Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis é professora da Faculdade de Educação da UNICAMP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia sempre começa com o despertador. Eu sou incapaz de acordar sem ajuda de um despertador. Minha relação com a cama e o sono é algo incompreensível até para mim. Se acordo após oito horas de sono, sempre estou disposta, mas isso não significa que eu não dormiria mais umas duas ou três horas. Tenho a constante sensação de que dormir limpa a mente e a alma, o que é diretamente proporcional à minha necessidade de limpar a mente, muito mais do que a alma – o que, convenhamos, é algo muito bom!
Acordo com o despertador do celular, após uma ou duas sonecas de dez minutinhos, em seguida já vejo a agenda e os compromissos do dia. Isso também é algo muito necessário em minha vida: agenda. Eu me esqueço com facilidade dos compromissos e prazos e aprendi a lidar com eles por meio da agenda. Então levanto sabendo do que preciso cumprir ao longo do dia.
Acaso vá trabalhar na universidade ou tenha algum compromisso fora, o próximo passo é um banho, pois é a partir dele que meu dia, de fato, começa. Eu demoro um pouco para entrar no ritmo do dia, e esses minutos comigo mesma são essenciais. Acaso possa trabalhar de casa, não abro mão de acordar, durante a semana, num horário que levantaria se tivesse que sair, entre 8h e 8h30, e me permito esse tempo comigo sem a pressa de correr para o banho, então tenho alguns minutos a mais nesse início de jornada.
Por um trauma de infância – imaginem: perua escolar logo depois de engolir o café da manhã – comer logo cedo não tem um lugar especial na minha rotina matinal, ao contrário. Via de regra, demoro umas duas ou três horas após acordada para querer comer algo; muitas vezes vou até o horário do almoço sem comer, só bebendo água. Sim, eu sei que é muito errado… mas é uma daquelas coisas que a gente sabe que faz mal e não se dedica a modificá-la, pelo menos ainda não me dediquei.
Quando chego onde devo ir, já estou pronta para começar o dia da forma como ele se apresente; se fico em casa, abro o notebook na minha escrivaninha, ao lado da cama.
Nunca consegui encaixar os exercícios no período da manhã, prefiro que sejam à noite – embora eu tenha, ultimamente, burlado bastante essa regra -… eu não gosto da primeira parte da manhã, sinto que estou numa batalha de vontades, de um lado a minha e do outro a do mundo como ele é, porque às 7h, às vezes mais cedo, as demandas – normalmente administrativas, que não envolvem reflexão – começam a pipocar e você deve atendê-las o quanto antes para que elas não ocupem mais tempo do que realmente devem… e elas ocupam muito tempo…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sempre trabalhei melhor de madrugada, mas depois que terminei o doutorado, que fiz com bolsa e, portanto, com uma rotina muito livre que me permitia trocar o dia pela noite, acabei me adaptando ao horário comercial. E nesse novo horário, a partir das 10h30 é que começa a ficar bom, para mim, para trabalhar com coisas que demandem reflexão; caso contrário, para trabalho administrativo, nenhuma hora do dia é boa, porque é um trabalho muito chato, embora necessário. Assim, o administrativo ocupa as primeiras horas do meu dia, sempre.
Com o tempo descobri que preciso de três coisas para escrever, uma relacionada ao processo de escrita e duas de caráter puramente material, relativas ao ambiente.
No que tange à preparação, antes de sentar para escrever eu vou pensando no assunto. Esporadicamente, sem nenhuma regra… separando livros, fazendo anotações em e-mails que mando para mim mesma, comentando com as pessoas, como quem não quer nada a fim de ouvir opiniões e ver se elas me levam a um caminho diferente do daquele que estou tomando, enfim… tento manter um clima de exploração comigo mesma, inclusive para julgar se tenho ou não condições de escrever sobre determinado tema naquele momento. Atualmente tenho três trabalhos iniciados, e mais de vinte temas que desejo explorar. Tudo guardado numa pasta do computador, tanto o conteúdo das explorações, quanto essas ideias que vou tendo e esperando para desenvolver em algum momento.
