Ana Kiffer é escritora, professora de Literatura da PUC-Rio.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Há uma organização que é em parte imposta pela atividade laboral que exerço há quinze anos como professora e pesquisadora na PUC-Rio. Ela é determinada pelos horários das aulas na graduação e na pós-graduação, as orientações e as leituras aí envolvidas, os artigos a serem escritos e publicados, congressos, entre outras. Essa atividade, muitas vezes entra em conflito com o meu desejo de escrita ficcional, ou mesmo com o desejo de um ensaio mais livre que mescle a enunciação criativa e ficcional às questões de cunho teórico-políticas, como venho realizando há cinco anos para a Revista Pessoa através das minhas colunas mensais. Outras vezes, mesmo não entrando em conflito com os princípios da escrita literária, o meu trabalho não me deixa ter o tempo que gostaria para me dedicar de forma mais integral à literatura e ao ensaio breve, em jornais ou revistas.
Acho que isso sempre foi a realidade da maior parte dos escritores e artistas, o ganha-pão (e mesmo quando se gosta muito do que se faz) e o desejo. Um desejo que nunca se estabiliza de todo, pelas próprias condições sócio-política-econômicas, que cria esse lugar social instável e precário para a literatura e as artes. Mas há também o outro desejo, o desejo de escrita, esse desejo indomável que não respeita as horas e, por vezes, nem o cansaço. No meu caso esse desejo não para de crescer, ele cresce também com a maturidade, com o cruze entre um apaziguar e um ferver. Com uma consciência radical de que não se tem mais tanto tempo a perder, de que algumas coisas ou já foram perdidas, ou podem ser mais tranquilamente abandonadas. Isso, a meu ver, torna o emprego do tempo da vida mais interessante, deixando até um lugar para sonhar que terei, mais velha, esse espaço mais inteiro para me dedicar à criação de ideias. Não acho que serei exclusivamente escritora, mas alguém que buscará sempre criar algo, propor, cutucar, subverter, aqui e ali incomodar, lutar e também rir – sempre com e através da palavra. Espero nunca deixar de rir, apesar de tanta dor e sofrimento que perpassa tudo o que vejo, sinto, ouço e escrevo.
Sobreviver da arte, sobretudo da literatura, num país como o Brasil, é sempre um sonho longínquo ou então uma profissão para os ricos. E todo o emprego do nosso tempo e dos projetos estarão determinados por essa realidade. Também por isso é preciso parabenizar e reconhecer os esforços de todos os envolvidos para produzir essa relíquia delicada e brutal, esses arquivos da nossa cultura – esses papéis, palavras, afetos que os textos reúnem e devolvem ao mundo. É preciso lembrar das gráficas, editores, livreiros, bloggers, de você José Nunes, enfim, de toda uma máquina que concretamente funciona todos os dias, sem deixar de acreditar na circulação da palavra, sobretudo no país do desmonte, no país dos vários autoritarismos, no país que exportou Paulo Freire e não conseguiu alfabetizar e educar toda a sua população, no país de repetidas histórias de censura, tortura, morte e massacre. A circulação da palavra no Brasil nunca, nunca deve deixar de ser louvada. Ela é tão importante quanto o direito à circulação dos corpos.
Por tudo isso sei que não sou exceção, e que me debato entre o meu trabalho (que me dá decerto muitos prazeres específicos), com o meu corpo e seus ritmos, e com o desejo de escrever, escrever, escrever. Tudo isso faz com que minha ‘escrita literária’ aconteça sobretudo no alvorecer dos dias, às vezes começando 4:30, ou 5:30 da manhã, aí fico até às 8:30hs, ou quando não posso até às 7:30hs. Quando posso fico até a exaustão daquela escrita. O tempo da escrita literária não é o mesmo do da escrita crítica. Nessa última é possível permanecer por muitas horas com a ilusão de que se está vendo por onde vai, e de que se conseguirá atingir o término. A escrita literária não vai em flecha, sobre ela damos voltas. Desenhamos um caminho espiralar. Há, por isso, a sensação de uma lentidão maior, mas na verdade é só um outro tempo. Ou, talvez, seja a indicação de que os nossos tempos tão produtivos e disciplinados, com dia certo até para lembrar do passado (o #tbt das redes sociais) é que corre muito, e numa só e única direção. A pressa, como estamos vendo agora, acaba levando à exaustão e à sensação de ‘fim de linha’.
