Ana Idalina Carvalho Nunes é professora, pesquisadora e escritora, mestra em Ciências Sociais pela UFJF.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo com a claridade do dia no rosto. Não coloquei cortinas no quarto justamente para isso, para acordar sem despertador, acordar naturalmente com a luz da manhã entrando no quarto e com a alegria dos meus cachorros pulando e fazendo festa. Passo meu café e vou para a sacada, não sento à mesa. Quando é dia de trabalho na escola, saio logo cedo e volto na hora do almoço. Quando é dia de folga, não faço planos, deixo cada dia seguir seu rumo, vou ordenando os afazeres de acordo com o que dá mais prazer no momento.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Talvez por conta da rotina pesada de leitura e produção que a vida acadêmica impõe, eu consigo trabalhar até 8 horas diariamente com leitura e escrita, preferencialmente durante o dia. Quanto ao ritual de preparação, quando se trata de artigos científicos ou de livros ligados à área científica, me organizo em etapas – primeiramente, faço uma seleção de textos, teses, dissertações e livros para a fundamentação teórica. Depois disso, parto para a leitura e fichamento do material que se encaixa na minha proposta. Para a produção de um texto de 15 páginas, por exemplo, geralmente essa preparação demora uma semana. Depois desse tempo, gosto de dar uma pausa de um ou dois dias para refletir sobre o tema, para depois começar a organizar o material: parafrasear trechos e organizar a estrutura para facilitar a construção dos argumentos e dos elementos que me possibilitem elaborar a análise para chegar à resposta do problema proposto pelo artigo.
Na preparação de um livro, a partir da pesquisa acadêmica, o processo é mais demorado. Estou preparando a publicação do meu diário de campo, que traz relatos e observações escritos durante os três meses que passei dentro das galerias do presídio da cidade de Cataguases (MG) em 2016. O material também inclui entrevista realizada com cada um dos homens encarcerados que se dispuseram a contribuir com o estudo, totalizando 71% da população carcerária daquele período. Considerando que se trata de um trabalho científico, não basta transcrever observações e relatos como se fossem crônicas – se fizer isso, coloco em risco a credibilidade do trabalho. É preciso ir além da narrativa, torna-se importante analisar observações, relatos, dados e entrevistas sob um viés teórico e uma metodologia específica. Feito isso, é preciso ainda observar a questão ética, evitando expor os sujeitos da pesquisa, tomando o cuidado de respeitar as normas da instituição prisional, enfim, mantendo em sigilo informações que são confidenciais. Algumas observações que são muito importantes podem até ser apresentadas metaforicamente dentro de uma narrativa, mas não como um dado objetivo. É um trabalho minucioso, mas gratificante.
Antes de ingressar na pesquisa, escrevi dois livros: um de poemas e minicontos (Meandros, 2010) e outro de ficção juvenil (Beijar, ficar e outros verbos adolescentes, 2014). O processo de produção, nesses casos, é totalmente diferente. Para o livro de ficção, também fiz pesquisa – mas de uma forma muito diferente, consistiu em uma coleta de informações que tinham como objetivo dar à narrativa ficcional um status de realidade. No caso do meu livro, Meandros, não houve um processo intencional de produção: ali está reunida a minha produção literária de vários anos, textos produzidos aleatoriamente, alguns divulgados anteriormente em publicações alternativas de poesia entre 1994 e 2003.