membros ou semelhantes a quaisquer animais, formas vegetais, bacterianas ou virais existentes na Terra. O mote do livro seria apontar que tais seres, talvez sequer individuais ou coletivos, estariam entre ou muito perto de nós, mas não seríamos capazes de percebê-los, por irem além de nossa imaginação, de nossos sentidos e do alcance de nossa tecnologia. A questão seria como descrever algo indescritível…