Sobre os meus projetos concomitantes, eu começaria dizendo que, como todo projeto, eles se iniciam em rascunhos, esboços, desenhos. E sob essa forma muitos ficam em germinação ao mesmo tempo. Mesmo quando não escritos em continuidade, eles coabitam o mesmo espaço-tempo. Quando eles se tornam suficientemente fortes dentro de mim eles começam a saltar, a adquirir vida. Isso faz com que tenha sempre uns dois livros em processo. Mas, em algum momento, decido que um deve ser finalizado para que o outro possa de fato ir adiante posteriormente. Sem essa decisão, que também é custosa, pois implica em deixar de lado, momentaneamente, algo que te chama e que te interpela, eu não conseguiria dar conta do que faço. Sob todos esses gestos e essa realidade hoje sei que só consigo escrever às custas de muita disciplina, esforço, perseverança. E agradeço sempre o momento mágico do surgir da ideia desejante, dessa paixão desconhecida que vem e te diz: escreva isso!
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Não planejo tudo, nem deixo fluir. Preciso caminhar um tanto com a ideia e com a escrita. A ideia é sempre, querendo ou não, alguma estrutura ou direção. Mesmo que ainda sem o reconhecimento dos limites, dos alcances, das extensões dessa direção. E a escrita é o tom, o tom de um livro. Gosto quando consigo ir vendo diferentes tons no que escrevo. Mesmo que o estilo de um autor possa ser apreendido no geral de sua ‘obra’, o seu tom sempre pode variar.
Depois que alcanço um certo número de páginas escritas, normalmente paro tudo e volto ao início para reler, e ou buscar uma estrutura, ou começar a ver a luz no fim do túnel. Tipo: para onde foi aquela escrita? E agora: para onde eu vou com ela?
Normalmente reescrevo a primeira frase, ou o primeiro parágrafo, quando estou no processo de revisão de um livro. Acho que o mais difícil é a última frase. Mas ambas envolvem o desenho de uma atmosfera, que para mim significa interrogar: qual o tom desse livro? (primeira frase). E, como quero deixar o leitor, qual emoção encerra esse livro? (última frase).
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Eu preciso muito do silêncio, não só para escrever, mas também para viver. Penso que esse silêncio é tão fundamental porque escuto muito os ruídos que vivem em mim, e os ruídos do mundo. Há uma efervescência constante que me habita. Hoje, com a maturidade, mais apaziguada e ciente dela mesma, mas ainda assim uma efervescência, uma intranquilidade e uma interrogação permanentes. E isso é ruidoso. Me exige parar para ouvir. Me interpela. Sofro muito o impacto do mundo. Vivo permanentemente me interrogando sobre a minha própria impotência diante das dores inumeráveis desse país. Não me conformo como demorou tanto para começarmos a poder dizer abertamente quão racistas somos. Entristeço e anoitece algo muito profundo em mim quando sei que uma criança morreu em Manaus sem oxigênio. Como vamos conviver com essa quantidade de pessoas mortas, não só pelo vírus, mas pelo descaso, e mais além, pelo desejo de matar que acomete e governa esse país?