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A escrita, pra mim, é um meio de relaxar, me permite um encontro comigo mesma. Quando tenho muitas tarefas e não é possível escrever durante o dia, deito no chão da sacada do meu quarto à noite, pego o notebook e escrevo para relaxar. Eu escrevo todos os dias por prazer, seja escrita acadêmica ou literária, ou mesmo um texto reflexivo para as redes sociais. Gosto também de trabalhar como parecerista: a leitura e análise dos artigos, a utilização de critérios para definir a qualidade da escrita científica e a possibilidade de sugerir, na escrita do parecer, melhores caminhos para que se chegue a um bom resultado, isso me agrada muito.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não tenho travas, escrevo desde a infância. Vim de uma família muito pobre, não tínhamos televisão, eu não tinha muitos brinquedos. Na minha casa só havia livros e eu brinquei com eles, viajei com eles, encontrei em personagens de histórias os meus amigos mais íntimos. Sou muito organizada e tenho um grande poder de abstração, desta forma, quando pego a proposta de um trabalho eu já consigo ir estruturando a proposta e delineando mentalmente o que vou fazer Quanto à ansiedade, aos medos, eles fazem parte do humano, mas é preciso saber lidar com isso, é preciso não se cobrar tanto e ter em mente que é impossível agradar sempre e que eu sou o melhor que consigo ser. A auto cobrança e a baixa autoestima podem bloquear todo o processo. Quando eu me aceito e não fico me comparando a outros colegas ou professores, então eu entendo que, ainda que os meus textos não sejam perfeitos, eles refletem exatamente o que eu vejo do mundo, as minhas qualidades e deficiências. Não podemos viver em função de agradar, essa não pode ser a preocupação que move a pesquisa e escrita. Funciona em mão inversa: eu dou o meu melhor e sinto prazer em me mostrar – quando houverem muitas críticas, isso significa que meu trabalho está sendo lido e considerado. Isso é essencial para o meu crescimento: não levar as críticas para o campo pessoal, saber lidar com isso, considerar o que pode contribuir para o meu crescimento e ignorar o que não me serve. Se eu não me fortaleço, se eu não consigo ampliar o meu pensamento a partir da leitura do outro, então não seguirei na produção acadêmica ou literária, porque é justamente isso que transforma um escrito em uma obra significativa: a discussão acerca do que foi dito.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Mais do que deveria. Seria uma espécie de “toc”? (risos). Talvez por ter uma primeira formação em Letras, por ter sido professora de Língua Portuguesa, sou muito exigente, muito autocrítica.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma ótima relação com a tecnologia. Até mesmo minha agenda está no computador. Minhas pastas, os fichamentos, dados, o próprio diário de campo foi feito no computador (eu preferia não anotar enquanto estava no ambiente da pesquisa, para manter o olhar mais atento aos detalhes. Eu chegava em casa e escrevia compulsivamente todos os dados e observações e conversas no computador).No que se refere à leitura, todavia, mesmo se tiver o livro em download, necessito de uma versão impressa à mão, gosto de levar o livro para a sacada e marcar as páginas, comentar – isso tem um fetiche especial, sinto como se estivesse, através de anotações, falando com os autores em tempo real. Escrevo, muitas vezes, coisas do tipo: “Uau!!! Você é foda, cara!!” ou então: “Você tá muito louco, cara!!! Vai me pirar desse jeito!”
