Ana Cristina Braga Martes é socióloga, professora da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina estrita pela manhã, exceto para atender compromissos de trabalho. Geralmente não sobra tempo para escrever antes do almoço, nem tenho essa vontade específica. Para muitas pessoas, a manhã é o melhor horário para escrever porque a cabeça está mais fresca, as palavras fluem com mais facilidade. Não é assim no meu caso. A qualquer hora do dia pode aparecer uma ideia, uma intuição, uma epifania, uma vontade ou, inversamente, uma desistência. De todas as fontes de inspiração, a leitura é a maior delas. Pode ser um jornal, um livro acadêmico, um poema, uma crônica de revista, um recado grudado na geladeira ou, claro, um romance, um conto. Não me esqueço das inúmeras vezes em que interrompi a leitura de um clássico de Ciências Sociais, como Hobbes, Maquiavel ou Rousseau, para escrever num pedacinho de papel uma frase ficcional que surgiu em meio à leitura. A força intelectual de um grande livro, independentemente da área, nos faz refletir sobre a natureza humana, assim como desperta nossa atenção para detalhes mínimos, nos leva a fazer associações inusitadas, desloca o foco do pensamento de um lugar a outro, e alguma coisa brota dali. Um livro sobre física, botânica, economia, não importa, tudo pode ser transposto para o campo da ficção. Em literatura, os autores que mais me inspiram ultimamente são Herta Müller e Lydia Davis. Clarice Lispector, Raduan Nassar e Virginia Woolf são inspiradores sempre.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A concentração na leitura é mais fácil no período da manhã, mas é no final da tarde, na transição entre o dia e a noite, que o prazer de escrever transborda. O ambiente fica mais introspectivo e paira uma serenidade, um silêncio que propicia a escuta interior e exterior. Não é à toa que esse é, segundo alguns, o melhor momento também para rezar. Não associo reza à escrita, constato apenas a similaridade, dadas as condições objetivas de um fenômeno natural, o anoitecer, que está fora do nosso controle e a maneira como ele nos afeta.
Mas o melhor momento para escrever é, sobretudo, depois que resolvemos burocracias e problemas do dia a dia. A docência implica também na orientação de teses, assim como pesquisa e publicação na área específica do conhecimento que, no meu caso, é a Sociologia. A convivência com os alunos é a melhor parte de ser professora. Dedico meu tempo a eles com enorme prazer e respeito. Além disso, as mulheres ainda têm mais atribuições na esfera doméstica, que, uma vez encaminhadas, fica mais fácil mergulhar no mundo da ficção. No futuro, a igualdade de gêneros e a equidade na divisão das tarefas domésticas vai propiciar a um número maior de mulheres entrar no mundo da literatura, como leitoras e como escritoras. Então, voltando à pergunta, talvez isso seja uma espécie de ritual: organizar o dia e dar andamento às questões do trabalho e da casa/família de modo a conseguir tranquilidade suficiente para me entregar à criação literária.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
É sempre difícil estabelecer e, mais ainda, cumprir metas. Mas não consigo passar mais de dois dias sem escrever. Sinto necessidade, física, psicológica e intelectual, de pegar meu caderninho, digitar no celular ou abrir o computador e escrever uma frase que seja. Pode ser até uma palavra que eu nunca tenha escrito antes e cujo som ou significado evoque algum tipo de verdade a ser buscada. Já estabeleci prazos para terminar um texto, mas é quase sempre frustrante, exceto os contos. Prazos podem significar uma referência temporal para que você se oriente, evitando que tudo fique solto demais, e que o texto não acabe nunca. De fato, um texto nunca acaba, mas é você quem tem que colocar o ponto final. Escrever um livro de dois em dois anos não seria mau, mas a gente não pode se impor uma meta como essa. É importante considerar que a maior meta de um escritor diz respeito à qualidade do seu texto, e não ao número de trabalhos publicados.
Tento escrever e ler todos os dias, nem sempre é possível. Escrevo muito quando viajo. Levo o caderno e o computador na bolsa. Mas não temos muito controle sobre o processo criativo, no sentido de um planejamento. Muitas vezes, sem que eu saiba explicar, alguma coisa acontece que me faz passar mais tempo escrevendo, como se eu não pudesse deixar de escrever. É quando fico mais ligada a um texto específico e escrevo (e reescrevo) de manhã, à tarde e à noite, se possível.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Uma folha de papel em branco não me faz sentir qualquer espécie de receio, medo ou agonia. Não sinto dificuldade para começar a escrever. Ao contrário, uma folha em branco é uma enorme liberdade e, em mim, desperta uma vontade imediata de preenchê-la do início ao fim, inclusive com vazios.