Sofro de angústias desde que me lembro gente. Venho de uma família que perdeu os ideais, os sonhos, além das condições materiais e subjetivas com o golpe de 1964. Sou filha da prisão, do autoritarismo e, ao mesmo tempo, da utopia de justiça social e do radical desejo de liberdade. Sou filha da necessidade real e permanente de reinvenção da vida. Não me conformo que a fome tenha voltado ao Brasil, me dediquei durante 7 anos a estudar Josué de Castro e os pensadores da fome no Brasil. Ainda não publiquei esse livro, que recebeu incentivo do Governo do Estado do Rio de Janeiro e até mesmo do Governo Francês. Mas o Brasil, ah o Brasil…
Esse país reconhece muito pouco aos seus. Josué de Castro morreu de melancolia, exilado na França, e expulso de todos os cargos como representante do Brasil na direção da FAO, ONU, etc. Tudo isso vai encolhendo o desejo (e o direito) nascente, que existe em todos, e em cada um de nós, de irmos mais longe. De tornarmos possível a nossa existência comum. De inventarmos. De sermos reconhecidamente grandes pensadores, cientistas, propositores, criadores, escritores, etc. O Brasil, tão grande territorialmente, diminui sistematicamente a sua gente. Hoje, fruto das perversões ainda mais radicais do ultra neoliberalismo cultuamos a inveja e um tipo de individualismo colonial, soberbo, filho de uma elite predatória, e ao mesmo tempo frágil e fraca intelectualmente. Ignoramos quem somos. Outro dia conversando com uma grande amiga, a Tatiana Roque, ela me alertava para o caso da Índia, país que tem, sob alguns aspectos, condições parecidas às nossas, mas que está muito melhor do que nós. O pensamento decolonial indiano é referência mundial, não se trata só da vacina. Acabo de escrever um longo artigo sobre os afetos e a interlocutora que me possibilitou essa conversa foi uma intelectual indiana.
Isso tudo, que agora se destrói de forma faraônica no governo Bolsonaro (desculpem o paradoxo, mas de fato há um ímpeto grandioso na destruição em vigor, um verdadeiro desejo em destruir), tem que ser visto, antes dele, como um modo muito peculiar de funcionamento dessa sociedade que se desvaloriza sistematicamente.
Quais as nossas narrativas e mitos fundamentais? A comida, a ética e a vida de inúmeras e diferentes culturas: ribeirinhas, indígenas em toda a sua multiplicidade, sertaneja, caipira, enfim são mais do que regiões geográficas, estou falando de ancestrais vivos que não vemos nem ouvimos. Insistimos em não ouvir. É preciso muito silêncio para perceber o tamanho desse inaudível.
Aliás, ando muito interessada nos sons inaudíveis do Brasil: o que não ouvimos? Sempre penso num tempo, num lugar, numa região (não no sentido geográfico, pode ser incluso no corpóreo) e me pergunto: quais os sons que ficaram ali nesse burburinho ruidoso, gosma antes da palavra, o que não conseguimos ouvir? Como tudo isso é hoje esse ruído que nos habita? Qual região o inaudível traçou em mim, em você, no mundo? Por que não ouvimos?
Foi essa questão que levei ao curador Chico Dub e a Grace Passô para pensarmos de que modo trazer para o Brasil a peça radiofônica do Artaud, Para Acabar com o Juízo de Deus, feita em 1947- 48, censurada à época, ultra experimental e inovadora (ver).
Desde que, há mais de 20 anos, comecei a ler Artaud, sempre me perguntei: qual o sentido, o cruze e a potência entre ele e o Brasil? Não me interessa mais um autor Europeu apenas para ser deglutido ou reverenciado, isso é parte da nossa doença. E ela precisa ser elaborada. Não é rebeldia, cancelamento, impedimento. É desejo de reciprocidade, em todas, todas as relações. Não pode haver Relação (Glissant, 1990) com tanto desigual, cheio de gosto amargo, opressor, impedidor. Enfim, ouvir os desiguais significa ouvir os silêncios dos nossos silenciamentos. E o silenciamento é uma parte muito significativa da história, eu diria mesmo de todo o edifício da cultura letrada brasileira.
