Ana Lis Soares é escritora, jornalista, e produtora de conteúdo literário.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de reservar as manhãs para as tarefas que demandam mais concentração e criatividade. Mas, antes de tudo, tomo meu café e organizo-me com minha agenda: vejo as tarefas do dia, anoto demais lembretes; assim consigo enxergar o que é prioridade, o que tem horário fixo etc. Como trabalho em projetos diversos, preciso ter essa organização para ter tempo e energia de realizar tudo (ou o máximo que der).
Nos períodos em que estou escrevendo com mais intensidade, tento reservar mais tempo da manhã para a escrita – mas acontece muito de eu escrever após o almoço ou fim de tarde também.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Depende. Há dias em que prefiro escrever pela manhã, outros, no período da tarde. Não costumo trabalhar à noite, pois é quando tiro tempo para me exercitar, conversar com meu marido, ficar “esparramada” com as gatas, assistir a filmes ou a séries, ler meus livros…
Adoro acordar cedo e iniciar os trabalhos mais pesados logo que posso. Para escrever, reservo ou as primeiras horas do dia, quando a semana está mais “tranquila”, ou escrevo no fim de tarde, depois de terminar outros compromissos. Qualquer que seja o período do dia, busco respirar profundamente e sentar-me com uma meta para aquele dia: “hoje, vou escrever por meia hora”; “hoje, vou escrever até terminar esse capítulo”; “hoje, vou escrever até o horário do almoço”, por exemplo.
Seja qual for o momento, busco ter a “cabeça livre” de demais interferências, de cobranças externas, e tento me concentrar o quanto posso para entregar-me às palavras.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Com a pandemia, minha rotina se transformou. Como escritora, tenho necessitado trabalhar a paciência, a entender que existem atividades básicas que se transformaram em prioridades – como o trabalho doméstico, por exemplo. Nesse período, não escrevi o quanto gostaria, acabei focando mais na produção de outros conteúdos, especialmente para meus canais literários nas redes sociais.
De maneira geral, escrevo todos os dias, mesmo que não seja conteúdo “literário”: pode não parecer para quem está de fora, mas o trabalho de produção de conteúdo tem demanda criativa bem intensa – aliás, as redes sociais são um espaço em que compartilho frequentemente minicrônicas, minicontos; além disso, para os posts, escrevo resenhas de livros, conteúdos curiosos em torno da literatura, rascunho os roteiros de meus vídeos. Além disso, faço alguns freelas. Então, estou sempre em contato com as letras.
Porém, falando nas “produções literárias”, como escritora, há períodos em que escrevo mais, como aconteceu no ano passado. Quando isso acontece, escrevo diariamente, estabelecendo metas que estão mais relacionadas a demandas pontuais (como “chegar ao fim do capítulo”, “escrever até o momento X da história”) ou ao tempo de escrita do dia (“escrever até 15h”, “escrever ao menos meia hora hoje”).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Bem, considero que minha escrita está intrinsecamente ligada ao “meu corpo”. Assim, o processo de escrita começa com meus sentidos.
Explico: para mim, escrever começa com processos muito íntimos, é um olhar para dentro – e para fora, que permite o germinar e o desenrolar de vidas inventadas que nascem em mim. Para percebê-los, entendê-los e externá-los, necessito de todos os meus sentidos: geralmente, experimento minhas histórias primeiro pela “audição”, uma audição interna – que tento perceber com atenção: são as ideias que me “cutucam”, me chamam, ou pela audição e visão do mundo, da realidade que vivo.
Sei que há escritores, por exemplo, que “enxergam” personagens, fatos, vão imaginando cenários…, mas, para mim, é mais comum ouvir frases, diálogos, pensamentos de personagens que vão se revelando para mim, indicando caminhos para histórias que estou escrevendo – ou para futuras, que ainda não dei início.
Já nesse momento, considero que estou “escrevendo”. Porque escrever, para mim, é esse processo de transgressão do “eu”, essa busca de outras vozes, de outras existências possíveis; talvez, seja a tal “inspiração”.
Quando ideias assim aparecem, tento escrever imediatamente (ao menos, tomar nota). É quando começo a buscar palavras para transmitir sensações, experiências e acontecimentos que consigo começar a visualizar, a enxergar melhor os cenários, as personagens, os detalhes da história.