Quanto ao ambiente, é crucial que haja silêncio. Não o silêncio sepulcral. Há uma certa seletividade… barulhos repetitivos, conversas, música, esses realmente me atrapalham. Os pássaros – que onde moro tem muitos -, as pessoas andando na casa, os animais, o vento… aqueles barulhos comuns na tarde preguiçosa de um domingo ou numa manhã de semana em casa com a limpeza e o almoço por fazer, não me incomodam. Juntamente com isso, a temperatura. Sim… temperatura. Se não há um ventilador ou um ar condicionado deixando o ambiente mais “frio” é difícil me concentrar para escrever. Eu preciso que meu corpo esteja satisfeito com a temperatura, que sempre é mais gelada do que o comum, e o engraçado é que isto não importa muito quando faço trabalhos administrativos. Divido minha sala na Unicamp com uma amiga muito querida, Selma Venco, já há quatro anos… ela sabe quando estou escrevendo pela potência do ar condicionado, e já deixa um casaco na sala para podermos coexistir frente a essa minha doida mania.
Ultimamente tenho achado que também preciso escrever num computador com o qual tenha familiaridade, não sei porquê, mas é algo que tem me incomodado… não usar o meu note para escrever… sinceramente espero não desenvolver mais essa mania…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não sou nada metódica, então não tenho um momento específico para escrever. Mas é fato que ocupando cargos administrativos, como ter sido coordenadora associada do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Unicamp nos últimos dois anos, tem prejudicado sobremaneira meu tempo de escrita. Eu acumulei muitos temas, iniciei muitas coisas, e terminei poucas; muitas vezes terminei pelo prazo e não pela certeza de que o material estava pronto, acabado. É claro que se soma a isso a pressão produtivista em que vivemos atualmente, a necessidade de publicar para sustentar-se na academia supera a qualidade do trabalho, ou até mesmo sua relevância… certa vez li numa seção de um jornal estadunidense que mais de 95% da produção em ciências humanas é lida apenas por aqueles que avaliaram o artigo a fim de que configurasse na revista, ou seja, para a maioria de nós, no máximo, duas ou três pessoas leram nosso trabalho. Me fez pensar que há algo de muito errado aí. Mas eu não arriscaria responsabilizar pesquisadores e/ou leitores, penso que existe uma compreensão conjuntural a ser feita.
Mas tirando esses contratempos e desafios, quando encontro o tempo para escrever é certo que dentro de dois ou três dias (mais ou menos 16 a 20 horas) eu termino o primeiro esboço do texto, ou seja, trabalho com períodos concentrados. Não consigo ficar dias escrevendo e voltando, é como se eu colocasse tudo para fora de uma vez, considerando que houve uma preparação anterior, cujo tempo varia bastante. Essa preparação já demorou anos, como é o caso de um artigo que publiquei em 2017 fruto do amadurecimento de uma ideia que lancei no doutorado, defendido em 2012; mas também já foi imediata, em uma semana digeri o tema e na outra já tinha o texto pronto. Depende muito do objeto e da existência de um tempo para sentar e escrever.
Quando escrevo pelo prazo, o texto é meu foco, mas ao terminar, pode ter certeza de que metade do mundo caiu frente ao que deixei de cuidar nesse período; imagine, na era da tecnologia e da imediatez, você ficar três dias sem responder e-mail… É frustrante ter que fazer e administrar estas opções. Minha única meta no momento é poder escrever com certa regularidade, pois minha gestão termina no início de 2018, e realmente acredito que as coisas fluirão de outra forma. Infelizmente não tenho um parâmetro de comparação. Ao terminar o doutorado, fui ser professora universitária horista. Mesmo que eu quisesse, não tinha condições de escrever, tanto pela falta de tempo, quanto pela exaustão. Ao entrar na Unicamp, os dois primeiros anos foram de ambientação, quando comecei a entender as coisas, me candidatei ao cargo e modifiquei toda a minha rotina.
Ah! Uma coisa que sempre deixo por último: a formatação do texto. Eu vou fazendo as citações, e guardando as referências num outro arquivo. Quando termino o conteúdo, é que vejo a questão da formatação. E é para mim a parte mais insuportável da escrita… (risos)
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Puxa! Acho que já me adiantei e falei um pouco sobre isso, no entanto, além de frisar esse momento prévio de exploração do tema, é importante dizer que eu tenho duas fontes de escrita. Uma delas são as pesquisas em andamento. Há a pesquisa institucional central, os trabalhos acadêmicos de graduação e pós-graduação que oriento, bem como a participação em pesquisas com diferentes grupos, com diversas formas de atuação.
