Ana Lúcia Merege é escritora e curadora de Manuscritos da Biblioteca Nacional.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu sou uma pessoa matinal. Gosto de me levantar cedo, por volta das 7 da manhã, e aproveitar as primeiras horas do dia para escrever. De segunda a sexta, porém, trabalho na Biblioteca Nacional, por isso em geral o que acontece é que me levanto, faço café e, enquanto tomo meu primeiro desjejum (em geral são dois, sigo a tradição hobbit!), faço alguma coisa relativa à história em andamento, quer avançando um pouco, quer relendo alguma coisa que escrevi nos últimos dias e dando uns retoques no texto. Nesses dias, sempre escrevo á mão, no caderno. Às 8:15, 8:20 já é hora de sair, mas muitas vezes eu escrevo também na barca, a caminho do trabalho. Aos sábados e domingos, quando não preciso sair, procuro também levantar cedo e dedicar a parte da manhã à escrita, no caderno ou direto no laptop.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor de manhã. Não tenho um ritual, o que faço é não olhar de jeito nenhum a internet, nem ligar TV, nem nada que me distraia ou tire o foco da história em andamento. Se escrevo no caderno, gosto de me recostar no sofá da sala; o laptop fica no escritório. E me imponho ficar a manhã toda sem esses estímulos que citei, e também sem ouvir música, enquanto estou trabalhando no texto. Agora, posso escrever em outros horários; se estiver muito embalada posso aproveitar qualquer brecha de tempo para mexer no texto. E sempre, desde que não esteja interagindo com alguém no mundo real ou fazendo algo que exija muita concentração, há uma história rolando o tempo inteiro na minha cabeça.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Procuro não passar nem um dia sem escrever, mas de vez em quando acontece. Minha meta é modesta: 500 palavras/dia. Posso fazer muito mais… mas às vezes faço muito menos. Tudo depende de eu ter segurança de para onde vai a história, de saber como serão as próximas cenas e de não hesitar quando se trata de algo que demanda pesquisa, principalmente nos textos de fantasia histórica.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu tenho algumas coisas já pesquisadas e outras demandas que surgem conforme a história avança. Por exemplo: já tinha pesquisado variantes do mito do Minotauro ao escrever “Os Touros de Creta”, mas, quando a cena foi transportada para o palácio de Knossos, gastei um bom tempo estudando a planta do edifício, artefatos e outras coisas. Frequentemente estou revisando datas, a arquitetura de cidades, lendo sobre costumes, porque, embora se trate de fantasia, o pano de fundo tem de ser consistente. Então, as notas nunca são suficientes… Mas não acho tão difícil começar a escrever um texto, e sim ir em frente com ele de maneira que me pareça coerente, verossímil e ainda interessante para cativar o possível leitor.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que lido com isso como a maioria dos escritores: reconhecendo que não escrever é mais difícil do que lidar com todas essas coisas. E, claro, tenho alguns truques… Quando a escrita de um texto trava, tento me distrair um pouco com alguma outra coisa – leitura, filmes, até escrevendo algo diferente, em outro universo. Posso também fazer alguma outra coisa em relação à escrita: revisar algum texto mais antigo, digitar o que tenho no caderno, escrever textos sobre os universos para o blog ou redes sociais. E falar com amigos, trocar ideias… Contar as histórias que pretendo escrever, ou falar sobre como pretendo escrevê-las, me ajuda bastante a desenroscar aquilo que está travado. Quanto à ansiedade, é como falei no início. Fico ansiosa por achar que não vou dar conta (estou assim em relação a vários projetos), mas mais ansiosa ainda fico se o tempo passa e eu não escrevo. Então vou rodeando, escrevendo outras coisas, e quando menos espero surge uma saída para o que estava travado. Ou não. Tenho que aceitar que alguns não irão para a frente ou, concluídos, não ficarão bons o bastante para publicar. E tenho que aceitar que, uma vez publicados, podem receber todo tipo de crítica. Como eu já disse mais de uma vez, publicar é dar a cara a tapa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende. Houve textos que revisei muitas vezes, outros foram de primeira. Não mostrei a ninguém meus livros O Caçador, Pão e Arte e Os Contos de Fadas antes de mandar para as editoras. Atualmente mostro os textos mais longos para pelo menos três pessoas antes do editor, mas, embora eu ache que poderia ter me beneficiado de leitores beta também nesses casos, devo admitir que alguns contos mais curtos saíram em coletâneas sem que ninguém além de mim (e o organizador, claro) os tivesse lido.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou um dinossauro no computador. Só sei usar o Word (mais ou menos), redes sociais e alguns recursos simples. Blog eu só tenho porque a interface hoje em dia é muito simples de usar. Em geral escrevo à mão, mas escrevi alguns textos mais curtos direto no laptop, e algumas partes dos mais longos também.