Para contos, é comum que eu escreva de modo mais livre, em um fluxo mais “solto”. As pesquisas, portanto, acontecem de modo paralelo: busco informações para dar riqueza e coerência à história à medida que a construo. Para meu romance, realizei pesquisas previamente, mas é claro que, em alguns momentos, foi preciso parar a escrita, a fim de buscar mais informações, de aprofundar conhecimentos sobre um ou outro aspecto.
Começar é sempre desafiador: escrever é, entre tantas coisas, olhar nos olhos do medo – e vencê-lo. Não se escreve sem medo. Porque há o medo e, depois, a coragem. Sabe, eu aprendi a ressignificar a palavra medo na vida, especialmente após anos de terapia. Sob meu ponto de vista, há muitos medos em torno de qualquer processo criativo – materializar uma história que nasce de nós tão subjetivamente exige coragem, confiança – tanto na linguagem, ferramenta básica de um escritor, quanto na nossa capacidade de escolher palavras entre silêncios.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Bloqueios na escrita são comuns, muito comuns! Afinal, tudo e qualquer coisa pode ser pedra no caminho: uma preocupação na família, um problema na casa, o cansaço mental, a exigência interna de “ser perfeita”, a autocrítica maldosa, o medo pelas críticas e feedbacks, o receio de “ser ridícula”, a ansiedade de entregar ao público algo tão íntimo (porque as palavras são, de certo modo, uma materialização do “eu”, ou parte do que sou como pessoa e escritora. Ou não?).
Por isso, é preciso entender que escrever é um exercício. Podemos buscar conselhos de grandes escritores e escritoras de todo o mundo e há sempre este: escreva todos os dias, escreva sempre, escreva para aprender a escrever; quanto mais exercitamos, melhor ficamos. Ao contrário do que se pode pensar, escrever é um trabalho como “qualquer outro” – há momentos bons e ruins, há prazer e dor; enfrentamos dificuldades e ganhamos aprendizados, recebemos bons e maus retornos.
Percebo que isso está mudando, mas ainda há uma espécie de glamourização ou idealização em torno de trabalhos de criação: artistas, no geral, muitas vezes são rotulados como pessoas que vivem numa espécie de transe criativo, de liberdade sem freios… Mas a verdade é bem mais “dura”. A disciplina é base para a construção de qualquer obra.
Agora, sobre todos esses medos e ansiedades em torno de “ser escritora”, acredito que ter trabalhado em redações, como repórter e editora, ensinou-me a lidar melhor com a ideia de compartilhar textos com um público diverso, amplo. Também, trouxe-me a perspectiva da responsabilidade sobre aquilo que escrevo, assino e publico. Ser jornalista dá-me essa noção profissional do texto, de rigor quanto a qualidade, de cuidado com a língua, com o conteúdo, com a clareza. Evidentemente, publicar uma reportagem e um conto, por exemplo, tem lá suas diferenças, mas ajudou-me a encarar a ideia de exposição.
Outra coisa que me ajudou bastante foram as publicações de contos e crônicas no meu blog: em 2018, “obrigava-me” a escrever e postar um texto (sem ‘pensar’ muito) toda quarta-feira. Foi um trabalho interessante, que rendeu bons frutos, e a confiança maior em relação ao meu trabalho como escritora.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Bem, como disse, trabalhei como repórter e editora em portais de notícias – e mesmo com a pressa que há no jornalismo online, gostava de revisar meus textos duas ou três vezes (às vezes, precisava fazer depois de publicá-los, quando eram bem “urgentes”). Agora, textos literários têm “outro tempo” – de produção, de revisão, de publicação – muito diferente daquele urgente de notas e reportagens. Assim, tento revisar o quanto posso. Meu romance, por exemplo, estou fazendo uma terceira revisão (minha, depois passará por outras muitas – por revisora, editora etc.). Todavia, também aprendi com a urgência e o tempo curto, que há um momento em que é preciso publicar o texto! Soltá-lo para o mundo, deixar que viva. Preciso sempre me lembrar disso porque, se depender de mim, fico em um “eterno” processo de revisão, com aquela ideia de que o texto nunca está maduro o suficiente. Enfim, é uma mistura de apego, medo, perfeccionismo. Há um momento em que é preciso deixar que a obra seja de “outros”, não mais nossa.
Sobre leitores antes de publicar, particularmente, considero essencial que outras pessoas leiam meus textos. Meus pais são, geralmente, meus primeiros revisores. Meu pai é escritor e minha mãe, jornalista e professora de redação. Ou seja, são meus grandes e mais rigorosos críticos! Hahaha. Ambos são cuidadosos – e não medem palavras quando necessário o “puxão de orelha”. Mas sabem ser, na mesma medida, especialmente generosos, incentivando-me a escrever e a realizar sonhos.
