Ana Kiffer é escritora, professora do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu normalmente acordo cedo. Sou matinal. Moro num lugar privilegiado onde o canto – por vezes ruidoso – dos diferentes pássaros me desperta também. Além da rotina matinal da minha filha que vai para escola às 6h30 toda manhã. Tomo sempre uma xícara grande de café com leite. E normalmente começo a escrever na sala, numa escrivaninha antiga que era do meu avô (já incluso escrevi uma coluna sobre isso para a Revista Pessoa). Lembro-me ainda hoje de vê-lo sentado diante dessa escrivaninha dias e tardes, no seu minucioso trabalho de desmontar e montar as máquinas dos relógios de pulso ou de mesa e às vezes um ou outro relógio maior. Meu avô foi sapateiro e relojoeiro. Aqui ainda estão as marcas de suas ferramentas. E escrevo com a presença de tudo isso. Escrever é também uma oficina onde se montam e se desmontam máquinas. Cheia de uma artesania cruel, como diria Artaud. E é também onde se sente a presença de seres invisíveis. Isso não é místico, é real, sensorial.
Por vezes, quando estou escrevendo algo, ou com algo se processando em mim para ser escrito sou despertada às 3h30 ou 4h30 da manhã. Esse horário da madrugada – depois de ter dormido – é para mim o horário mais interessante para se escrever. Onde os bichos noturnos vão dormir e os diurnos ainda começam a despertar. O lusco fusco matinal é tão potente. Você literalmente fica entre mundos. E ainda carrega para o dia aquela força exterior e densa da noite… Mas é verdade que isso faz com que eu durma muito, muito cedo… e tenha uma rotina semanal por vezes dura, feita de muitas e diferentes jornadas. Mas, bom, os trabalhadores vivem assim, não é?
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Então trabalho mesmo nessa madrugada das quatro da manhã quando estou “acometida” por algum projeto de escrita, ou quando sou mesmo tomada por alguma ideia. Mas senão a rotina da escrita acontece todas as manhãs a partir das seis e segue até o horário que eu tenha livre. Normalmente dou aula às 11h na universidade… como moro perto, consigo escrever até às 10h.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho sim uma escrita diária. Mas ela nem sempre é guiada pelas mesmas forças ou desejos. Isso porque hoje está claro que exerço uma atividade dupla. Então os meus textos, logo a minha rotina de escrita, está dividida entre a escrita crítica. E mesmo esta escrita crítica está dividida entre os textos acadêmicos e os ensaios ou breves chamados críticos que coloco no meu blog Mar da Carne ou em alguma outra revista, ou mesmo nas redes sociais. E essa outra escrita. Que vive ao lado… Essa escrita amante. (risos) A outra… ficcional ou poética… Escrita esta que sempre existiu, sendo a mais antiga em minha memória e vida. Mas que, digamos assim, foi assumida internamente (e logo externamente vai sendo também), tornando-se maior do que eu mesma, de cinco anos para cá.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sabe que trabalho, dou aulas e pesquiso os processos de escrita desde que me debrucei – nos idos de 1998 – sobre os cadernos de Antonin Artaud na Biblioteca Richelieu em Paris. E até hoje ainda acho algo um tanto misterioso essa máquina dos processos.
Poderia tentar descrevê-la, mas ainda assim algo nelas continuaria fugindo.
Mas vamos lá, vou tentar. Para você. Para vocês. Para mim os processos se passam em meio aos meus cadernos. Tenho vários tipos de cadernos. Neles montam-se diferentes máquinas escriturárias. Tenho um caderno no bloco de notas no celular. Esse é o que está normalmente ao alcance das mãos para os ataques súbitos – de madrugada, no meio da noite, andando na rua, incluso dirigindo. Depois tenho mesmo esses caderninhos pequenos, gosto desses em formato bolso, e mais finos. Com ou sem pauta. Esses divido entre: cadernos de viagem (e em toda viagem sempre algum projeto de escrita se constrói), cadernos de questões, caderno de projetos, entre outros. Mas veja: nada exclui que um caderno de anos atrás volte a servir e a ser escrito hoje. Nada ali está submetido ao tempo linear.