Outro silêncio que habita os meus livros é esse da rotina dos ruídos matinais, do alvorecer. Acordo cedo, e escrevo até onde puder ou conseguir ficar, o maior tempo possível. Toda a manhã, de um ou de outro modo repito esse ritual. Quando tenho algum tipo de férias da universidade permaneço nesse emaranhado da escrita toda a manhã até a hora que vou cozinhar, fazer o almoço. O trabalho acadêmico se infiltra como se nunca tivéssemos ou pudéssemos estar totalmente de férias. Acho que hoje, como efeito do neoliberalismo, todo trabalho é assim – sem direito ao tempo livre. A escrita literária, o meu desejo de escrever, me fez perceber isso de forma ainda mais cristalina. Dificilmente escrevo à tarde. À noite eventualmente, mas aí é mesmo uma inspiração, nunca uma rotina. Sou dos amanheceres, nasci também muito cedo, para mim em toda manhã tecem os galos, tecem, nas minhas manhãs, todos os galos do mundo. Vozes, vozes. Vozes se tecem recolhendo os ruídos do silêncio, os inaudíveis de todos nós.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Não sei se técnicas, mas algumas ferramentas: ler coisas que me inspiram, ou ir para perto da natureza, conversar com os Orixás, com o meu Ori, agradecer, acolher, aguentar o deserto. Não há escritor sem a possibilidade de suportar o deserto da escrita. Esse medo do abandono da escrita é o mais duro, porque, de fato, quando se sabe que escrever é a sua única saída nessa vida, ser abandonado pela escrita é o pior dos pesadelos. Mas ele faz parte, nos acometendo recorrentemente, entre livros, ou mesmo quando não se encontra um caminho para terminar um livro, ou até quando é tão bom estar ali naquele livro que você vai adiando terminá-lo, porque deixá-lo, como diria M. Duras, é como deixar a um amante. O abandono da escrita, esse deserto, é também o que a semeia. Procrastinar é uma faceta do deserto.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
O primeiro romance, ainda inédito, foi seguramente o que me deu mais trabalho. E me orgulho muito de ter conseguido. De não o ter abandonado antes do tempo, como fiz com muitos outros. Porque suportar escrever é também suportar ver que nunca você vai gostar de tudo o que escreve. Que um livro não tem só clímax. Que o primeiro não terá que ser o último. Nem o melhor de todos. Suportar, suportar. E que também não será o que eu julgo melhor aquilo que o outro julgará melhor. O público é diverso. Se um livro tiver, criar ou abrir vários lugares propiciadores para essa aproximação múltipla, tanto melhor. Se ele guardar vários cantos que possam tocar um número diferente de pessoas ele tem chance de caminhar. Mas isso é difícil demais, também aí um conjunto de mistérios, outro, de nichos de interesse, outro, de demandas. O caldeirão não é simples, e a receita, se há, eu desconheço.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
A minha leitora ideal é normalmente sádica (rsrs) e nunca presente na hora em que escrevo, mas depois quando vou ler o que escrevi. Então por vezes preciso matá-la, ser mais sádica do que ela, ou driblá-la, conseguindo camuflar de mim mesma o que sai no papel. Uma espécie de clivagem, para sobreviver. Para não explicar tudo o que escrevi. Porque não saberia fazê-lo. Há uma matéria inconsciente que governa a minha escrita. Ela depois é revista, e até isso pode ser um tanto delicado. Mas estou querendo dizer que quando estou escrevendo, e o fluxo dessa intensidade se estabelece, eu não estou toda poderosa no comando de tudo e, logo, essa leitora ideal inexiste ou precisa ser esquecida. Por ali estão passando coisas que não faço a menor ideia de onde vem. E prefiro continuar não sabendo. Já tenho que saber muitas coisas na minha profissão, isso não. De fato, me recuso. Podem dizer que estou errada, que não é assim, que isso fará de mim uma escritora naïf, não acredito nisso. Prefiro essa brutalidade da escrita ao formalismo asséptico que diagrama tudo antes.
Mas vejam: não significa dizer que esse contágio mais inconsciente e corporal que atravessa o meu modo de escrever não se preocupa com a forma, ao contrário, posso ser obsessiva e revisar infinitamente um texto sem nunca, nunca ficar satisfeita. Tampouco estou dizendo que uma preocupação constante com a forma e com a genealogia formal da escrita é improdutiva. O problema são as nossas dicotomias. A insistência em dividir tudo no isso ou naquilo. A vida não é assim. E os processos de criação tampouco.