No início, não tenho um projeto muito claro de como será um livro ou um conto. Defino um ponto de partida, que pode ser apenas uma frase, ou um projeto inicial que, de antemão, já sei que não será cumprido ipsis litterisaté o fim. Às vezes me rendo às surpresas que aparecem no meio do caminho: conectar duas ações imprevistas, alongar passagens para aumentar a densidade dramática de um modo que eu nem imaginava; buscar um outro ângulo para aprofundar as contradições de um personagem e descobrir nele o que eu mesma desconhecia. Esse é o prazer da escrita para quem lê e para quem escreve: a descoberta, o aprendizado, o olhar desviante, a escuta em busca de autenticidade.
Faço pesquisa para tudo. Isso vem da minha formação de socióloga/pesquisadora e do meu jeito de estar no mundo. Pesquiso palavras, temas, personagens, cidades, topografias, linguagens, autores. Escrever sociologia é pesquisar, e escrever literatura também é pesquisar. Nenhum trabalho nasce pronto, seja num campo ou no outro, e a pesquisa vai abrindo caminhos e circunscrevendo possibilidades. Não utilizo nenhum método como esse sugerido na pergunta, ou seja, definir ou realizar primeiro a pesquisa para depois esboçar o livro. No meu caso, é um processo simultâneo, que, na verdade, compreende ler, escrever e pesquisar. São esses os três elementos básicos do meu processo de criação. Escrevi um romance (ainda não publicado) sobre a escritora mineira Maura Lopes Cançado (1929-1993). Uma biografia inventada, é como eu o defino. Maura tinha uma doença mental grave e se internou voluntariamente num hospício aos vinte e cinco anos de idade. Escrevi o livro em primeira pessoa, e isso só foi possível por meio da realização de uma pesquisa. Ou seja, eu li tudo o que ela escreveu e o que foi escrito sobre ela, inclusive teses acadêmicas. Mas não fiz primeiro a pesquisa para depois escrever o livro. Foi um processo de busca, de investigação e criação ao mesmo tempo. A pesquisa orienta e inspira, mas por si só, não é literatura. Ela é o substrato com base no qual a literatura pode ser criada. Além do mais, ficção envolve subjetividade e imaginação; pesquisa envolve método e objetividade. Portanto, são dois registros diferentes, mas que podem ser complementares na literatura.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho problemas para escrever, nem falta de inspiração, nem preocupação com o leitor, no sentido de corresponder a expectativas. Mas tenho medo de escrever 150 páginas por mais de três anos e, depois, não ver o livro publicado. O mercado editorial no Brasil está num momento crítico, e não apenas por causa das mudanças provocadas pela tecnologia. Vivemos o momento das distopias, mas ainda assim as utopias são necessárias e inevitáveis. Sonho com o dia em que um conjunto de escritores, engajados numa espécie de mutirão, descobrirão novos caminhos para sensibilizar leitores em estado de latência. Imagino um movimento, liderado mais por escritores do que por editores, capaz de atingir pessoas não apenas da classe média, mas de chegar ao Brasil profundo: periferias, favelas, cidades pequenas, vilas, aldeias, camponeses, povos nativos e da floresta.
No processo da escrita, uma coisa que me parece difícil, mas necessária, é se afastar do texto, aguardar até que ele “esfrie” e retomá-lo depois, com algum distanciamento, para ganhar maior autocrítica. Na literatura, assim como numa tese de mestrado ou doutorado em Ciências Sociais, quanto mais o autor mostra seu texto para outras pessoas e percebe outras leituras possíveis, independentemente do que ele próprio pretendeu escrever, melhor. Esse é um dos motivos pelo quais os cursos de escrita criativa prosperam: o aluno começa a fazer parte de um coletivo que tem interlocutores qualificados e engajados na literatura.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não sei dizer, várias vezes ao dia, quando posso. A revisão é um trabalho que faço com gosto. Ver o texto se aperfeiçoando a cada reescrita é um processo artesanal, lúdico, intuitivo e também cerebral. Se é necessário ler com autocritica o que você acabou de conceber, também são necessárias algumas experimentações e abertura para o que você não conhece nem domina, daí o caráter lúdico e intuitivo. E é também artesanal no sentido do ofício, do desenvolvimento de uma técnica, porque escrever não é apenas para vocacionados. Vocação, do ponto de vista religioso, é um chamamento divino definido desde o nascimento. Escrever não pode ser compreendido dessa forma, porque as pessoas aprendem a escrever, a técnica e o exercício da escrita é que formam o escritor. Você pode ter aptidão, talento, facilidade para escrever, mas sem ler, praticar a escrita e conhecer algumas técnicas, mesmo que intuitivamente, serão mínimas as chances de se tornar escritor.
