Ana Cecilia Agua de Melo fez o mestrado e o doutorado em literatura brasileira na Unicamp.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A adolescência para mim foi um turning point: desde então sou cada vez mais uma pessoa noturna, muito noturna. Desse modo, minha rotina matinal, estritamente falando, é dormir. Agora, a respeito do que eu faço a partir do momento em que acordo, como eu começo o meu dia, eu poderia dizer que para mim é como um lento aquecimento do motor. O ideal é eu começar por tarefas rotineiras, coisas práticas para fazer fora de casa, isso vai me reconectando com o que está me ocupando, em termos de leitura ou escrita, no momento. Gosto de andar a pé, circular pela cidade, então não me incomoda ir ao supermercado, carregar sacolas, passar na farmácia. Pelo contrário, isso vale para mim como um exercício físico e um “pé no chão” prévio ao trabalho intelectual.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meus períodos para escrever são as tardes e sobretudo as noites (e madrugadas). Durante o mestrado e parte do doutorado, adotei o método de ir até uma biblioteca pública, não necessariamente todos os dias da semana, para escrever. Eu ia a pé até a biblioteca, na verdade foram duas, uma não tão próxima e outra que exigia uma caminhada até mais puxadinha, o que era ótimo, porque eu tenho essa necessidade de cansar o corpo, de tomar sol, de observar a rua. Quando eu chegava lá, era um perigo. Todos aqueles jornais e revistas expostos, os livros nas estantes… De modo que o meu ritual, se havia algum, era dar uma folheada em alguma coisa, para ir assentando o corpo e a cabeça. Mas se tratava de um ritual que era também um jeito de postergar o momento fatal da escrita. Tenho pensado que para mim escrever é sempre uma vitória justamente sobre os meus rituais, isto é, os hábitos que me paralisam. Para Samuel Beckett, “o hábito é o que prende o cão ao próprio vômito”. Infelizmente isso faz um sentido danado pra mim. Então, considero que tudo que escrevi até aqui é resultado de um esforço considerável para sobrepujar meus hábitos e meu ceticismo quanto à minha energia para escrever.
Voltando ao que eu contava sobre a biblioteca, quando eu me programava para passar a tarde e às vezes uma parte da noite ali, eu já tinha em mente o fragmento que tinha para redigir, levava livros específicos (dois ou três), meus rascunhos e esquemas, papel e caneta e só.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como eu acabei de dizer, durante o mestrado e o doutorado, por exemplo, quando eu estava caminhando em bom ritmo num capítulo, eu me sentava para escrever em três, quatro, cinco dias da semana, a cada vez com uma “meta” correspondente a um pedaço de análise já previamente elaborado por mim em esboços, notas à margem etc. Nesse sentido eu tenho sim uma meta diária, o que não faço é sustentá-la por muito tempo. Adquiri o hábito (novamente ele!) de me conceder períodos de férias quando eu consigo acumular um tanto de páginas razoavelmente satisfatórias. “Férias” no caso tem o sentido de leituras, diretamente ligadas ao meu objeto de pesquisa, próximas dele ou francamente desconectadas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como quase todo mundo, acho que é dificílimo começar. Livros são a maior paixão da minha vida, e eu não tenho dúvida de que isso vai me acompanhar até o fim, mas ao mesmo tempo minha relação com o trabalho de escrever sobre livros tem esse ceticismo de que eu já falei: Será que eu tenho energia suficiente? E para ser franca, também é dificílimo abdicar, mesmo que temporariamente, do prazer de ler para me entregar à azucrinação de escrever. Para dizer tudo de uma vez: a preguiça sempre rondou minha relação com a escrita. Mas à medida que eu fui vivendo uma vez, e outra, e mais outra, o prazer de ter escrito começou um longuíssimo processo que está deixando meu acesso ao ato de redigir mais livre. Esse processo ainda não terminou, e tenho a esperança de que ainda não tenha dado seus melhores frutos.
Assim, compilar notas para mim é fácil, facílimo, tem a ver com fuçar na biblioteca, ler, reler, imaginar que outros livros poderão integrar o contexto de uma determinada obra literária, descobrir relações, fazer descobertas na décima leitura de um determinado capítulo de romance… Já a escrita é sempre perda das ilusões. Muita coisa não funciona, muita coisa apetitosa tem que ser deixada de lado.