Mas as separações existem antes de mim, e eu não posso me furtar a elas. Logo, à sua primeira pergunta “como escolho os meus temas” vou ter que responder: não sei. Ou: não escolho. Ou: eles me escolhem.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Os meus textos híbridos, entre ficção e ensaio, que escrevo mensalmente para a Revista Pessoa, eram, no início, há alguns anos atrás, mostrados para uma amiga muito próxima, com quem troco um imaginário literário permanente. Juntas já demos um curso sobre M. Duras, e realizávamos, com nossos filhos, um almoço dominical mensal, que seguia as receitas do livro La cuisine de M. Duras (rsrs, que saudades). Mais do que um imaginário literário nós trocamos cosmologias de vidas possíveis: passadas, presentes, futuras. É a Oiara Bonilla, também pesquisadora, etnógrafa, e muitas outras coisas.
Agora já mando direto para a Editora, a Mirna Queiroz. Por uma questão de tempo, de prazos. E a Mirna é também a minha primeira e grande leitora.
Os textos mais longos, romances e auto ficções por vir ainda estão se fazendo. No momento tenho um romance finalizado, que algumas pessoas estão lendo. E outro ainda sendo escrito que ninguém leu ainda. Os poemas gosto de trocar também com pessoas diferentes. Ou antes até testava nas redes sociais. Com o tempo essas trocas ficam mais restritas. Os canais aqui e ali se empobrecem e apodrecem, como o país. Por outro lado, você vai se autorizando mais a perseguir sozinha o teu deserto. Mas fico sempre feliz quando alguém pede, ou pode ler o que estou escrevendo.
Minha filha, Clara Kiffer, hoje com 14 anos, é, sem dúvida, a minha primeira leitora e em quem mais confio. Ela lê muito, anda devorando a minha biblioteca com o seu próprio crivo e desejo. Mas obvio que não peço a ela para ler um romance meu, às vezes peço apenas que me deixe ler um trecho, quando estou muito só com o livro, e precisando ouvir a minha própria voz e a do outro.
Não posso me furtar, e a sua pergunta é, sob esse aspecto, bastante provocativa, em dizer que, como muitos, sonho aqui e ali que um dia terei, que um dia viverei, que um dia estarei ao lado, por perto, próximo a alguém com quem trocarei mensagens na garrafa, meteoros no mundo, ideias e manuscritos (rsrsrs).
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Eu me dedico à escrita desde que comecei a escrever. É o meu sonho mais antigo, e é também a prática mais antiga que, como artesã, me recordo de saber fazer. Desde os 6 anos, quando comecei a escrever com um dos olhos tampados (usava um tapa olho e óculos para vista preguiçosa), nunca, nunca mais parei de escrever: poemas, cartas, diários, auto ficções (esse nome não existia, rsrs), histórias de amor, e também de morte. Agora isso que você chama de decisão a se dedicareu não sei se diria da mesma maneira. Então vou contar como foi sendo, como está sendo para mim, tá?
Em algum momento, depois da morte da minha mãe, também do meu divorcio, atravessei um período longo, lento e profundo, de dor e de transformação. E com isso os meus textos foram mudando, e falo ainda aqui dos meus textos críticos, das palestras e participações em congressos. Fui assumindo vozes diversas, já não era só a critica falando de, com ou sobre algo. Aparecia, às vezes, uma voz ficcional, um pseudônimo, outras vozes em tom muito pessoal, introduzindo, desse modo, a vivência no seio da reflexão. Acabei performando falas. Fui assumindo o risco de ter ideias próprias e me afastando do enquadre mais repressor (não existe só esse) da formação acadêmica. Assumir as próprias ideias foi me dando coragem para mostrar publicamente os meus escritos literários. Determinante também foi o convite da Mirna Queiroz para vir a ser colunista da Pessoa. Com uma coluna mensal na minha mão fui me dando o direito de experimentar dizer de várias maneiras, estilos, misturando gêneros e delineando uma voz própria.