A outra são os temas que surgem na atualidade e tocam em discussões que já vimos fazendo há algum tempo, então não é uma aventura numa temática nova, é análise de algo que se mostra no momento presente a partir de uma matriz analítica consolidada.
Penso que começar é sempre difícil. É muito comum o primeiro parágrafo ser modificado, mas mesmo que eu não goste eu deixo e vou construindo o texto para depois revisitá-lo. Sempre deixo bem claro para mim qual o objetivo do texto, e quais os caminhos que quero traçar para atingir esse objetivo. Isso ajuda bastante, pois a escrita vai fluindo como se você soubesse boa parte do que compõe a estrada que quer percorrer. Além de ficar claro para você, também fica para o leitor, de maneira que nunca prometemos algo que não daremos ao longo do trabalho.
Ademais, os melhores textos são os coletivos. Gosto muito de escrever em conjunto, em especial porque com cada pessoa o processo é muito diferente e você acaba aperfeiçoando a sua própria forma de escrever. Mas não abro mão de textos individuais, estes parecem desnudar as nossas condições de escritores e pesquisadores… várias vezes voltei em um texto que escrevi e pensei: “nossa, eu disse isso?”, orgulhosa do produto; mas também já me repreendi outras tantas vezes: “como você deixou passar uma coisa dessas?”. Talvez o processo de escrita nunca se encerre… a publicação do trabalho é só uma parte da jornada e não o final dela, em especial se você quer mesmo reler o que fez…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Bom, de trás para frente… quanto mais longo o projeto, mais interessante no meu ponto de vista. Sei que você não se refere ao projeto de pesquisa, mas como mencionei, a pesquisa é uma fonte, se não a fonte principal, da escrita. Nesse sentido, a escrita, em especial a acadêmica, pode ser feita em diversos formatos: artigos, resenhas, resumos para eventos, livros, enfim… um projeto longo te dá condições de explorar todas essas formas de escrita. A primeira fase, normalmente de revisão bibliográfica e documental, dá condições para realização de resenhas, apresentação de processos de categorização, identificação de pontos de convergência e divergência de outros achados na mesma área, apresentação da metodologia em eventos, entre outros. A segunda fase, de análise do material, permite a construção de uma infinidade de artigos, e a continuação das resenhas e participações em congressos, etc…; e se quisermos, ao final, darmos o panorama geral da pesquisa, faz-se o livro. Infelizmente, as pesquisas longitudinais têm sido exceção e são menos incentivadas, pois demandam um tempo que o comportamento produtivista acha que não existe mais; é claro que ao longo do desenvolvimento da pesquisa tem-se dados mais robustos, mas não é verdade que no seu início não há um tipo de produção a ser compartilhada.
Quanto ao medo, esse é um sentimento que me deixou há pouco tempo. Quando entrei na Unicamp, conforme disse anteriormente, levei dois anos para entender minha condição de professora universitária pesquisadora extensionista, e à minha volta, os colegas tinham várias publicações acontecendo, e eu, embora mandasse os textos, ou levavam muito tempo para serem avaliados, ou recebia negativas devastadoras. Cheguei a duvidar da minha capacidade produtiva e ter certa aversão à escrita. Até que as publicações começaram a ocorrer e eu comecei a encarar as avaliações de forma diferente: a parte da indelicadeza do colega e do desrespeito ao meu trabalho, eu ignoraria; aproveitaria as críticas teóricas, nem sempre para “arrumar” o texto, mas para compor o debate que poderia ser estabelecido a partir do que eu escrevesse. Além disso, prometi a mim mesma, que quando avaliasse alguém, seria o mais detalhista possível e cortês, evitando atribuir juízo de valor à matriz analítica escolhida, mas tão somente se havia coerência na construção teórica que o autor propunha a partir daquela matriz. Mas se parar para pensar, escrever é algo assustador, como disse antes, é uma ação que nos fragiliza, porque nos expõe, deixando-nos dependentes da gentileza, ou não, do leitor.
Procrastinação. A palavra de ordem nos meus dois últimos anos. Não porque eu tenho esse hábito, mas porque a escrita tem ocupado lugar de baixa prioridade nas minhas atividades cotidianas administrativas, invejo quem dá o mesmo peso a estas coisas, ou continua mantendo a escrita como prioridade. Eu, infelizmente, não consegui. Mas a meta, como também disse antes, é inverter esse processo e estou confiante.