Para concluir, digo que meu movimento da pesquisa para a escrita se dá por fragmentos. Não pesquiso tudo o que haveria a pesquisar antes de começar a redigir, até porque até hoje nunca soube previamente o que haveria a pesquisar. No começo do mestrado eu invejava alguns colegas que, na minha fantasia, entravam na biblioteca mirando exatamente ali, naqueles livros que as vozes autorizadas consideravam pertinentes. Logo comecei a dizer que era mais fuçadeira do que pesquisadora. Até hoje sofro de um certo espontaneísmo, e meu processo passa muito por inventar o que vai poder fazer parte do meu trabalho. Invento, reúno material, leio, releio, anoto, redijo alguma coisa, depois parto para inventar a etapa seguinte do trabalho.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Bom, levei quatro anos no mestrado, mais dez no doutorado, de modo que eu acho que entendo de travas e procrastinação. Em primeiro lugar, para mim ainda é difícil distinguir a lentidão, como meu ritmo próprio, dos bloqueios e da fuga ao trabalho. Em retrospecto, vejo com bons olhos o fato de ter sustentado uma relação com meu objeto de estudo ao longo de dez anos, como aconteceu no doutoramento. Nunca cheguei perto de desistir, nunca me desliguei do tema, e acima de tudo dez anos não me pareceram um tempo tão escandalosamente longo como parece a muita gente. E no fim eu concluí e defendi a tese com alegria, com prazer, com estouros metafóricos de champagne. Estava reconciliada com minhas potencialidades e tive um olhar tranquilo para as imperfeições do “filho” enfim nascido. No entretempo, houve períodos de aridez, crises pessoais que me dispersaram, em resumo, certo estreitamento de horizontes que eu fui resolver no divã do analista. Devagarzinho as coisas foram ficando mais largas, mais abundantes, até que os intervalos entre os períodos de escrita foram diminuindo, meu ceticismo foi cedendo e eu comecei a enxergar o ponto final.
Na verdade, escrevi a tese de doutorado completamente fora do ritmo da academia: não tive bolsa, trabalhei o tempo todo como preparadora de originais, colaborando para várias editoras, e nos intervalos de muitas laudas a tese ia aparecendo. O trabalho no mercado editorial desviava minha atenção, drenava energias, mas também me alimentava de ideias, pois tive o privilégio, tenho até hoje, de lidar com bons textos literários. Meu trabalho – esse sim cotidiano – com os originais das editoras me afastava da escrita da tese, mas também, estranhamente, me dava confiança sempre que conseguia retomá-la.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meu olho treinado me deixa muito rigorosa com o que eu escrevo, mas eu também fui desenvolvendo uma grande naturalidade com as imperfeições inescapáveis em qualquer texto. Aliás, foi essa percepção da fatal imperfeição do que se escreve que foi minando o medo aludido na pergunta anterior. Mas eu reviso três, quatro vezes, com uma atenção especial ao que pode ser cortado. Cortes são o que há de mais benéfico para um texto. Mas não, não tenho um primeiro leitor. Mostrar um trabalho para alguém pode ser um gesto de abertura a outros olhares, de disponibilidade para se deixar impregnar por pontos de vista diferentes, como pode ser simples insegurança. Até hoje eu não importunei ninguém, salvo, claro, minha orientadora.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
À mão, sempre à mão. Adoro o ritual de me sentar com papel de rascunho e caneta. Não me vejo escrevendo de outro jeito. Depois que eu acumulo cinco, seis, sete páginas manuscritas, vou ao computador e digito. Aí já se trata de uma revisão, de uma reescrita, até porque nesse ponto o manuscrito já está velho de alguns dias ou até semanas. As anotações eu faço sempre em cadernões, caderninhos, bloquinhos, folhas avulsas que eu prendo com clipes nos livros. Até hoje nunca fiz arquivos de notas no computador.