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm das leituras. Não apenas leituras das obras que fundamentam nossos estudos, mas de tudo que está sendo produzido neste exato momento no mundo. Também vêm da leitura de postagens escritas por pessoas comuns nas redes sociais, das “fakenews”, das conversas com amigos. Enfim, eu preciso estar atenta aos diversos olhares, manter uma comunicação permanente com as pessoas e com o meio para conseguir me ver melhor e me situar melhor no mundo. Penso que nós não temos ideias, nós nos posicionamos diante do pensamento de quem, antes de nós, construiu conhecimento. Daí a importância da leitura, ela nos possibilita um diálogo silencioso: quando eu leio, eu não apenas ouço o autor, também interajo com as ideias dele, ora concordando, ora discordando. Em um como em outro caso, eu consigo me posicionar e criar um rumo para aquele pensamento que já foi pensado. Quando continuamos pensando o que outros pensaram, conseguimos promover o aperfeiçoamento de ideias, a criação de novos caminhos. Com o avanço da tecnologia, o conhecimento está muito mais disponível, isso é fantástico.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou muita coisa – e mudar é um ótimo sinal, significa que estamos em movimento. Se pudesse voltar aos meus primeiros textos, eu diria a mim mesma: “Parabéns!! Você se supera a cada dia! Está fazendo o seu melhor hoje”. Penso que cada fase de um autor retrata exatamente o que ele é e a forma como se configura a sociedade no período em que a obra foi produzida. Cada obra tem a sua importância.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sou muito realizadora. Todos os projetos que eu idealizo, coloco em prática. Agora mesmo estou reformulando o livro didático “Pensar filosoficamente” que escrevi especialmente para a escola da rede particular onde sou professora de Filosofia. O livro foi adotado e teve sua metodologia testada em 2018, com muito sucesso. A partir de agosto o livro será disponibilizado para o público em geral, em especial para professores de Filosofia, já que vem com o caderno do professor, com provas gabaritadas, exercícios e propostas de trabalhos. Outro livro que deveria ter sido lançado em 2018, mas teve lançamento adiado para este ano é o que traz os relatos do meu diário de campo, sob o título ‘À porta das celas: notas e relatos sobre uma etnografia na prisão”. Este sairá no final do ano.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Isso vai depender do tipo de projeto. Em se tratando de um livro de poesia, contos ou crônicas, é possível deixar fluir ao longo do tempo e reunir os textos posteriormente para a produção de um livro. No caso de um romance, por outro lado, já é necessária uma rotina de trabalho para dar sequência à narrativa, mas é preciso considerar que, depois de finalizado, pode ser necessária uma transformação até mesmo radical no conteúdo. Na produção de uma narrativa longa como o romance, eu, comumente, modifico totalmente o projeto inicial a partir da primeira leitura do livro pronto, que é quando eu consigo identificar falhas de construção, tanto no que se refere a problemas de coerência no encadeamento dos fatos apresentados, quanto no referente à linguagem de personagens, comportamento, descrições de situações e ambientes na sua relação com o contexto histórico da história. É nesse momento que se torna também importante situar os capítulos no tempo e no espaço: se a narrativa é uma ficção juvenil que se passa, em parte, no ambiente escolar, por exemplo, é preciso situar as datas dentro do calendário do ano letivo. Outro detalhe importante que pode ser inserido após a primeira leitura do livro já escrito, é um espaço para comentários sobre as notícias e preocupações que estão presentes nas falas da sociedade naquele momento histórico em que a narrativa se situa. Esse planejamento que eu faço no momento posterior à escrita da história, me permite cercar o romance de elementos que tornam possível uma aproximação maior entre a ficção e a realidade.
Em se tratando, por outro lado, de uma produção científica, é impossível iniciar o trabalho sem o planejamento, porque até mesmo relatos da vida cotidiana nesse tipo de produção, são fundamentados em alguma teoria e analisados à sua luz. Nesse período, por exemplo, quando preparo a publicação do meu diário de campo, produzido durante incursão etnográfica nas galerias do presídio de Cataguases (MG), realizada entre 2016 e 2017, não posso simplesmente fazer uma revisão ortográfica e publicar os textos em livro – isso seria anular todo o esforço da pesquisa e transformá-lo em um livro de crônicas apenas. Na produção científica é necessário, além de uma observação orientada pelo olhar da ciência, uma análise elaborada a partir de teorias da antropologia clássica, mas também de estudos anteriores, para que se possa construir uma relação entre o observado por mim e por quem esteve em espaço semelhante antes de mim. É por meio da releitura das anotações feitas que se torna possível analisar o que eu vi e ouvi, pela lente da teoria antropológica. Esse processo todo permite uma melhor compreensão dos fenômenos e confere cientificidade ao trabalho.