Por fim, mas não menos importante, as travas da escrita. Eu não posso dizer que travo. Eu não tenho um branco, ou uma dificuldade em continuar com o texto, e atribuo a isso o fato de maturar o tema durante um tempo antes de sentar para escrever e deixar registrado qual meu objetivo e como eu pretendo fazer isso ao longo do texto. No entanto, eu tenho algumas dificuldades em expressar com clareza o que desejo dizer sobre alguma coisa que depende de uma explicação prévia. Em outras palavras, às vezes escrevo coisas que pressupõe um conhecimento do leitor que não necessariamente tenha, ou entenda da mesma forma que eu estou entendendo. Isso é uma trava. Eu preciso organizar a ideia na minha cabeça antes de colocá-la no papel de novo, mas o mais interessante, e eu não sei explicar o motivo, é que eu não faço isso exercitando a escrita, eu faço isso jogando. É como se meu cérebro me dissesse que eu preciso fazer uma atividade supérflua enquanto ele trabalha na questão. Então é muito comum eu parar no meio da escrita e jogar. Quando estou em casa, é videogame. Jogos ultrapassados, de Nintendo 64, com Mario Kart (jogo de corrida de carrinhos), Mario Party (simulação de um jogo de tabuleiro)… Houve uma época em que eu jogava muito PlayStation 2 e 3, em especial na época do doutorado, com Guitar Hero (simulação de uma guitarra e outros instrumentos musicais) e Marvel X Capcom (jogo de luta), mas aí comecei a migrar pra jogos mais complexos e ao invés de ajudar meu cérebro eu o atrapalhava, porque prestava mais atenção no jogo, claro. Se estou fora de casa, antes eu costumava jogar Candy Crush (fazer combinações de cores e formas para eliminá-las e ganhar pontos) e similares, mas mudei definitivamente para Clash Royal (um tipo de imitação animada do Magic, um jogo de cartas em que se faz movimentos por turnos em que o objetivo é sobrepor o oponente pelo valor das suas cartas. Eu arrisco dizer que é uma evolução do supertrunfo). Eu preciso de uns 10 ou 15 minutos de jogo quando travo nessa parte da escrita. Quando termino de jogar, volto e continuo como se nada tivesse acontecido. É impressionante.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Demorei muito para encontrar alguém em quem confiava para revisar meus textos e construir um diálogo comigo. Minha primeira crítica foi a minha mãe; e ao contrário do que se possa pensar, sua leitura sempre era ignorando o fato de ser sua filha, aumentando ainda mais o grau de avaliação. Meu segundo leitor foi meu pai, que conseguiu ser ainda mais rígido do que ela. Adotei seus padrões de crítica, mas eles não são suficientes, é preciso que alguém de fora, completamente de fora, faça essa visita ao seu texto. Então, hoje, depois de terminar o texto, eu espero um dia para lê-lo novamente. Modifico as coisas ao longo da leitura e imediatamente peço para a Selma Venco ler. Ela é responsável pela qualidade da minha escrita em termos de língua portuguesa e coerência teórica, e desde que passou a ser minha crítica, eu tenho recebido avaliações mais interessantes sobre meus artigos. Sou muito grata a ela por esse trabalho, em especial porque sei da quantidade de coisas que ela também tem a fazer, mas nunca se negou a dedicar um pouco do seu tempo para mim.
É difícil encontrar esse crítico. Se é muito amigo, a gente corre o risco de ele achar tudo o que você faz muito bom e muito lindo, dando palpites bem simplórios. É preciso uma pessoa que se coloque como real interlocutor do seu texto, sendo sincero na exploração da primeira leitura. Selma já até construiu algumas expressões comigo, ela nem precisa dizer muito sobre um parágrafo que já sei exatamente ao que se dirige a sua chamada de atenção.
No mais, é com muito prazer que faço essa leitura no texto dos meus amigos quando eles pedem, e tenho me surpreendido com o que aprendemos nesse processo, que é tanto ou mais rico do que a escrita coletiva.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Nossa, há anos não escrevo nada à mão! Além de ter perdido esse hábito, minha letra é horrível, eu tenho dificuldades para entendê-la vez em quando! Escrevo muito nos meus livros… no processo de exploração do tema que antecede a escrita, eu vejo as minhas anotações no período que li o texto; ou faço novas a partir de coisas que venho pensando, mas fora isso, não faço nada à mão. Como disse no início, acho que estou desenvolvendo certa aversão por escrever em outros computadores, mas não quero incentivar essa loucura, acho que só vai dificultar a minha vida no futuro.