Falando de um ponto de vista mais geral, minha relação com a tecnologia tem algo daquele comentário maravilhoso que a Clarice Lispector deixou em Perto do coração selvagem: “Quem se recusa o prazer, quem se faz de monge, em qualquer sentido, é porque tem uma capacidade enorme para o prazer, uma capacidade perigosa – daí um temor maior ainda. Só quem guarda as armas a chave é quem receia atirar sobre todos”. Pois é, me fiz de monja um tempão até aderir ao e-mail. Me tranquei no convento dos sem-Facebook por um tempo maior ainda, aparentemente com total falta de curiosidade. Quando eu sucumbi, vi que as possibilidades e os riscos são igualmente incalculáveis. Como alguém que sempre teve uma relação muito próxima com a literatura, tenho medo do que os meios digitais podem fazer com minha atenção, com meus apetites. Mas o mundo mudou, e descobri que sou tão suscetível aos atrativos dos novos tempos quanto qualquer outra pessoa. Isso me decepciona um pouco, mas também me lembra de ser humilde.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm da minha relação cotidiana com a leitura. É uma relação que independe de cursos, tarefas a cumprir e sobrevive incólume a vésperas de Natal e doenças na família. E também não sou “fiel” a meus objetos de estudo. Uma vez brinquei com uma amiga, dizendo que só tive casos passageiros, nunca casei com nenhum autor. A verdade é que eu deixo meu objeto de estudo ser contaminado por todo tipo de leitura paralela. Claro que isso às vezes deixa umas sombras esquisitas no resultado final, mas até hoje, pelo menos, foi assim que as ideias chegaram até mim.
Talvez este seja o momento de contar uma história do meu doutoramento: Estudei a ficção longa que Autran Dourado produziu ao longo da década de 1960. Foi um processo atípico, porque eu passei de um grande interesse por esse escritor ao desencanto, à constatação de que, com a tese, eu estava encerrando uma fase como leitora. Em meio a esse processo de me voltar para uma leitora que eu não era mais, me preparando para redigir o capítulo final, sobre O risco do bordado, minha orientadora me sugeriu a leitura de Le sacre de l’écrivain, um estudo hoje clássico do francês Paul Bénichou. Eu guardei a sugestão, queria muito ler o livro, mas ele não chegou a minhas mãos. Em vez disso, li, movida por uma coluna de Vladimir Safatle na Folha de São Paulo, Retrato calado, o livro póstumo do Luís Roberto Salinas Fortes. Fiquei tão entusiasmada pelo livro e curiosa pela figura do Salinas tradutor de Sartre que enfim fui ler As palavras. E este livro me deu uma ideia da “sagração do escritor” que não sei se o Bénichou poderia dar. Mas eu continuo querendo ler Le sacre de l’écrivain! Só acrescento que, se até hoje não tive muito pudor em embarcar nessas trilhas tortuosas, ainda posso vir a ficar mais contida. Não sei, ainda não tive tempo de saber.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou mesmo é que hoje a escrita está bem menos associada a sofrimento. Quanto à segunda parte da pergunta, tendo a desconfiar dela. Uma vez, ouvi uma mulher comentar que gostaria de voltar aos onze anos de idade “com a maturidade que eu tenho hoje”. Bolas, eu pensei, qual o sentido de ser maduro com onze anos de idade? Isso é nonsense. Só dá para passar pelo começo na escuridão e na imaturidade. Só dá para perder tempo, fazer papel ridículo, aguentar as risadinhas condescendentes.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Do ponto de vista da pesquisa universitária, acho que no momento estou à espera de um projeto que vai se impor a mim para valer. À parte isso, gostaria de expandir um pouquinho meus limites para além da escrita acadêmica. Morro de medo, mas tenho uma forte queda para a autoficção. Nutro a fantasia de, depois dos oitenta, empreender um substancioso balanço da minha existência. rs…
Sinceramente eu não me dou ao trabalho de imaginar livros que não existem, tantos são os que ainda não li. E talvez os projetos de releitura tenham um apelo ainda mais forte que o dos livros não lidos. Há anos namoro a ideia de aprender alemão para reler, agora no original, A montanha mágica. Fui daquelas adolescentes que liam Thomas Mann, imagine…