Um outro processo diz respeito ao desenvolvimento de um projeto já mais ou menos delineado. Seja um livro de poemas ou um romance. Nesse caso vou criando diferentes arquivos no computador. Um deles para pesquisas de documentos históricos ou de referências que se relacionam com a dita realidade. Outro pode ser para a estrutura narrativa ou do próprio livro. Outro pode ser só para possíveis títulos, e por aí vai. E, claro, sempre, o arquivo de restos ou lixo de tudo o que, no processo, você vai descartando.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas fazem parte. Então você não pode é travar a trava. Porque daí vira outra coisa…
A procrastinação não faz muito meu estilo… não entendo a questão dessa forma. O tempo da escrita não comporta adiamentos, isso não quer dizer que possa ser guiado pela pressa, pelo imediato. É outro tempo. E isso sim é o que é difícil, incluso para negociar com os prazos e as demandas do mundo.
O medo de não corresponder às expectativas foi para mim vencido na imensa, dura, sofrida e batalhada conquista para me autorizar a “sair do armário” com a minha escrita. Hoje divido isso em dois grandes e diferentes blocos. Num deles estão os processos de silenciamento, vividos por algumas pessoas, mas certamente por alguns grupos mais do que por outros. Grupos que, em nossas sociedades, nunca tiveram o direito à palavra. Direito enquanto legitimidade, enquanto direito à existência. Logo poder de dizer. E não só poder dizer! Não por acaso o meu assumir-me (publicamente) escritora data dos recentes movimentos das mulheres. Noutro bloco estão os processos de insegurização – as competições, as invejas e também a bajulação que sustenta o mundo social e laboral hoje, todos esses elementos possuem um forte apelo e impacto, na tentativa de tornar presa alguém que se sinta muito dependente do brilho, do dinheiro excessivo ou mesmo de um certo excesso narcísico, tão requisitado como modo de “normalidade” e de “sucesso” em nossas sociedades. Sinceramente, para colocar algo no mundo, para mim, é preciso alguma distância subjetiva e crítica desses dois blocos. Por fim vamos assumir que nunca se agradará a todos. Seria algo estranho se fosse assim. Aliás devemos estranhar quando é assim. Então tornar-se escritor, artista ou mesmo intelectual que pensa por si mesmo é também poder suportar a crítica. Só quem não suporta crítica no Brasil são os ricos e a maior parte dos homens. Ou seja: quem sempre mandou! Mulher ouve crítica desde que nasceu. Negros e negras já nem de crítica se trata, mas de torturas discursivas ou carnais. Descartes históricos e atuais. É feio, sabe… se não criamos uma ética no mundo da política ou do direito, imagina uma ética crítica… o que seria?
Mas nada disso pode ou deve impedir que reconheçamos os críticos e as críticas éticas, feitas de uma necessidade imensa de democratizar, de alargar, de aumentar o número e a densidade reflexiva das vozes em disputa e em construção no nosso mundo. Que sabem reconhecer quando alguma voz emerge buscando provocar reflexão e contribuir para o crescimento conjunto e não apenas para o deleite estético ou individual. Uma crítica mais ética para mim funcionaria à despeito de todo e qualquer desejo gregário, que infelizmente e cada vez mais pede passagem num mundo de neoconservadorismo, de medo da perda de determinados privilégios discursivos (nem falo de privilégio econômico), de novos pactos fascistas todos eles prontos para incrementar as igrejinhas, as tribos e os grupinhos dos “amigos”.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende do texto. Posso revisar muito, excessivamente, ou pouco. Mas normalmente sigo a minha intuição, aquela que me permite dizer: “é o que consigo agora. Cheguei ao meu máximo. Dei aqui o que podia. Sempre podia estar melhor, mas por ora só enxergo até aqui!”
Sempre quero que algumas pessoas leiam antes os meus textos. Sempre, de um ou de outro modo alguém, algum ouvido, nem que seja o da minha filha amada de onze anos. Mas é difícil, não é? Primeiro é difícil pedir porque as pessoas não têm tempo – todos nós não temos tempo. Depois é difícil porque é demorado construir essas relações de confiança. Um primeiro leitor é como uma relação amorosa…
Por isso o sonho do editor que realmente possui esse olhar ainda é tão forte para todo escritor. Eu diria que a Mirna Queiroz, editora da Revista Pessoa tem sido para mim – além de uma ou outra amiga íntima – essa leitora e essa editora. Ela possui esse crivo e esse olhar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não diria que escrevo rascunhos à mão. Escrevo ideias, notas, diagramas, início ou gérmen de poemas, ou mesmo o centro nodal de um artigo ou de um romance. Mas a escrita dos textos se dá no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Essa é uma pergunta quase impossível de ser respondida. Ao menos respondida de forma, digamos assim, racional ou apenas intelectual.