Baixo esses acontecimentos públicos tiveram outros, mais íntimos, mas não menos importantes. E acaba que eles respondem um pouco a tua segunda pergunta sobre o que gostaria de ter ouvido…sobre aquela frase que te estimula, que te dá crédito, que vê em você um potencial. Infelizmente eu não ouvi essa frase dentro de casa (acho que a dureza era tanta que nem se considerava a hipótese de que escrever era um ofício), e também, depois, não ouvi dos professores que tive. A primeira vez que ouvi, foi quando, depois da perda de minha mãe, busquei uma astróloga, veja que nunca tinha feito em toda a vida um mapa astral. Mas depois da morte da minha mãe fiquei um tempo buscando modos de nutrição espiritual para lidar com a morte, com o desaparecimento do outro, com o desamparo, algo menos corpóreo e material. Não uma explicação, ou resposta, mas um alimento espiritual, um modo de estar, de habitar diferente o próprio corpo e o corpo de todas as coisas. Como dizia o velho mestre Graciliano Ramos, não sem ironia, ‘nós, os desgraçados materialistas passamos a pão e laranja, enquanto eles, os espiritualistas, cuidam muito bem do próprio corpo’. Era isso: eu precisava aprender a cuidar diferente do meu corpo. Quando se perde a mãe, e não importa a idade, essa questão dos cuidados com o seu próprio corpo se recoloca. Não existe mais por detrás a figura, mesmo que evanescente, de alguém que iria, ou teria, um dia, quiçá, te nutrido. Voltando à astróloga, ela se chama Monica Clemente, olhou o meu mapa logo que sentei e me disse: então você é escritora! Respondi: não, sou professora e pesquisadora. Ela disse: não, você é escritora. Alguns anos depois, quando me aproximei do candomblé, preceito e pratica pelo qual tenho profundo respeito e admiração, uma ialorixá me disse exatamente a mesma coisa. Aquela frase que M. Duras ouviu de Raymond Queneau “não faça nada a não ser isso, escrever”, eu ouvi, de algum modo, dessas duas mulheres, uma astróloga, outra ialorixá. Sinto orgulho e gratidão por isso. Assim é o Brasil, essa é a literatura brasileira. Respeito essas nossas vozes, o nosso modo de criar algo com e a partir do que o mundo branco considera irracional. Criar o melhor. Porque a Razão, esse universalismo matizado de racismo e de colonialismo, como disse Mbembe, já durou muito tempo. E tal como nos impuseram, mostra hoje, e gravemente, os seus mais atrozes tentáculos.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Acho que ainda estou inventando estilos próprios, no plural. Não gostaria de ficar igual a mim mesma, sempre. Mas também já não tenho dúvidas de que, até agora, esse estilo tem, digamos, dois grandes rios que o atravessam. Num deles o apreço por uma certa suspensão textual, por não ter que contar tudo, deixar vazios e lapsos narrativos. E acho que isso é influência da Duras. Também com isso uma certa secura, que vai junto com a impossibilidade de dizer tudo, e acho que isso é influência do Graciliano Ramos. Esse dizer, e ao mesmo tempo dar um soco no que você mesmo diz, caracteriza um certo combate permanente na e com a escrita, e acho que isso é influência do Artaud. Escrever é solidão, mas também é luta. Perder a carne e tocar o osso ao passar, mais ou menos como disse Artaud. No outro rio correm os resíduos, restos, traços, o que venho chamando de arquivos-corpos de tudo o que me/nos formou e me/nos revolta. Então aí necessariamente há algo de híbrido, entre as ideias que defendo criticamente e um jeito de dizê-las pra mais gente, de dizer sensivelmente, não com a cabeça, mas com as forças do afeto. Não para convencer, e muito menos para ilustrar. A literatura não está a serviço, tampouco está fora do mundo: tá aqui, aí, ao lado de muitas outras artesanias, inventando corpos sensíveis, um imaginário possível, e partilhado.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Vixe, recomendo sempre muitos livros, nas aulas, nas orientações, para amigos, sempre ouvindo antes o que eles estão buscando. Vou dizer aqui apenas os 4 últimos que li: O espírito da intimidade, de Sobonfu Somé; O Corpo interminável, de Claudia Lage; Autodefesa – uma filosofia da violência, de Elsa Dorlin; Arruaças, de Luiz Antonio Simas, Luiz Rufino e Rafael Haddock-Lobo. Mas poderia continuar longamente, porque temos vários livros muito bons para serem lidos.