Respondendo à última questão proposta nesta mesma pergunta, sobre a dificuldade em se escrever a primeira ou a última linha, penso que a parte mais difícil de todo o processo é a leitura que o autor faz do texto que ele mesmo acabou de escrever. É comum, ao finalizar um livro – seja ele literário ou científico – constatar que ele fugiu da proposta, que a narrativa se perdeu em algum ponto específico. Desconstruir e reconstruir o texto é a parte mais penosa do trabalho porque exige humildade e persistência para reconhecer que minha produção está aquém do que eu supunha. Porém, se por um lado, é a parte mais penosa, por outro, é a parte mais importante, pois me permite desenvolver a autocrítica, tão necessária para a construção de um bom texto.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Embora seja difícil estar envolvida em um único projeto, no caso de produção científica essa é uma necessidade. É preciso uma rotina organizada de trabalho, horário para leitura e para escrita diariamente. Em períodos em que se faz necessário focar mais na leitura e na produção, evito até mesmo a atividade física (que me deixa demasiadamente animada, com vontade de sair e me divertir). Fico mais fechada no meu espaço e busco, até mesmo no tempo de descanso, conversar ou apenas pensar nas situações que envolvem o trabalho que está sendo desenvolvido. Muitas vezes é no período de descanso que surgem os insights mais importantes daquela produção.
Mesmo tendo que conciliar todas as atividades diárias, as exigências profissionais e as relações sociais, busco manter o foco, preferindo conversar com pessoas diretamente envolvidas com assuntos que me remetem à área de interesse da produção com a qual estou envolvida, o que me leva, comumente, a fazer muitas novas amizades que acabam permanecendo na minha vida.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Comecei a escrever ainda criança. Eu lia muito e observava o mundo sob a ótica da literatura, era frequentadora assídua da biblioteca da escola na adolescência. Assim, aprendi a construir os dias como narrativas, sempre tive o hábito de selecionar músicas para cada momento que eu vivia, criando uma espécie de trilha sonora, uma memória musical da minha trajetória. O que me move na escrita é o desejo de descrever situações, emoções e problemas sob ângulos que, comumente, não são observados. Na produção literária desde a construção de personagens até a produção do enredo, é possível levar o leitor a enxergar melhor a si mesmo e o mundo que o rodeia, percebendo as faces diversas de uma mesma questão, ou seja, uma boa narrativa amplia o olhar do leitor, permitindo que ele consiga ver além, deslocando-se para o lugar do outro.
Esse desejo de enxergar além e compreender o mundo, eu o transferi para o campo científico, para o qual estou totalmente voltada atualmente. Depois de quatro anos pesquisando o cotidiano de homens privados de liberdade, tendo como resultado a produção da dissertação de mestrado intitulada “Discurso religioso no cárcere: caminhos e possibilidades”, a publicação do livro “Criminalizar para punir: a dinâmica de neutralização da juventude pobre e negra no Brasil”, a participação na obra “Vidas em curso no cárcere: Experiências de estudos do universo prisional” – organizada pelos professores doutores Paulo Fraga (UFJF) e Rogéria Martins (UFV), e a finalização do livro “À porta das celas: relatos e notas de uma etnografia na prisão” (que será publicado ainda neste primeiro semestre de2020), trago para o doutorado uma pesquisa que investiga o impacto das interações sociais nos campos de batalha dos games mobile na construção da cultura do século XXI. Partindo do surgimento de novas profissões, do reconhecimento do jogo eletrônico como categoria esportiva e dos gamers como “atletas” oficiais, o que se verifica atualmente é um aquecimento da economia e modificação dos costumes entre os jovens do Brasil e do mundo.