Acho que tentei falar disso numa das minhas colunas Dos Corpos para a Revista Pessoa quando disse da importância do escritor Graciliano Ramos para a minha vida. Ali tentava dizer que mesmo em minha escrita acadêmica sempre fui movida por uma espécie de lodo, de algo não intelectualizado, de algo que resistiu à elaboração subjetiva no nível racional, do entendimento. Por isso em tudo o que escrevo está o corpo. Seja a questão da corporalidade. Seja essa borra do que resta, essas impressões de um corpo e outro corpo. Digamos que sou sempre movida por uma espécie de “trauma” localizado entre a história individual e a história coletiva, entre o corpo e o entendimento. Mas, por favor, leiam a palavra trauma sem que ela esteja de todo tomada pelo horror. Existem traumas dos quais rimos. Mesmo que seja esse humor ácido e provocador. Existem traumas erotizáveis ou eróticos. E muitos. Aliás o ideal é em algum momento poder também rir e poder amar – no sentido de cuidado, de “take care of”, do “seu” e, sobretudo, dos “nossos” traumas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Muita coisa mudou. Acho que fiquei mais simples. Consigo ser mais direta. Na escrita acadêmica retirei os “penduricalhos” excessivos, inócuos, desnecessários e também assumi o risco de tomar posições. Não há escrita neutra. Nem Barthes foi neutro para falar do neutro. Imerso no seu tempo, mundo, corpo, mesmo que rasgando esses tecidos. Diria isso a mim mesma se voltasse à escrita da tese. Diria isso tudo, mas também diria que para chegar a isso é preciso passar – entre outras – pela escrita de uma tese. Conhecer o riscado. Os modos discursivos de cada meio. A universidade é só um meio. O meio editorial é outro. O meio comercial é outro. O meio literário é outro. Uma literatura que agrade no Brasil, ou no Sudeste pode não agradar nos E.U.A.
Sempre digo isso tudo aí para os meus orientandos e não apenas para mim. Mas a maior parte dos jovens que hoje ingressam nas áreas de mestrado e doutorado que bordejam as artes não querem saber ou negligenciam o riscado do meio acadêmico. Eles veem isso apenas como uma estrutura repressora. Que também é. Aliás como qualquer estrutura de organização em nossas sociedades. No entanto, é o que sinto hoje, há uma diferença entre questionar e transformar os aparatos repressivos e simplesmente ignorá-los. Acho que hoje a juventude – por pressão do mercado, por democratização e incentivo dos meios de expressão individuais (as redes sociais) e por esvaziamento dos espaços comuns reflexivos – está demasiadamente autocentrada. E se há algo duro, mas necessário na escrita acadêmica é a exigência para que você consiga sair do próprio umbigo através da reflexão dos outros, das referências dos outros (para mim essa é a função respeitosa e necessária da citação), do mundo dos outros.
No que tange à minha escrita poética ou ficcional eu diria que o meu maior susto e alegria foi quando comecei a experimentar a sensação de total estranheza com o que escrevia. Nada ali era eu. Tinha por fim conseguido tornar-me amoral quando escrevia. E mesmo que houvesse (e que haja) um conjunto imenso de sensações, afetos e emoções sentidas e ali postas nada era um reflexo aonde ao final reencontrava a minha imagem. Isso às vezes me intranquiliza porque é como se eu me descobrisse – incluso em sensações inaceitáveis – inteiramente amoral, sem códigos sociais prévios. Outras vezes me tranquiliza porque sinto – e hoje sei – que nunca estou sozinha quando escrevo. Acho que aí reside para mim também uma certa humildade (não cristã) do escritor. Somos seres “ruins” ou precisamos aceder incluso a esse estado na e com a escrita. Mas humilde também porque não escrevemos sozinhos. Somos menores nesse processo de tomada de muitas vozes em nós mesmos…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho o projeto de um romance que iniciei mas não consigo o tempo necessário para dedicar-me a acabá-lo e quero muito terminá-lo. Tenho vontade de fazer um projeto com os cadernos do Artaud que ainda não fiz. Tenho muita vontade de ler ou mesmo de fazer com um grupo de pesquisadores e artistas um livro – uma espécie de livro crítico e humorístico – feito de verbetes que demonstrem todas as palavras e noções que se tornaram inoperantes, inócuas ou mesmo altamente repressoras e opressoras no vocabulário crítico da arte e da literatura contemporâneas.