Quando escrevi o doutorado, acabei guardando várias versões da minha tese, mas depois da defesa, nunca mais fiz isso. Então, dos textos que escrevo, tenho apenas um arquivo. O arquivo final. Fico pensando se não é uma perda essa opção. Poderia ter parágrafos que seriam muito bons em outras situações. No entanto, ainda faço isso com meus orientandos. Tenho versões e mais versões de seus trabalhos, e vamos modificando com a ajuda da ferramenta de revisão do word. A cada entrega, salvo um novo documento, faço isso para acompanhar a evolução de seus escritos, faço comparações entre as primeiras versões e as últimas, e consigo ter uma ideia do quanto caminhamos. Deveria fazer isso comigo também…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu sou uma pessoa muito atenta. Eu presto muita atenção nas falas das pessoas, meus alunos, meus colegas, minha família… Durante os encontros da pesquisa, na discussão do objeto eu tiro várias ideias de escrita, tanto para mim, quanto para os outros. O mesmo acontece em sala de aula ou encontros ocasionais. A leitura de artigos de jornais ou outros artigos científicos também me provoca bastante. Acho que nesse contexto meu único hábito é não reprimir a ideia, mesmo que de início ela pareça muito idiota. Depois de saber que a maioria dos trabalhos em ciências humanas não são lidos, eu sempre tenho vontade de escrever coisas que atraiam as pessoas para ler. Não sei se consigo, com conteúdo é mais difícil, demanda uma alta eloquência literária que eu, certamente, não tenho; mas posso dizer que meus títulos já foram barrados muitas vezes por isso, em lugar do inusitado, o avaliador pede o tradicional. A única vez que respeitaram a minha vontade foi ao escrever “Contemplem! Eis o comunicador da norma!” Na revista Questio Iuris da UERJ, que tem um caráter interdisciplinar… todos os subtítulos do artigo são assim, provocativos… e a ideia do tema desse texto não é nada ortodoxa… na lista de espera estão artigos que querem explorar sentimentos e gestão; jogos e a teoria do Dom de Marcel Mauss; a Cosmópolis estóica e a migração, enfim… a união de coisas que com certeza se tocam, mas precisam que alguém as faça tocar. Eu escrevo, depois a gente vê se é plausível ou não. Penso que essa é a melhor forma de cultivar criatividade: sem inibi-la.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Arrisco dizer que não foi o processo de escrita que mudou, eu me conheço melhor hoje. Muito mais do que antes e menos do que amanhã. Nesse sentido, trata-se de uma descoberta, eu vou adequando àquilo que me proporciona melhores condições de escrever. É claro que a idade vai atribuindo certos hábitos… essa coisa da temperatura, não quero nem ver quando chegar a menopausa… mas tenho para mim que eu os descubro – os hábitos – e os reconheço no cotidiano. Sendo assim, eu diria a mim mesma: “Continua que vai dar certo!” Não há nada como um incentivo sincero em qualquer processo produtivo. E o “vai dar certo” não significa “ Tá ótimo, não vai mudar nada”, ao contrário, significa dizer que você vai superar todos os obstáculos deste momento, aprender com eles e fortalecer-se. Eu adoraria que meu eu daqui trinta anos dissesse isso para mim hoje, eu pararia de me preocupar com a coisa da idade e a temperatura, por exemplo!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sempre são muitos os projetos, mas certamente eu gostaria de fazer qualquer projeto de pesquisa, com mais de cinco anos, podendo me dedicar exclusivamente a ele e as aulas, convergindo as pessoas que mais admiro no mundo acadêmico… As vezes que mais me diverti foram em momentos assim, unindo proximidade e conhecimento. Quanto ao livro, vou aproveitar da ideia de David Hume que diz da impossibilidade – ou dificuldade, considerando que podemos ter alguns parâmetros para preencher determinadas lacunas – de se imaginar algo que não se conheça, colocando certos limites à nossa imaginação… então, não sei dizer do livro que quero ler e não existe – também porque não conheço todos os livros do mundo –, mas certamente sei do livro que não quero ler. Um livro que não modifique absolutamente nada em minha vida, esse eu não gostaria de ler; mas aí me pego pensando: será que é possível ler alguma coisa sem ser modificado por ela?