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Faço o que fiz a vida toda: leio (de tudo, não apenas o tipo de livro que escrevo), vejo filmes, documentários, escuto música, converso com pessoas, ouço suas histórias. Também adoro caminhar e viajar, mas, infelizmente, não fiz muitas viagens nos últimos tempos. Elas me inspiram demais. Porém mesmo o cotidiano pode ser inspirador, basta que a gente preste atenção. E uma coisa que devo confessar: eu costumo me metamorfosear um pouco nos meus personagens: passei a prestar atenção na natureza à minha volta com a Anna de Bryke (o voo dos pássaros por exemplo), e agora ando supersticiosa como um marinheiro de Cartago. O que quero dizer é que ao escrever, passear por outros universos, eu tendo a ver o mundo de um jeito ligeiramente diferente de antes. Escrevo de outro jeito, com outra voz, saio da minha zona de conforto. Isso ajuda a manter a motivação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A maior diferença é que, hoje, eu escrevo pensando no público, o que só comecei a fazer após ter escrito O Castelo das Águias. Esse foi o divisor de águas da minha carreira, foi quando comecei a me ver como uma escritora profissional, embora eu tenha outro trabalho regular (não apenas para pagar minhas contas, mas também porque gosto dele, gosto do que faço como bibliotecária). Com o tempo, fui aprendendo o que funciona e o que não funciona para mim, então foi uma questão de prática mesmo. O que eu diria a mim mesma na época dos primeiros textos? Apenas para persistir, pois já pensei em desistir algumas vezes. É uma vitória para mim saber que não tornarei a fazê-lo: mesmo que o mercado editorial mude tanto a ponto de eu não conseguir publicar mais nada, não vou parar de escrever, de contar minhas histórias.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de concluir três projetos que tenho iniciados, dois livros independentes e uma série; gostaria de criar uma pequena biblioteca voltada para jovens e que tivesse ênfase em fantasia e contos populares; e gostaria de organizar mais uma coletânea para a Editora Draco que ainda não cheguei a propor, pois na frente dela há trabalhos em andamento. Quanto a livros que eu gostaria de ler: procurando bem, creio que já se escreveu sobre tudo, então resta dizer que eu gostaria de terminar os livros que tenho em mente para que outras pessoas os lessem.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu planejo algumas coisas antes: quem serão os personagens principais, pontos centrais da trama, que conflito vou apresentar (ou não, pois escrevo alguns contos que são puro slice of life, sem conflito nenhum), o tom que vou adotar, se vai ter ou não diálogos (alguns contos não têm), de quem será o ponto de vista… e também penso no fim, pois gosto de saber escrevendo como a história termina. Ainda assim, acho mais difícil escrever a frase final e tenho de me policiar para não terminar de um jeito piegas, romanesco, clichezento ou com cara de “moral da história”. Menos em contos como “O Grande Livro do Fogo”, de “Medieval”, que já foi escrito no modelo dos contos orientais de Malba Tahan e tinha sua própria fórmula de fechamento.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu saio para trabalhar na Biblioteca Nacional todos os dias e tenho que encaixar a Literatura nas manhãs e noites, além de ter a minha família e vida pessoal para tocar. Prefiro ter sempre um máximo de dois projetos rolando, pois mais do que isso me deixa confusa; no momento estou cuidando de dois, com vários outros pela frente que tentarei escalonar de acordo com um cronograma. Tento escrever todos os dias, mas nem sempre consigo. Nos fins de semana é comum tirar as manhãs para escrever antes de olhar as redes sociais, pois depois que isso acontece eu tendo a dispersar.
O que motiva você como escritora? Você se lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Sou motivada pela própria história, sou do tipo que se apaixona pelos personagens e se empolga pelo que eles estão fazendo. Quando consigo me envolver, visualizo algumas cenas que vêm à frente da parte que estou escrevendo – são flashes, mais ou menos – é quando a inspiração trabalha de verdade, embora na maior parte do tempo seja questão de “transpiração” mesmo. Eu sempre quis me dedicar à escrita, mas tive consciência disso aos 16 anos, quando li “A História Sem Fim”. Fechei o livro e pensei: é isso; eu não preciso enlouquecer, não preciso renunciar a mais nada, posso criar o que bem me aprouver e ter uma vida normal. Mas, curiosamente, eu determinei logo que não seria uma prioridade fazer dinheiro com livros; eu teria outra profissão que seria meu ganha-pão. Foi uma decisão acertada, na minha opinião, pois posso escolher o que quero escrever e não dependo da venda de livros, sempre tão difícil, para pagar minhas contas.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Diria que minha grande influência em termos de narrativa foi Marion Zimmer Bradley em “As Brumas de Avalon”, mas encontro ecos de romancistas e contistas que li na adolescência. São bem variados: Dickens, Jack London, Hemingway, Máximo Gorki… Dos brasileiros citaria Moacyr Scliar. Mais tarde li Ursula Le Guin, que também exerce uma certa influência, mas menos na voz narrativa do que no propósito. E Tolkien me influenciou um pouco na criação do universo, mas na narrativa eu já acho que nem tanto. Se encontrei dificuldades? Não sei, fui escrevendo, fui melhorando (acho) e hoje várias pessoas que me leem dizem que identificam as “marcas” no meu texto. Portanto, tenho voz própria. E… precisarei ter cuidado da próxima vez que for usar um pseudônimo!
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Vou recomendar que leiam os contos de Máximo Górki, porque suas palavras têm uma força impressionante e é um dos melhores autores que conheço para ajudar a desenvolver a visão do cenário (você enxerga as pessoas e lugares que ele descreve, é incrível!). Também recomendo O Feiticeiro de Terramar, de Ursula le Guin, um livro maravilhoso de fantasia que dá um insight do que, para mim, funciona quando se quer trabalhar com o conceito de Magia. E recomendo O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse, porque mexe em níveis profundos com a consciência de quem lê e conduz a reflexões muito importantes sobre a arte e a vida.