Para o romance, além dos meus pais, já conversei com amigos que são leitores assíduos, professores, jornalistas, que toparam, gentilmente, serem “leitores beta”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho um diário, vários caderninhos – e muitos post-its! – em que escrevo à mão. É um processo de encontro comigo mesma. Escrever à mão é como um abraço, é assim que consigo transpor o que sinto, de modo imediato. É como gosto de contar experiências pessoais para mim mesma, é a forma que tenho de fazer nascer ideias. Adoro anotar frases minhas e de outros escritores, tudo o que me inspira naquele momento. Contudo, costumo escrever “profissionalmente” no computador, já é um hábito – inclusive, cheguei a escrever alguns contos e trechos de textos diversos no celular, em aplicativos de escrita.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Essencialmente, de experiências que tive, que ouço ou que chegam a mim por observações de mundo. Sempre fui muito observadora: olho e ouço o que as pessoas dizem ao meu redor, na rua, no metrô, no banco da praça, na portaria do prédio, no elevador, nos restaurantes. Inclusive, há algo que faço desde criança que é o de “viver na pele de outra pessoa” – por minutos, horas ou mesmo dias. Não sei explicar tão profundamente, mas é uma espécie de incorporação: vejo alguém no restaurante e, de repente, já captei seu modo de mexer as mãos, de sorrir, de olhar para o acompanhante, de mexer no cabelo, de tocar o celular, de mexer talheres, de segurar o copo… E aí, de modo muito instintivo, já estou pensando sobre hábitos dela, do que gosta, o que está sentindo, por que decidiu colocar aquela roupa, quais são suas ideologias, o que tem medo, se tem manias etc. Sinto a pessoa. É uma “mania” de “viver personagens da vida real”, uma forma de encontro… Um exercício de empatia, acho. Mas, acima de tudo, um processo criativo – que comecei nem sei quando ou por quê, e que mantenho por ser essencial em mim.
Além disso, leio. Leio muito, leio diversamente. Busco escritores e escritoras de vários países do mundo, de épocas diferentes. Isso é o básico para qualquer autor e autora. Gosto de assistir a filmes e séries, gosto de ouvir músicas que me inspiram bons sentimentos e sensações: geralmente, trilhas de filmes que gosto, jazz, blues, clássicas. Mas também adoro ouvir MPB e samba.
Busco me exercitar e o yoga me ensinou a respirar. Respirar é essencial para quem escreve.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Aprendi que são muitos os tempos. E que, para escrever, você precisa respeitar o tempo daquele texto. Cada um deles vive ao seu modo, ao seu ritmo. Por isso, se pudesse voltar, diria à menina que tivesse mais paciência e que deixasse suas palavras “respirarem”. Que voltasse depois, após atravessar um rio – nem que fosse um rio de alguns minutos, horas – para que, assim, pudesse ter novos olhares e, enfim, esculpisse o texto.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Olha, esse ano de 2020, embora os muitos “emboras”, foi um ano de realização de muitos projetos sonhados: como o de leitura coletiva da obra de Clarice Lispector, a construção de um canal no Youtube para compartilhar conteúdos sobre tudo o que adoro na literatura, de modo a complementar o trabalho que já realizo no Instagram desde 2019. Também foi um ano de solidificação do meu projeto “Drummond-se”, em que faço análise semanal de poemas de Carlos Drummond de Andrade nos stories do Instagram. Tudo isso me inspira, ajuda-me no entendimento e na construção da “Ana Lis escritora” também.
Há outros projetos que tenho em mente, mas não os digo porque estão em gestação. Ainda há aqueles que nem percebo crescerem em mim, e de repente, vêm com a força da ação (foi assim com o Drummond-se, que quando me dei conta, já estava “sendo”).
Como leitora, sinto-me contemplada por tantas obras que existem, e a que tenho contato; talvez, escreva e desejo escrever meus próprios livros não porque eles “não existam”, mas sim porque o “como”, o modo que essas histórias serão contadas serão meus, únicos. E aí a riqueza da literatura: a possibilidade de dizer o mundo – já dito, já vivido, já sonhado, já escrito, já reinventado – mais uma e outra vez. Escrever é tornar a vida inédita. E é assim que desejo poder estar no mundo.