Penetrar nesse mundo online e produzir relatos e análises sobre um fenômeno que vem dividindo opiniões, chegando a ser indicado como um fator de geração de violência social e de isolamento dos jovens, isso me move a penetrar no mundo dos games para ver e sentir de dentro e de perto o que é ser um avatar. Estar lá me permite narrar e descrever, não apenas a dinâmica, mas a sensação de quem vive essa outra vida.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Acredito que estilo não se cria intencionalmente. Somos influenciados pelos livros e autores que consumimos desde a infância, mas também pela fala de professores. Eu não sei se tenho um estilo próprio, embora já tenha ouvido que minha escrita leva o leitor a entrar nas personagens, que a minha escrita é profunda e emocional, que as personagens que crio são reais. Minha escrita é clara, simples, humana. Até mesmo no campo científico existe a marca afetiva de amor à pesquisa, que está implícita em tudo. Na infância e adolescência li muito Cecília Meireles, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cora Coralina. José de Alencar, Machado de Assis, li “Os meninos da rua Paulo”, de Ferenc Molnár, aos 12 anos. Já adulta, conheci Jorge Luiz Borges e seus labirintos, os conterrâneos Luiz Rufatto e Lina Tâmega e outros nomes que me foram apresentados pelo mestre da poesia concreta, Joaquim Branco, na década de 90. Dentro da graduação em Filosofia (UFJF, 2010-2012), mergulhei fundo no universo psicológico angustiante da obra de Dostoievski. O meu caminho acadêmico mantém uma relação bem profunda com a literatura, filosofia e antropologia.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
1. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe, de Loîc Wacquant. Gosto da abordagem que Wacquant faz dos guetos de Chicago, aprecio os relatos sobre a inserção dele no campo de pesquisa e a forma como ele reproduz os seus diálogos com os moradores do gueto e frequentadores da academia de boxe, onde ele se matriculou para conseguir uma maior aproximação com aqueles que viriam a ser os informantes da sua pesquisa. São relatos que norteiam minha trajetória na pesquisa etnográfica, mas que também me trazem uma leitura agradável, leve, me permitem viver no gueto sem estar lá, através de uma narrativa literária muito rica e bem construída.
2. Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. O que me fascina na obra do Ruffato é a forma como o tempo se desenvolve dentro dos contos – no espaço entre um e outro lado da ponte, por exemplo, passado, presente e futuro se misturam, fazendo a vida parecer essa travessia. Nesse livro específico, são 69 capítulos que funcionam como cenas de um filme que retrata a cidade de São Paulo no dia 09 de maio de 2000, uma terça-feira, com recortes em cenas diferentes com personagens de diversas classes sociais. Em especial, “Eles eram muitos cavalos” me marca pelo fato de Ruffato haver escrito um conto baseado em uma situação relatada por mim, durante uma conversa informal que tivemos no quintal da casa do pai dele, em Cataguases (2000). Na época, ele perguntou se poderia integrar a situação relatada como elemento para um conto, onde meu nome entraria como personagem. O conto está presente nesta obra que recomendo, sob o título “Festa” (p. 81). Na situação real, eu ajudei o proprietário de uma funerária numa situação para a qual ele não estava preparado. Uma senhora muito vaidosa teria deixado aos familiares um último pedido: quando morresse, gostaria de ser maquiada e ficar bonita na sua despedida, no velório. Eu estava presente naquele momento e tinha maquiagem na bolsa, então me ofereci para maquiar a senhora, que ficou tão bonita que parecia viva, com as faces levemente coradas e a boca pintada em um tom nude de laranja. Ruffato reproduziu a cena dentro de um roteiro em que destaca não a morte, mas a degradação humana, traição e abandono das vítimas da AIDS, numa cena onde Idalina maquia a amiga abandonada pela família e com o rosto emagrecido e desfigurado, elevando sua autoestima.
3. Os irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski. Trata-se de uma das mais importantes obras da literatura mundial, importante referência também nos estudos da psicologia e filosofia. O próprio Freud destacou que se tratava da “maior obra da história”. Seja como referência de estilo, da profundidade psicológica dos personagens, como espaço de reflexão do período existencialista, Dostoiévski é leitura obrigatória para todos os que se atrevem a penetrar no campo da escrita, não apenas através deste livro aqui indicada, mas de toda a sua obra.