Escrever é aprender a escrever num processo que tende ao infinito. Conhecer os elementos da estrutura narrativa, os recursos de um texto literário, é mais do que saber contar uma boa história. Nesse sentido, acredito que os cursos e oficinas de escrita criativa que proliferam pelo Brasil são muito bem-vindos. Volto a esse ponto. Ser escritor não é fazer parte de uma casta de bem-dotados ou de uma elite ilustrada.
De minha parte, mal terminei um texto, já quero mostrar para todo mundo. Preciso saber as possibilidades de interpretação e leitura que meu texto oferece e que, muitas vezes, fogem ao meu controle. Também me interesso pelos textos dos amigos que pedem minha opinião, gosto de lê-los e comentá-los, sempre aprendo com isso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quando uma ideia vem, eu anoto em qualquer lugar, no que estiver à minha frente. Mas os rascunhos mesmo, o esboço de uma história, eu costumo escrever no computador. O computador facilita a organização, o acesso ao dicionário, auxilia quando preciso pesquisar alguma coisa. Detalhe não menos importante: minha letra é péssima, às vezes, incompreensível. O computador evita esse problema.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Em primeiro lugar, dos livros. Mas também de qualquer outra expressão artística (música, filme, teatro, dança etc.). Eu desenho muito. Curioso, às vezes eu desenho quando estou escrevendo, e escrevo enquanto estou desenhando. São modos de expressão diferentes, mas podem ser simultâneos.
Lembranças, frases que ouço, situações e experiências vividas diretamente ou como espectadora, não há nada de que possamos prescindir para escrever. Você pode escrever um conto observando corpos expostos à luz no quadro Luxo, Calma e Volúpia, do Matisse; inventar um personagem a partir dasDemoiselles d’Avignondo Picasso; adensar uma atmosfera psicológica observando o movimento das cores de um quadro do Gauguin. Do mesmo modo que pode surgir um personagem de uma música do Chico Buarque ou do Caetano Veloso, ou da performance de um político agindo para o bem ou para o mal. Você pode se inspirar no olhar fugidio de uma funcionária doméstica, no silêncio dos lixeiros e dos guardas de rua, tudo é matéria e substrato para a ficção. Uma frase que acabou de ouvir na rua, sem que você tenha visto o rosto de quem a pronunciou, uma reportagem de TV que você só ouviu enquanto fazia outra coisa, tudo pode ser transformado em literatura.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Por um lado, me sinto bem por não tê-los publicado. Não estavam prontos e provavelmente nunca estarão. Por outro, reconheço neles a força que me trouxe até aqui. Em algumas passagens e trechos, eu enxergo uma potência, bruta, interessante, talvez um coração selvagemque ainda me sensibiliza. Sinto uma busca sincera e meio desesperada, me vejo diante de conflitos que ainda hoje me emocionam. Mas sei que escrever bem é exercitar a escrita, alimentar sensibilidades, abrir-se ao conhecimento e alcançar muito controle sobre o texto. Acho que esse controle eu não tive desde o começo. Tenho aprendido alguns recursos literários fundamentais, especialmente no tocante à construção do personagem e ao andamento da trama. O conselho que eu poderia dar, e ainda dou a mim mesma, é: escreva muito e leia muito, inclusive ensaios e teoria literária, se possível. Para alguém que não quer escrever apenas para si mesmo, como é o meu caso, eu diria também: exercite a simplicidade, tente calibrar o que você quer mostrar e o que você quer esconder do seu leitor, busque a concisão, explore a construção de imagens e atmosferas, explore a potência dos seus personagens, seja ousada, mas não tente reinventar a roda. Finalmente, eu diria: não despreze sua intuição.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gosto de escrever sobre temas que me conduzem por onde nunca passei, ou aos que já passei e ainda procuro compreender. A literatura tem que abrir portas, há um sentido transformador na leitura e no ato de escrever. Não vejo a literatura como ferramenta política no sentido ideológico, e sim no sentido de que política pode significar transformação e desafios ao status quo, às estruturas e instituições. A ficção provoca uma abertura pela qual se pode ampliar as visões de mundo e vislumbrar alternativas. Gostaria que isso estivesse presente, de algum modo, nos meus livros. A literatura pode ajudar, e muito, na ampliação desse maravilhoso processo de inclusão e promoção da diversidade que o mundo hoje. Trata-se de um processo global, com altos e baixos, mas irreversível. Quero escrever livros que revelem e valorizem a sensibilidade feminina, a experiência e o olhar das mulheres sobre o mundo, assim como a diversidade étnico-racial, e dos demais grupos chamados minoritários. Gosto de ler livros que problematizam algum aspecto a um só tempo singular e universal da natureza humana. É o que gostaria de fazer também nos meus livros.
Quanto aos livros que ainda não existem e eu gostaria de ler? Difícil responder. Mas, aproveitando a liberdade que a pergunta propicia, eu gostaria de ler a autobiografia de cada ser humano. Podemos imaginar o impossível.